Por Rosane Pavan, na revista CartaCapital:
Herivelto Martins não queria criticar Getúlio Vargas. Pelo menos, não ao compor Palhaço. A música mirava um desafeto pessoal.
Havia muitos anos se resolviam assim as coisas naquele Brasil sem polícia, Justiça ou governo confiáveis. A palavra era a bala e o gatilho, a canção. Sem revólver, portanto, apenas com samba, Herivelto se vingava de quem discordava dele sobre uma questão de direito autoral. Quem gargalha demais, sem pensar no que faz, quase nunca termina em paz, musicou. O sucesso foi sem igual naquele 1946, mas o povo entendeu a canção errado. O sorriso insidioso descrito nos versos mortais passou a pertencer ao presidente destituído pela redemocratização. Palhaço seria Vargas e ponto final.
Havia muitos anos se resolviam assim as coisas naquele Brasil sem polícia, Justiça ou governo confiáveis. A palavra era a bala e o gatilho, a canção. Sem revólver, portanto, apenas com samba, Herivelto se vingava de quem discordava dele sobre uma questão de direito autoral. Quem gargalha demais, sem pensar no que faz, quase nunca termina em paz, musicou. O sucesso foi sem igual naquele 1946, mas o povo entendeu a canção errado. O sorriso insidioso descrito nos versos mortais passou a pertencer ao presidente destituído pela redemocratização. Palhaço seria Vargas e ponto final.
Em uma pesquisa exaustiva realizada nos últimos 18 anos, e que agora chega ao público por meio de três livros e uma exposição, Franklin Martins levanta esta e inúmeras histórias em que a canção brasileira teve o peso de um fuzil, houvesse ou não a intenção inicial de seu compositor em empenhá-lo. Aos 66 anos, capixaba criado no Rio de Janeiro, o jornalista fora levado à militância estudantil na década de 1960 e ao exílio na França. Retornado ao País, exercera a reportagem e fora ministro da Secretaria de Comunicação no segundo governo Lula. O valor da história e da ação resistente, portanto, não lhe parecia estranho quando, em 1997, montou o site Conexão Política, alimentado com áudios de discursos e canções em torno do poder. O trabalho o fez notar algo jamais destacado por grandes pesquisadores como seus ídolos Jairo Severiano, Roberto Azevedo, Luiz Américo Lisboa Junior ou Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez. O que ele via diversamente era a constância com que a música sobre política era feita no Brasil.
“Todos os outros países poderiam se orgulhar dessa produção durante as grandes confrontações nacionais, as crises sociais, as revoluções e as guerras civis”, diz Martins a CartaCapital. “O México teve os corridos, houve música na Comuna de Paris. Mas, passados esses períodos de confrontação, a produção se tornava ocasional naqueles países, a uma exata distância do que ocorria aqui.” A música brasileira, uma espécie de Bakunin da plebe, fornecia uma força incendiária constante contra a paralisia social. Vistas em conjunto, além disso, as canções traçavam uma sucessão de fatos políticos e as mudanças de comportamento. A música brasileira ensinava história muito bem.
Desde o teatro de revista do século XIX, contemporâneo dos paródicos chopes berrantes, nos quais as atrações culturais serviam à venda da bebida, foi possível sorrir da fome e da carestia no Brasil. Especialmente depois da Guerra do Paraguai, por duas décadas em que o império agonizava, o poder se viu desancado pela música. Nos anos seguintes, “em cima do laço”, o cantor Eduardo das Neves comentou de tudo. A Revolta da Chibata, por exemplo, apareceu em Os Reclamantes no ano em que ocorrera, 1910: Neste Rio de Janeiro, fez-se grande confusão, com um cabo marinheiro, fez uma revolução. O carnaval substituiu as revistas e os berrantes quando passou de dançado a cantado, com uma enorme tradição de marchas a comentar nossos erros.
Nos três livros da série Quem Foi Que Inventou o Brasil? (os dois primeiros, pela editora Nova Fronteira, ao preço individual de 68,90 reais, serão lançados dia 22 na Livraria Cultura, em São Paulo) e na exposição A Música Canta a República, no Instituto Tomie Ohtake, até 2 de agosto, estarão representados os fatos, em imagens de época pesquisadas pelo curador Vladimir Sacchetta, e as 1,1 mil músicas produzidas entre 1902 e 2002, garimpadas e comentadas por Franklin Martins. Ninguém concebeu essa divisão antes, como nota o historiador José Ramos Tinhorão ao apresentar o projeto. O pesquisador que se diz “apenas repórter” não teria apenas feito “obra para ser lida e escutada”, como dita sua modéstia na introdução geral, mas “obra tão original que, nela, a história não apenas se revela, mas se faz ouvir, no mais genuíno sentido da palavra”.
Para Martins, “a música popular brasileira cumpriu um extraordinário papel” em momentos que ele próprio viveu. “A canção representou um desaguadouro da resistência cultural, talvez por onde ela tenha se expressado da maneira mais forte”, crê. “Era estimulante, para quem militasse ou apenas se incomodasse com o absurdo ditatorial dos anos 1960, ouvir que amanhã seria um dia diferente de hoje, que ninguém se dobraria à injustiça. Embora por conta da censura fosse impossível denunciar um estado de coisas explicitamente, apenas insinuar a existência de uma injustiça bastava. A insinuação às vezes era mais forte que uma denúncia aberta contra o regime, porque se sabia como era complicado driblá-lo.”
Nos livros de Martins, é um pulso do Brasil o que se lê (e no link podem ser acessados gratuitamente em streaming as canções incluídas no livro, mesmo que apenas as partes liberadas de direitos autorais). A sátira parece descender daquele século XVII em que o poeta Gregório de Mattos exerceu impiedosa pena. Em Non fui ista a inrevoluçó que io sugné (Não foi esta a revolução com que sonhei), por exemplo, Juó Bananère misturava italiano e português para demonstrar desapontamento com a Revolução de 1930, aquela incapaz de colocar na ageladêra dú Cambuci (na prisão do bairro paulistano) tutos chiefe dú PRP, o partido da oligarquia paulista na República Velha.
Os compositores a comentar as dores brasileiras se sucederam, multiplicados por muitos intérpretes, como os pracinhas da FEB ou os revolucionários de 1930. É certo que Chico Buarque, desde que usava o pseudônimo Julinho da Adelaide, açoitara o poder de todas as formas, mas também houve Geraldo Vandré e Theo de Barros em Disparada, de 1966, aver a morte sem chorar. “O Taiguara produziu muita coisa excelente nessa direção, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Sérgio Ricardo, depois Milton Nascimento, Ednardo, Belchior, e eu seguramente estou cometendo alguma injustiça... E também houve a música a adular o regime. Dom e Ravel, é engraçadíssimo, eles têm Eu te Amo meu Brasil, mas fizeram duas músicas nos anos seguintes, uma delas quase censurada porque denunciava a injustiça no Brasil e outra, Marcha da Conciliação Nacional, em que pediam calma contra os enfrentamentos.” Isso tudo sem contar com o inesperado. “As primeiras músicas no Brasil de apoio à luta anticolonial na África são de Tim Maia, Rodésia e Guiné Bissau, Moçambique e Angola Racional. O Wilson Simonal tem Tributo a Martin Luther King, antes da morte do líder, na qual diz que luta negra demais é lutar pela paz.”
Tão ampla quanto a periodização inclusiva de Franklin Martins parece ser a margem que dará a pequenas ausências. Ele não incluiu nos livros o clássico de Caetano Veloso A Filha da Chiquita Bacana, que cita a batalha pela emancipação feminina. “Nessa nem reparei, mas, de todo modo, não era naquele momento uma luta como uma grande questão no Brasil.” São eventos demais, até os que o tocaram pessoalmente. Da marcha História do Brasil, de Almirante (1934), Martins tirou Quem foi que inventou o Brasil?, título de seus livros. Ele cismava com o significado dos versos Passou-se o tempo da vovó, quem manda é a Severa e o cavalo Mossoró. Mossoró fora o cavalo brasileiro a vencer o primeiro Grande Prêmio local, nos anos 1940. Mas e Severa? Descobriu tratar-se da Fadista Severa que intitulava um filme português. Nele vinha interpretado o fado Ó rua do Capelão, cujos versos Martins canta, não sem ressaltar sua ausência de talento musical: Se o meu amor chegar cedinho, eu beijo as pedras do chão que ele pisar pelo caminho. Era assim que o ninavam seus pais.
“Todos os outros países poderiam se orgulhar dessa produção durante as grandes confrontações nacionais, as crises sociais, as revoluções e as guerras civis”, diz Martins a CartaCapital. “O México teve os corridos, houve música na Comuna de Paris. Mas, passados esses períodos de confrontação, a produção se tornava ocasional naqueles países, a uma exata distância do que ocorria aqui.” A música brasileira, uma espécie de Bakunin da plebe, fornecia uma força incendiária constante contra a paralisia social. Vistas em conjunto, além disso, as canções traçavam uma sucessão de fatos políticos e as mudanças de comportamento. A música brasileira ensinava história muito bem.
Desde o teatro de revista do século XIX, contemporâneo dos paródicos chopes berrantes, nos quais as atrações culturais serviam à venda da bebida, foi possível sorrir da fome e da carestia no Brasil. Especialmente depois da Guerra do Paraguai, por duas décadas em que o império agonizava, o poder se viu desancado pela música. Nos anos seguintes, “em cima do laço”, o cantor Eduardo das Neves comentou de tudo. A Revolta da Chibata, por exemplo, apareceu em Os Reclamantes no ano em que ocorrera, 1910: Neste Rio de Janeiro, fez-se grande confusão, com um cabo marinheiro, fez uma revolução. O carnaval substituiu as revistas e os berrantes quando passou de dançado a cantado, com uma enorme tradição de marchas a comentar nossos erros.
Nos três livros da série Quem Foi Que Inventou o Brasil? (os dois primeiros, pela editora Nova Fronteira, ao preço individual de 68,90 reais, serão lançados dia 22 na Livraria Cultura, em São Paulo) e na exposição A Música Canta a República, no Instituto Tomie Ohtake, até 2 de agosto, estarão representados os fatos, em imagens de época pesquisadas pelo curador Vladimir Sacchetta, e as 1,1 mil músicas produzidas entre 1902 e 2002, garimpadas e comentadas por Franklin Martins. Ninguém concebeu essa divisão antes, como nota o historiador José Ramos Tinhorão ao apresentar o projeto. O pesquisador que se diz “apenas repórter” não teria apenas feito “obra para ser lida e escutada”, como dita sua modéstia na introdução geral, mas “obra tão original que, nela, a história não apenas se revela, mas se faz ouvir, no mais genuíno sentido da palavra”.
Para Martins, “a música popular brasileira cumpriu um extraordinário papel” em momentos que ele próprio viveu. “A canção representou um desaguadouro da resistência cultural, talvez por onde ela tenha se expressado da maneira mais forte”, crê. “Era estimulante, para quem militasse ou apenas se incomodasse com o absurdo ditatorial dos anos 1960, ouvir que amanhã seria um dia diferente de hoje, que ninguém se dobraria à injustiça. Embora por conta da censura fosse impossível denunciar um estado de coisas explicitamente, apenas insinuar a existência de uma injustiça bastava. A insinuação às vezes era mais forte que uma denúncia aberta contra o regime, porque se sabia como era complicado driblá-lo.”
Nos livros de Martins, é um pulso do Brasil o que se lê (e no link podem ser acessados gratuitamente em streaming as canções incluídas no livro, mesmo que apenas as partes liberadas de direitos autorais). A sátira parece descender daquele século XVII em que o poeta Gregório de Mattos exerceu impiedosa pena. Em Non fui ista a inrevoluçó que io sugné (Não foi esta a revolução com que sonhei), por exemplo, Juó Bananère misturava italiano e português para demonstrar desapontamento com a Revolução de 1930, aquela incapaz de colocar na ageladêra dú Cambuci (na prisão do bairro paulistano) tutos chiefe dú PRP, o partido da oligarquia paulista na República Velha.
Os compositores a comentar as dores brasileiras se sucederam, multiplicados por muitos intérpretes, como os pracinhas da FEB ou os revolucionários de 1930. É certo que Chico Buarque, desde que usava o pseudônimo Julinho da Adelaide, açoitara o poder de todas as formas, mas também houve Geraldo Vandré e Theo de Barros em Disparada, de 1966, aver a morte sem chorar. “O Taiguara produziu muita coisa excelente nessa direção, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Sérgio Ricardo, depois Milton Nascimento, Ednardo, Belchior, e eu seguramente estou cometendo alguma injustiça... E também houve a música a adular o regime. Dom e Ravel, é engraçadíssimo, eles têm Eu te Amo meu Brasil, mas fizeram duas músicas nos anos seguintes, uma delas quase censurada porque denunciava a injustiça no Brasil e outra, Marcha da Conciliação Nacional, em que pediam calma contra os enfrentamentos.” Isso tudo sem contar com o inesperado. “As primeiras músicas no Brasil de apoio à luta anticolonial na África são de Tim Maia, Rodésia e Guiné Bissau, Moçambique e Angola Racional. O Wilson Simonal tem Tributo a Martin Luther King, antes da morte do líder, na qual diz que luta negra demais é lutar pela paz.”
Tão ampla quanto a periodização inclusiva de Franklin Martins parece ser a margem que dará a pequenas ausências. Ele não incluiu nos livros o clássico de Caetano Veloso A Filha da Chiquita Bacana, que cita a batalha pela emancipação feminina. “Nessa nem reparei, mas, de todo modo, não era naquele momento uma luta como uma grande questão no Brasil.” São eventos demais, até os que o tocaram pessoalmente. Da marcha História do Brasil, de Almirante (1934), Martins tirou Quem foi que inventou o Brasil?, título de seus livros. Ele cismava com o significado dos versos Passou-se o tempo da vovó, quem manda é a Severa e o cavalo Mossoró. Mossoró fora o cavalo brasileiro a vencer o primeiro Grande Prêmio local, nos anos 1940. Mas e Severa? Descobriu tratar-se da Fadista Severa que intitulava um filme português. Nele vinha interpretado o fado Ó rua do Capelão, cujos versos Martins canta, não sem ressaltar sua ausência de talento musical: Se o meu amor chegar cedinho, eu beijo as pedras do chão que ele pisar pelo caminho. Era assim que o ninavam seus pais.
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