Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
A venda do Grupo ABC, maior holding de publicidade do país - e 25ª do mundo -, para a norte-americana Omnicom deve ser vista sob dois aspectos. Do ponto de vista da própria empresa, o negócio cumpre uma tendência seguida por outras agências de porte, inclusive a tradicional DPZ.
Principal acionista do ABC, o publicitário Nizan Guanaes fez uma carreira bem sucedida na área comercial e também no mundo político, onde era o criador preferido de Fernando Henrique Cardoso e do PSDB em geral. Isso não impediu que uma das empresas do Grupo conquistasse uma conta importante nos governos Lula-Dilma. Em 2014, quando a oposição animava a vergonhosa campanha anti-Copa, Nizan Guanaes deu sua contribuição para o bom andamento dos trabalhos ao lançar o slogan "Copa das Copas."
Há outro aspecto, porém. Quando se recorda a influência da publicidade sobre os meios de comunicação de qualquer país, inclusive o Brasil, é o caso de perguntar se a desnacionalização da publicidade não irá aprofundar a desnacionalização da própria mídia brasileira. É uma questão mais relevante do que parece.
Ainda que seja errado encarar as agências de publicidade como simples correias de transmissão de interesses econômicos e políticos de suas matrizes, seria uma ingenuidade ainda maior imaginar uma situação oposta, de independência absoluta.
Empresas de comunicação e jornalistas não costumam falar a respeito de suas relações com anunciantes, mantidas sob um véu de mistério e segredo. É um debate instrutivo e necessário, porém.
O financiamento de um jornal, uma revista ou um portal de internet forma a base material necessária para que ela possa chegar ao público. Nessa medida, é parte indispensável da liberdade de imprensa.
A Última Hora, o principal jornal popular do país em 1950 e 1960, não teria sido viabilizada sem apoio direto de empresários que apoiavam o governo de Getúlio Vargas e, mais tarde, de Juscelino e João Goulart.
Maior sucesso de bancas do década de 1970, o inesquecível Pasquim jamais recebeu, do mercado anunciante, o suporte publicitário correspondente. Produzido pelos mais talentosos humoristas do período, com uma venda em bancas que atingiu a marca espetacular de 200 000 exemplares por semana, era ignorado por empresas e agências que não tinham o menor interesse em atritar-se com a ditadura militar. Em entrevista a este blogue, o advogado Carlos Araújo revelou que o Pasquim chegou a receber apoio econômico da VAR-Palmares, uma das principais organizações que participaram da luta armada contra a ditadura, da qual foi o principal dirigente.
Num depoimento publicado no livro "Um Jornal Assassinado" (Jefferson de Andrade, Editora José Olympio, 1991), o jornalista Luiz Alberto Bahia traça um panorama dessa situação no interior do Correio da Manhã no início década de 1960. Ele era editor de opinião do jornal, um dos mais influentes do país.
Descreve um processo de elitização dos jornais brasileiros provocado pelo crescimento do poder das agências de publicidade sobre o faturamento do jornal, deixando claro que essa mudança trouxe, obviamente, alterações na linha editorial.
Conforme Bahia, o estilo independente do Correio da Manhã, "do editorial bravo, falante (ele diz que podia chegar a ser "inconsequente"), forte, começa a ser quebrado por influência da mudança do perfil da carteira publicitária." Ele descreve uma mudança de fundo nas formas de sustentação material dos jornais.
Se antes eles alimentavam suas receitas publicitárias a partir do pequeno anunciante, dos classificados, "do anúncio da cozinheira, do anúncio coletado pelos agentes do próprio jornal", a partir da industrialização e modernização ocorrida no país a partir da década de 1950, começaram a surgir "as agências de publicidade, aparecendo anúncios de prestígio, de bancos, da indústria automobilística." Para ele, "tudo isso acabou determinando uma mudança da relação jornal em sua opinião, com o seu perfil de renda. O jornal passou a sofrer muito mais a influência de agências, de anúncios de prestígio." Conforme Bahia, o fator que assegurava a independência editorial, que era o anúncio avulso, caiu." A pressão da área administrativa" sobre a redação "perdeu a cerimônia." Seções que não tinham suporte publicitário, e que antes eram publicadas pelo puro interesse jornalístico, foram suspensas.
Bahia também explica como funciona "a força de uma agência, sua relação com o jornal. É a força multiplicada de seus anunciantes." Assim, quando uma reportagem atinge "certo interesse, de um produto, agenciado por determinada agência, quando esta aborda o jornal, questionando, argumentando, não está falando apenas do poder daquele anunciante. Fala com o poder de toda a massa de seus anunciantes."
Nesse ambiente a linha de cobertura do jornal sofreu alterações que refletem a influência crescente de seus financiadores.
Por sua tradição democrática, em 1961, na renúncia de Jânio Quadros, o Correio da Manhã não parecia ter alternativa a não ser apoiar a posse de Jango, que uma Junta Militar tentava impedir de qualquer maneira. Bahia conta que a família de proprietários do jornal se dividiu e que o impasse só foi resolvido quando o dono, Paulo Bittencourt, que se encontrava no exterior, mandou um telegrama em defesa da legalidade. Mas a partir de fevereiro de 1962, quando o governo norte-americano decreta o embargo econômico a Cuba de Fidel Castro, e articula sua expulsão da OEA, "comecei a sofrer violentas pressões das agências norte-americanas", diz, dando o nome de uma delas, Mack. Ele revela que perdeu o posto 48 horas depois de ter uma conversa dura em que foi pressionado a aderir "à posição norte-americana." (Essa versão é contestada por um executivo que passou pelo Correio na mesma época. Para ele, a saída ocorreu em função de divergências de natureza profissional e não políticas).
De qualquer modo, dois anos mais tarde, nas 48 horas que definiram o golpe de 1964, o Correio publicou dois editoriais favoráveis ao golpe que derrubou Goulart: "Basta!" e "Fora!" O primeiro editorial saiu no dia em que os tanques do general Mourão deixaram Minas Gerais a caminho do Rio de Janeiro. O segundo, quando Goulart deixara o Rio a caminho de Brasília, sem perspectiva de resistir ao levante. Os dois textos, produzidos por influencia direta de Niomar Muniz Sodré Bittencourt, que herdara o comando da empresa e da redação, pegaram o governo de surpresa -- até então, o jornal era visto como aliado, inclusive favorável as reformas de base, em particular a reforma agrária. Anos depois, ao explicar a postura do jornal, o chefe de redação Oswaldo Peralva, que assumiu o cargo meses antes do golpe, disse que "a finalidade era provocar a renúncia ou o impedimento de João Goulart, de modo que a crise se resolvesse por via constitucional."
Nos anos seguintes, ao assumir uma postura crítica em relação ao regime que se consolidava, o jornal foi abandonado pelos principais anunciantes e perdeu sustentação econômica. A própria Niomar e Oswaldo Peralva foram presos após o AI-5. Vendido e revendido, com uma dívida imensa, o Correio conseguiu atravessar os piores anos da ditadura e fechou as portas em 1974, ano em que o regime dos generais sofreu uma derrota avassaladora nas eleições para o Congresso, que colocou o fim da ditadura no horizonte. A visão comum é que, com uma atuação aberta contra um regime que ajudara a instalar, o colapso do jornal tornara-se uma fatalidade. Nem todos envolvidos concordam com isso, porém.
Um dos mais completos jornalistas brasileiros, mestre Janio de Freitas foi superintendente do Correio entre maio e novembro de 1963, acumulando as funções de redator chefe e decisões de caráter administrativo.
Numa conversa que tivemos em 2012, Janio reconheceu que "a ditadura pressionou muito o jornal", mas deixou claro que estava convencido de que a publicação poderia ter sobrevivido. Admitiu uma situação de cerco mas argumentou que o Correio havia acumulado um prestígio único pela postura corajosa de resistência a ditadura, onde os artigos de Carlos Heitor Cony "cumpriram um papel fundamental." Na conversa, coerente com argumentos que na década anterior havia registrado no livro "Jornal Assassinado", ele disse que teria sido "preciso criar uma estratégia para enfrentar o cerco. E isso não foi feito."
A venda do Grupo ABC, maior holding de publicidade do país - e 25ª do mundo -, para a norte-americana Omnicom deve ser vista sob dois aspectos. Do ponto de vista da própria empresa, o negócio cumpre uma tendência seguida por outras agências de porte, inclusive a tradicional DPZ.
Principal acionista do ABC, o publicitário Nizan Guanaes fez uma carreira bem sucedida na área comercial e também no mundo político, onde era o criador preferido de Fernando Henrique Cardoso e do PSDB em geral. Isso não impediu que uma das empresas do Grupo conquistasse uma conta importante nos governos Lula-Dilma. Em 2014, quando a oposição animava a vergonhosa campanha anti-Copa, Nizan Guanaes deu sua contribuição para o bom andamento dos trabalhos ao lançar o slogan "Copa das Copas."
Há outro aspecto, porém. Quando se recorda a influência da publicidade sobre os meios de comunicação de qualquer país, inclusive o Brasil, é o caso de perguntar se a desnacionalização da publicidade não irá aprofundar a desnacionalização da própria mídia brasileira. É uma questão mais relevante do que parece.
Ainda que seja errado encarar as agências de publicidade como simples correias de transmissão de interesses econômicos e políticos de suas matrizes, seria uma ingenuidade ainda maior imaginar uma situação oposta, de independência absoluta.
Empresas de comunicação e jornalistas não costumam falar a respeito de suas relações com anunciantes, mantidas sob um véu de mistério e segredo. É um debate instrutivo e necessário, porém.
O financiamento de um jornal, uma revista ou um portal de internet forma a base material necessária para que ela possa chegar ao público. Nessa medida, é parte indispensável da liberdade de imprensa.
A Última Hora, o principal jornal popular do país em 1950 e 1960, não teria sido viabilizada sem apoio direto de empresários que apoiavam o governo de Getúlio Vargas e, mais tarde, de Juscelino e João Goulart.
Maior sucesso de bancas do década de 1970, o inesquecível Pasquim jamais recebeu, do mercado anunciante, o suporte publicitário correspondente. Produzido pelos mais talentosos humoristas do período, com uma venda em bancas que atingiu a marca espetacular de 200 000 exemplares por semana, era ignorado por empresas e agências que não tinham o menor interesse em atritar-se com a ditadura militar. Em entrevista a este blogue, o advogado Carlos Araújo revelou que o Pasquim chegou a receber apoio econômico da VAR-Palmares, uma das principais organizações que participaram da luta armada contra a ditadura, da qual foi o principal dirigente.
Num depoimento publicado no livro "Um Jornal Assassinado" (Jefferson de Andrade, Editora José Olympio, 1991), o jornalista Luiz Alberto Bahia traça um panorama dessa situação no interior do Correio da Manhã no início década de 1960. Ele era editor de opinião do jornal, um dos mais influentes do país.
Descreve um processo de elitização dos jornais brasileiros provocado pelo crescimento do poder das agências de publicidade sobre o faturamento do jornal, deixando claro que essa mudança trouxe, obviamente, alterações na linha editorial.
Conforme Bahia, o estilo independente do Correio da Manhã, "do editorial bravo, falante (ele diz que podia chegar a ser "inconsequente"), forte, começa a ser quebrado por influência da mudança do perfil da carteira publicitária." Ele descreve uma mudança de fundo nas formas de sustentação material dos jornais.
Se antes eles alimentavam suas receitas publicitárias a partir do pequeno anunciante, dos classificados, "do anúncio da cozinheira, do anúncio coletado pelos agentes do próprio jornal", a partir da industrialização e modernização ocorrida no país a partir da década de 1950, começaram a surgir "as agências de publicidade, aparecendo anúncios de prestígio, de bancos, da indústria automobilística." Para ele, "tudo isso acabou determinando uma mudança da relação jornal em sua opinião, com o seu perfil de renda. O jornal passou a sofrer muito mais a influência de agências, de anúncios de prestígio." Conforme Bahia, o fator que assegurava a independência editorial, que era o anúncio avulso, caiu." A pressão da área administrativa" sobre a redação "perdeu a cerimônia." Seções que não tinham suporte publicitário, e que antes eram publicadas pelo puro interesse jornalístico, foram suspensas.
Bahia também explica como funciona "a força de uma agência, sua relação com o jornal. É a força multiplicada de seus anunciantes." Assim, quando uma reportagem atinge "certo interesse, de um produto, agenciado por determinada agência, quando esta aborda o jornal, questionando, argumentando, não está falando apenas do poder daquele anunciante. Fala com o poder de toda a massa de seus anunciantes."
Nesse ambiente a linha de cobertura do jornal sofreu alterações que refletem a influência crescente de seus financiadores.
Por sua tradição democrática, em 1961, na renúncia de Jânio Quadros, o Correio da Manhã não parecia ter alternativa a não ser apoiar a posse de Jango, que uma Junta Militar tentava impedir de qualquer maneira. Bahia conta que a família de proprietários do jornal se dividiu e que o impasse só foi resolvido quando o dono, Paulo Bittencourt, que se encontrava no exterior, mandou um telegrama em defesa da legalidade. Mas a partir de fevereiro de 1962, quando o governo norte-americano decreta o embargo econômico a Cuba de Fidel Castro, e articula sua expulsão da OEA, "comecei a sofrer violentas pressões das agências norte-americanas", diz, dando o nome de uma delas, Mack. Ele revela que perdeu o posto 48 horas depois de ter uma conversa dura em que foi pressionado a aderir "à posição norte-americana." (Essa versão é contestada por um executivo que passou pelo Correio na mesma época. Para ele, a saída ocorreu em função de divergências de natureza profissional e não políticas).
De qualquer modo, dois anos mais tarde, nas 48 horas que definiram o golpe de 1964, o Correio publicou dois editoriais favoráveis ao golpe que derrubou Goulart: "Basta!" e "Fora!" O primeiro editorial saiu no dia em que os tanques do general Mourão deixaram Minas Gerais a caminho do Rio de Janeiro. O segundo, quando Goulart deixara o Rio a caminho de Brasília, sem perspectiva de resistir ao levante. Os dois textos, produzidos por influencia direta de Niomar Muniz Sodré Bittencourt, que herdara o comando da empresa e da redação, pegaram o governo de surpresa -- até então, o jornal era visto como aliado, inclusive favorável as reformas de base, em particular a reforma agrária. Anos depois, ao explicar a postura do jornal, o chefe de redação Oswaldo Peralva, que assumiu o cargo meses antes do golpe, disse que "a finalidade era provocar a renúncia ou o impedimento de João Goulart, de modo que a crise se resolvesse por via constitucional."
Nos anos seguintes, ao assumir uma postura crítica em relação ao regime que se consolidava, o jornal foi abandonado pelos principais anunciantes e perdeu sustentação econômica. A própria Niomar e Oswaldo Peralva foram presos após o AI-5. Vendido e revendido, com uma dívida imensa, o Correio conseguiu atravessar os piores anos da ditadura e fechou as portas em 1974, ano em que o regime dos generais sofreu uma derrota avassaladora nas eleições para o Congresso, que colocou o fim da ditadura no horizonte. A visão comum é que, com uma atuação aberta contra um regime que ajudara a instalar, o colapso do jornal tornara-se uma fatalidade. Nem todos envolvidos concordam com isso, porém.
Um dos mais completos jornalistas brasileiros, mestre Janio de Freitas foi superintendente do Correio entre maio e novembro de 1963, acumulando as funções de redator chefe e decisões de caráter administrativo.
Numa conversa que tivemos em 2012, Janio reconheceu que "a ditadura pressionou muito o jornal", mas deixou claro que estava convencido de que a publicação poderia ter sobrevivido. Admitiu uma situação de cerco mas argumentou que o Correio havia acumulado um prestígio único pela postura corajosa de resistência a ditadura, onde os artigos de Carlos Heitor Cony "cumpriram um papel fundamental." Na conversa, coerente com argumentos que na década anterior havia registrado no livro "Jornal Assassinado", ele disse que teria sido "preciso criar uma estratégia para enfrentar o cerco. E isso não foi feito."
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