quinta-feira, 10 de outubro de 2019

As perspectivas da democracia e do SUS

Por Sonia Fleury, no site do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz:

Muito se discutiu sobre o caráter reformista da Reforma Sanitária Brasileira (RSB) e sobre os dilemas enfrentados a partir de sua institucionalização, em um contexto de uma democracia pactuada e restringida. No entanto, a pergunta que nos fazemos é, ao contrário, sobre qual teria sido o conteúdo revolucionário do projeto reformista na saúde.

A adoção da estratégia de luta pela democracia sob a bandeira de Saúde é Democracia foi aglutinadora de forças sociais diferenciadas, unidas em uma coalização em prol da democratização, que na saúde se traduzia pela compreensão da determinação social do processo saúde e doença, evidenciando a iniquidade estrutural que caracteriza a matriz brasileira de produção e distribuição dos bens privados e dos recursos públicos. Só a superação do autoritarismo e do centralismo permitiriam a organização social e a reforma do Estado, necessárias à construção de políticas públicas inclusivas e redistributivas.

A orientação normativa, baseada no princípio da justiça social e dos direitos da cidadania, permeou o texto da Constituição Federal de 1988, dando origem ao capítulo da Ordem Social, desvinculando definitivamente o direito à proteção social da condição de exercício do trabalho no mercado formal e, portanto, da ordem econômica. Além de criar a Seguridade Social sob a égide do trabalho e da justiça social, incluiu na Ordem Social direitos não monetizados relativos à educação, ciência e tecnologia e cultura, desportos; direitos coletivos relativos ao meio ambiente e aos meios de comunicação; direitos de grupos especiais como indígenas, idosos, crianças e adolescentes, famílias. Mesmo que habitação e segurança alimentar não tenham sido inicialmente incluídos no capítulo VIII da Ordem Social, muito provavelmente pela sua inserção na esfera capitalista da propriedade e produção privadas, a correlação de forças democráticas terminou por impor sua inclusão no rol dos direitos sociais no artigo 6º, subordinando, inclusive, toda propriedade ao critério de seu uso social.

No caso da Seguridade Social – saúde, previdência e assistência –, foi criado o Orçamento da Seguridade Social, com contribuições específicas sobre fontes diversificadas e vinculadas, de tal forma que se pudesse atenuar o efeito pro-cíclico da contribuição sobre a folha de salário.

Tratava-se, pois, de democratizar o capitalismo brasileiro! Seguramente havia um gérmen de ruptura em relação à trajetória nacional de desenvolvimento capitalista excludente, mesmo quando parcialmente includente como no autoritarismo da era Vargas. A tarefa reformista era construir capacidades para institucionalizar essa profunda mudança, em um contexto adverso de hiperinflação, políticas econômicas de ajuste, predomínio da ideologia neoliberal, desmobilização dos movimentos sociais. A institucionalização desta nova ordem legal, que representava um novo patamar civilizatório, implicou a criação de um novo arranjo federativo, uma nova relação Estado/sociedade nas políticas públicas e um sistema de gestão descentralizado, com capacidade para democratizar o poder local, produzir inovações e promover sua difusão.

Sem dúvidas, o que foi revolucionário não foi a reforma do Estado, da federação e da relação com a sociedade civil, apontada, frequentemente, como construções reformistas. O caráter revolucionário da reforma se deu ao assumir o princípio da igualdade na condição de cidadania, o que implicou a universalidade do acesso aos bens públicos. A dominação e concentração do poder na sociedade brasileira se erigem na base da subalternização dos trabalhadores, na falsa suposição da essencialidade da diferenciação social, econômica e política, o que legitima a ordem social reprodutora das desigualdades.

A ruptura com esse princípio organizador da vida pública nacional se dá pela introdução dessa ética baseada na igualdade da cidadania e na universalidade dos direitos, subvertendo a ordem social então vigente. A ética da alteridade, pela qual se reconhece o outro como diferente por não ser eu mesmo, mas, igual porque sujeito dos mesmos direitos na esfera pública, não deve ser confundida com a bandeira liberal da tolerância, tão em voga nos dias atuais de absoluta intolerância. Tolerância não implica reconhecimento nem solidariedade, apenas individualidades que não se agridem – se toleram. Não tenho por que tolerar uma pessoa por ser negra, gay, indígena, umbandista. Devo admitir nossas singularidades e diferenças, mas, reconhecer esse outro como sujeito de direitos que, como eu, é partícipe de uma mesma comunidade. Isso requer a vigência de relações de solidariedade. No caso da saúde, a igualdade assume componente mais concreto, que é a ética do cuidado, ou seja, o reconhecimento das necessidades do outro que posso vir a prover como indivíduo, profissional e, coletivamente, por meio de políticas públicas democráticas e adequadas.

Diferentes autores têm chamado atenção para a permanência desse traço marcante da nossa sociabilidade, que estrutura as relações sociais a partir de hierarquia e desigualdades, tais como Roberto DaMatta no ensaio clássico Você sabe com quem está falando? [1], sociodrama cotidianamente vivenciado, em que a relação formal/legal de igualdade é remetida à estrutura desigual que hierarquiza os participantes e os diferencia entre aqueles para os quais a lei pode ser aplicada e aqueles que se colocam acima dela.

Com argumento mais histórico que estrutural, encontramos a afirmação sobre as raízes da desigualdade no nosso passado escravocrata:

Em torno dela [a escravidão] construiu-se uma ética do trabalho degradado, uma imagem depreciativa do povo, ou do elemento nacional, uma indiferença moral das elites em relação às carências da maioria, e uma hierarquia social de grande rigidez e vazada por enormes desigualdades (CARDOSO, 2019, p.35) [2].

Concordando com ambos os autores sobre como a sociedade brasileira se estrutura a partir da desigualdade, degradação e exclusão, não compartilhamos, porém, do caráter aparentemente imanente dessa condição, nem de que ela se reproduza porque alcança legitimidade social para a ordem hierarquizada.

As classes dominantes mantêm seu domínio por meio da apropriação dos aparelhos do Estado Ampliado para seu uso exclusivo, e da coerção e da violência sistemáticas como formas de desorganização da luta das classes dominadas. Assim, por meio da restrição da educação como um recurso de classe, e da ação do aparato estatal econômico para a acumulação sem redistribuição, das ações do aparato jurídico e policial para repressão de classe e do domínio dos aparelhos ideológicos para produção de consensos, podem manter seu domínio e reproduzir as desigualdades sociais e regionais.

Por essas razões, o estabelecimento de um princípio de ordenamento social a partir do reconhecimento dos direitos e da universalidade do acesso aos bens e serviços públicos é, nesse contexto, o gérmen revolucionário da reforma democrática. Não se trata, no entanto, de aceitar a noção corrente de que tal fato foi fruto de um amplo pacto social entre as classes, celebrado na Assembleia Nacional Constituinte. Não houve pacto, houve uma crise da hegemonia dominante, por um lado, e a imposição de uma nova correlação de forças, por outro lado. Houve disputa, não consenso. Prova disso é que na mesma Constituição cidadã, a organização tributária continuou penalizando o trabalho e a renda do trabalho e favorecendo com isenções os ganhos de capital. Dessa forma, avançamos no estabelecimento de direitos sociais em direção a um Estado do Bem Estar Social que, desde seu nascedouro, encontrava-se minado pela ausência de recursos fiscais necessários a uma efetiva política redistributiva. O que assistimos foi o avanço e apropriação dos recursos destinados com exclusividade para o Orçamento da Seguridade Social, através da DRU, que passaram a ser destinados a cobrir o rombo do orçamento fiscal. Além disso, a disputa pelos fundos públicos também se manifestou no crescimento do setor mercantil da saúde, de seguros, planos e serviços, que, por meio de desonerações, falta de regulação apropriada, relação de promiscuidade com o SUS etc., subverteram na prática a noção constitucional da saúde como bem de relevância pública, permitindo sua incremental mercantilização.

Apesar de tudo, houve enorme expansão da cobertura, das inovações nas gestões locais do sistema de saúde, maior ênfase na prevenção com a criação de programas de atenção à saúde da família, acesso a medicamentos, além dos números impactantes de intervenções hospitalares e em postos de saúde, responsáveis pela inestimável melhoria dos indicadores de saúde no país. Porém, ao lado da maciça propaganda em favor do setor privado, o SUS enfrentou as próprias contradições, com as dificuldades de acesso e utilização de serviços com qualidade, nos quais o cidadão usuário se vê reconhecido em seu direito com dignidade.

Assim, transformaram a proposta da seguridade social em insegurança cotidiana, expressa dolorosamente na peregrinação [3] dos pacientes em busca de um cuidado, das mães em busca de uma vaga na escola, dramas pelos quais parece que a autoridade pública não se responsabiliza, configurando um verdadeiro contradireito. Ao lado disso, a opção das políticas públicas por favorecer o consumo em vez do direito, somou-se à perspectiva individualista e meritocrática incensada pelo neoliberalismo. Outro fenômeno que merece ser considerado como determinante da ruptura que vai se estabelecer com o paradigma social-democrata que se esboçou nos últimos 30 anos foi o aumento vertiginoso da violência urbana, com o domínio territorial e populacional de traficantes e milicianos sobre favelas e periferias e uma ineficaz política de segurança pública e combate às drogas, que coloca as vidas dessas populações em situações de máxima vulnerabilidade.

O golpe jurídico parlamentar, com o impeachment do governo democraticamente eleito, foi o instrumento de ruptura que permitiu a manutenção da institucionalidade formal da democracia e a eleição de um governo autoritário, conservador e obscurantista, respaldado pelas elites econômicas para restabelecer a hegemonia dominante em crise. Para isso, sob o mantra do combate à corrupção e recuperação do equilíbrio fiscal, foram cortados direitos trabalhistas e sociais, entregue a soberania e os recursos naturais, destruídas instituições participativas, liberados venenos e reduzida a capacidade estatal reguladora. Avança-se no sentido de destruição da demarcação das terras indígenas, do retrocesso na preservação do meio ambiente e, por fim, na dissolução da capacidade técnico científica, policial e coercitiva do estado.

Tudo isso respaldado por uma ideologia conservadora e autoritária, na qual o outro nem é para ser tolerado, muito menos reconhecido, mas eliminado, pois não partilha dos valores misóginos, racistas e reacionários do governo e seus apoiadores fanáticos.

Para finalizar, as perspectivas tanto do SUS quando da própria democracia dependerão das contradições no seio tanto bloco no poder, potencializadas pela pressão internacional, como as que já despontam entre setores como agronegócio exportador e os responsáveis pelo retrocesso na preservação ambiental. As eleições presidenciais já estão no tabuleiro da disputa de poder, acirrando embates entre aliados como Bolsonaro e Moro, Maia e Dória. As fissuras dentro do grupo palaciano, que envolve os filhos, os evangélicos, os militares e os políticos, se aprofundam a cada momento, sem precisar de oposição para isso. Economistas liberais e a grande mídia já mostram descontentamento com o presidente, apoiado por eles para sair do obscurantismo e ser eleito. Aguardam, ainda, as medidas econômicas que deslocarão recursos públicos como os da previdência para o mercado financeiro, as empresas públicas e os recursos naturais, para as grandes corporações multinacionais. Depois disso, esperam que o centro possa voltar ao poder.

Por outro lado, dependerão também das resistências dos atores políticos, dos movimentos sociais e da própria institucionalidade democraticamente construída, disputando o uso dos recursos públicos em políticas redistributivas, como o SUS, envolvendo uma rede de atores e capacidades, como, gestores, profissionais, conselheiros, movimentos. A cada dia, mais motivos têm levado a manifestações de rua contra medidas governamentais como cortes discricionários na educação, perda de direitos previdenciários, inação diante da Amazônia em chamas. Ainda não foram, no entanto, capazes de gerar uma coalizão que possa se colocar como alternativa na disputa de poder.

Por fim, as perspectivas democráticas dependerão também das insurgências e desobediências civis em busca dos direitos dos deserdados da cidadania. Uma cidadania insurgente que pulula nas periferias das grandes cidades e se expressa em coletivos de música, poesia, artes, em busca de construção de um sujeito coletivo a partir de uma identidade que, por ter sido sempre subalternizada, tem a potência de se tornar emancipatória. Imprensada entre o fuzil dos traficantes, o caveirão da polícia e o desalento e desemprego, a juventude encontra na cultura uma expressão da sua crescente insatisfação e insurgência. Fragmentada em lutas identitárias, encontra limites à sua expressão e à sua articulação como classe. As instituições democráticas como o SUS precisam encontrar o caminho do acolhimento a essas lutas populares.

* Sonia Fleury é doutora em Ciência Política, pesquisadora sênior do CEE-Fiocruz. Artigo baseado na exposição realizada no III Congresso de Secretarias Municipais de Saúde do Estado da Paraíba e IV Seminário Gilson Carvalho, em 8/9/2019, em João Pessoa, com o título 30 anos do SUS: Desafios e Perspectivas.

Notas

[1] DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

[2] CARDOSO, Adalberto. A construção da sociedade do trabalho no Brasil: Uma investigação sobre a persistência secular das desigualdades. Rio de Janeiro: Amazon, 2019.

[3] FLEURY, Sonia. BICUDO, Rangel, G. Reacciones a la violencia institucional: estrategias de los pacientes frente al contraderecho a la salud en Brasil. Salud Colectiva, Buenos Aires, 9, 1, 11-25, abr., 2013.

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