Por Jorge Varaschin, no site Brasil Debate:
Nos últimos meses, mostrou-se a base quase mítica sob a qual se sustenta o debate econômico em geral, e o brasileiro, em particular. Não apenas porque o desenvolvimento econômico é um tema controverso, capaz de tornar o debate nebuloso, escondendo o essencial de qualquer tipo de discussão, mas, principalmente, por ser inerentemente ideológico, traz em si (e em suas aparentes justificativas) interesses de classes. A suposta neutralidade científica da ortodoxia econômica não cabe no mundo real.
Apesar da retórica oficial de combate à inflação, a defesa tenaz da austeridade por parte de grupos ligados ao mercado financeiro é carregada de interesses bastante específicos e autorreferentes.
Nessa conjuntura, a questão principal e que deve assumir seu lugar no debate econômico atual, são as causas da inflação brasileira, hoje assentadas, usando alguns termos da psicanálise, na obsessão de parte do mainstream por uma inflação de demanda (para a outra parte tem a estrutura de um fetiche, já que, na interação exclusiva com o objeto parcial, no caso, a inflação, deixa de perceber a totalidade que esta pressupõe, a economia brasileira), cenário no qual o processo inflacionário reflete o aumento da procura de bens e serviços em relação a sua oferta.
Há mais de duas décadas o receituário ortodoxo repete esse mantra para todo país e o conhecido tripé macroeconômico (metas de inflação, superávit primário e câmbio flutuante) baseia-se justamente nessa crença.
No entanto, apresenta-se como um “remédio” pior que a “doença”: mata o paciente, sem tocar nas verdadeiras causas do problema, já que suas raízes são mais profundas, relacionando-se com a própria forma como se construiu o processo de industrialização nacional.
A estrutura produtiva brasileira, associada à grande empresa oligopólica de capital estrangeiro, é majoritária, tendo seus os setores mais dinâmicos nas mãos de algumas poucas empresas capazes de exercer seu poder de monopólio.
Esses agentes conseguem defender suas margens de lucro, mesmo em cenários de baixo crescimento, o que dá nova ênfase à contradição entre lucros e salários.
Com o referido poder de monopólio, que permite concorrência por diferenciação de produto (e não via preços), reduz-se a possibilidade de quedas generalizadas nos custos de produção, fazendo com que a capacidade instalada torne-se estruturalmente pouca afeita ao aumento da produtividade do trabalho, reduzindo, com isso, o potencial dinâmico do crescimento econômico.
Mais do que isso: qualquer aumento nos custos é repassado, em grande parte, via preços, tornando-se essa a variável de ajuste que permite a manutenção ou, pelo menos, a sustentação em níveis razoáveis das margens de ganho.
Nesses cenários, aumentos salariais são também repassados para os preços das mercadorias comercializadas, expondo a seguinte questão: a possibilidade de proteção das taxas de lucro, fruto do poder de monopólio, redefine a problemática lucros-salários: a contradição anterior, central no processo de acumulação de capital, aparece na dicotomia nível de preços-salários, o que, de fato, obscurece a relação contraditória essencial (lucros-salários) por um “problema difícil” (nível geral de preços-salários) no interior do debate sobre a gestão da política econômica, com efeitos diretos na distribuição de renda.
Nesse contexto, as margens de ganho dos capitais investidos estão protegidas com relação ao aumento dos custos de produção em geral, e elevações salariais, em particular.
Dessa forma, possuem um piso, porém não um teto: em momentos de expansão variam mais que proporcionalmente aos salários; em conjunturais recessivas, têm neles uma “variável de ajuste” para baixo.
Fora isso, há sempre a questão dos juros altos: em momentos de baixo crescimento, há a possibilidade de aplicação financeira no mercado de títulos públicos, com elevada taxa de retorno sem os riscos inerentes à atividade produtiva.
Assim, o ajuste fiscal atua sob uma fantasia: o “combate” à inflação é feito à custa do emprego e renda dos trabalhadores, tendo como base um diagnóstico completamente equivocado.
Num cenário de baixo crescimento, como a atual conjuntura da economia brasileira, a capacidade de repasse das elevações de custo para os preços, estabelecendo a defesa das margens de ganhos, mantém a pressão sobre o nível geral de preços, mesmo sem aumento na procura de bens e serviços.
Além disso, a possibilidade de ganhos de tesouraria, isto é, no mercado de títulos, reforça a necessidade da ampliação de investimentos e gastos públicos, capazes de manter a atividade econômica em níveis razoáveis.
Em outras palavras, a falta de investimento privado abre um espaço ocupado pelo orçamento público, tendo em vista uma política contracíclica, a favor da manutenção da atividade econômica.
Aqui se chega a uma inversão ideológica essencial, alardeada como “cânone” de políticas fiscais “sadias” (na lógica ortodoxa, é claro): o mesmo cenário que mantém a pressão de preços num cenário de baixo crescimento reforça o aumento dos gastos públicos, ou seja, não são os gastos governamentais que geram ou aceleram o processo inflacionário; pelo contrário: a pressão sob o nível de preços e a elevação dos gastos públicos são duas faces da mesma moeda num cenário recessivo.
A pressão sob os preços existe, como já explicado, e o aumento dos gastos visa simplesmente a manutenção do nível de atividade.
É por isso que o ajuste fiscal aplicado, no atual estado da economia brasileira, mostra-se desastroso. Além de diminuir ainda mais a atividade econômica, com aumento do desemprego e da renda gerada, não resulta em grande queda no nível geral de preços.
Adicionalmente, seu efeito político faz emergir ainda uma importante questão: se em momentos de expansão econômica é possível compor com o capital industrial, interessado em políticas expansionistas capazes de elevar suas margens de ganho, em conjunturas recessivas ou de baixo crescimento, isso é muito pouco provável, já que adota uma postura explicitamente defensiva, atuando conjuntamente com o capital financeiro por políticas restritivas, que forcem a queda no nível real de salários.
Esse cenário demonstra de maneira notável como a inflação hoje aparece no imaginário nacional como uma condensação de nossos temores dispersos: em nome de seu suposto combate permitem-se políticas cujos efeitos são ainda mais deletérios.
Como qualquer inversão ideológica, sua centralidade no debate atual mais mistifica do que revela suas causas essenciais e é justamente isso que faz com que este não ocorra de maneira efetiva.
Dessa forma, a questão inflacionária atua, no interior da discussão econômica, como uma espécie de interdição: a aparência do debate que o tema supostamente engendra é o elo que impede sua possibilidade real, isto é, a forma como este se desenrola demonstra sua efetiva não ocorrência.
Enfim, cumpre sua função de distorção dentro do discurso econômico ortodoxo, minando as bases de um debate lúcido e genuíno sobre o atual momento da economia brasileira.
Nos últimos meses, mostrou-se a base quase mítica sob a qual se sustenta o debate econômico em geral, e o brasileiro, em particular. Não apenas porque o desenvolvimento econômico é um tema controverso, capaz de tornar o debate nebuloso, escondendo o essencial de qualquer tipo de discussão, mas, principalmente, por ser inerentemente ideológico, traz em si (e em suas aparentes justificativas) interesses de classes. A suposta neutralidade científica da ortodoxia econômica não cabe no mundo real.
Apesar da retórica oficial de combate à inflação, a defesa tenaz da austeridade por parte de grupos ligados ao mercado financeiro é carregada de interesses bastante específicos e autorreferentes.
Nessa conjuntura, a questão principal e que deve assumir seu lugar no debate econômico atual, são as causas da inflação brasileira, hoje assentadas, usando alguns termos da psicanálise, na obsessão de parte do mainstream por uma inflação de demanda (para a outra parte tem a estrutura de um fetiche, já que, na interação exclusiva com o objeto parcial, no caso, a inflação, deixa de perceber a totalidade que esta pressupõe, a economia brasileira), cenário no qual o processo inflacionário reflete o aumento da procura de bens e serviços em relação a sua oferta.
Há mais de duas décadas o receituário ortodoxo repete esse mantra para todo país e o conhecido tripé macroeconômico (metas de inflação, superávit primário e câmbio flutuante) baseia-se justamente nessa crença.
No entanto, apresenta-se como um “remédio” pior que a “doença”: mata o paciente, sem tocar nas verdadeiras causas do problema, já que suas raízes são mais profundas, relacionando-se com a própria forma como se construiu o processo de industrialização nacional.
A estrutura produtiva brasileira, associada à grande empresa oligopólica de capital estrangeiro, é majoritária, tendo seus os setores mais dinâmicos nas mãos de algumas poucas empresas capazes de exercer seu poder de monopólio.
Esses agentes conseguem defender suas margens de lucro, mesmo em cenários de baixo crescimento, o que dá nova ênfase à contradição entre lucros e salários.
Com o referido poder de monopólio, que permite concorrência por diferenciação de produto (e não via preços), reduz-se a possibilidade de quedas generalizadas nos custos de produção, fazendo com que a capacidade instalada torne-se estruturalmente pouca afeita ao aumento da produtividade do trabalho, reduzindo, com isso, o potencial dinâmico do crescimento econômico.
Mais do que isso: qualquer aumento nos custos é repassado, em grande parte, via preços, tornando-se essa a variável de ajuste que permite a manutenção ou, pelo menos, a sustentação em níveis razoáveis das margens de ganho.
Nesses cenários, aumentos salariais são também repassados para os preços das mercadorias comercializadas, expondo a seguinte questão: a possibilidade de proteção das taxas de lucro, fruto do poder de monopólio, redefine a problemática lucros-salários: a contradição anterior, central no processo de acumulação de capital, aparece na dicotomia nível de preços-salários, o que, de fato, obscurece a relação contraditória essencial (lucros-salários) por um “problema difícil” (nível geral de preços-salários) no interior do debate sobre a gestão da política econômica, com efeitos diretos na distribuição de renda.
Nesse contexto, as margens de ganho dos capitais investidos estão protegidas com relação ao aumento dos custos de produção em geral, e elevações salariais, em particular.
Dessa forma, possuem um piso, porém não um teto: em momentos de expansão variam mais que proporcionalmente aos salários; em conjunturais recessivas, têm neles uma “variável de ajuste” para baixo.
Fora isso, há sempre a questão dos juros altos: em momentos de baixo crescimento, há a possibilidade de aplicação financeira no mercado de títulos públicos, com elevada taxa de retorno sem os riscos inerentes à atividade produtiva.
Assim, o ajuste fiscal atua sob uma fantasia: o “combate” à inflação é feito à custa do emprego e renda dos trabalhadores, tendo como base um diagnóstico completamente equivocado.
Num cenário de baixo crescimento, como a atual conjuntura da economia brasileira, a capacidade de repasse das elevações de custo para os preços, estabelecendo a defesa das margens de ganhos, mantém a pressão sobre o nível geral de preços, mesmo sem aumento na procura de bens e serviços.
Além disso, a possibilidade de ganhos de tesouraria, isto é, no mercado de títulos, reforça a necessidade da ampliação de investimentos e gastos públicos, capazes de manter a atividade econômica em níveis razoáveis.
Em outras palavras, a falta de investimento privado abre um espaço ocupado pelo orçamento público, tendo em vista uma política contracíclica, a favor da manutenção da atividade econômica.
Aqui se chega a uma inversão ideológica essencial, alardeada como “cânone” de políticas fiscais “sadias” (na lógica ortodoxa, é claro): o mesmo cenário que mantém a pressão de preços num cenário de baixo crescimento reforça o aumento dos gastos públicos, ou seja, não são os gastos governamentais que geram ou aceleram o processo inflacionário; pelo contrário: a pressão sob o nível de preços e a elevação dos gastos públicos são duas faces da mesma moeda num cenário recessivo.
A pressão sob os preços existe, como já explicado, e o aumento dos gastos visa simplesmente a manutenção do nível de atividade.
É por isso que o ajuste fiscal aplicado, no atual estado da economia brasileira, mostra-se desastroso. Além de diminuir ainda mais a atividade econômica, com aumento do desemprego e da renda gerada, não resulta em grande queda no nível geral de preços.
Adicionalmente, seu efeito político faz emergir ainda uma importante questão: se em momentos de expansão econômica é possível compor com o capital industrial, interessado em políticas expansionistas capazes de elevar suas margens de ganho, em conjunturas recessivas ou de baixo crescimento, isso é muito pouco provável, já que adota uma postura explicitamente defensiva, atuando conjuntamente com o capital financeiro por políticas restritivas, que forcem a queda no nível real de salários.
Esse cenário demonstra de maneira notável como a inflação hoje aparece no imaginário nacional como uma condensação de nossos temores dispersos: em nome de seu suposto combate permitem-se políticas cujos efeitos são ainda mais deletérios.
Como qualquer inversão ideológica, sua centralidade no debate atual mais mistifica do que revela suas causas essenciais e é justamente isso que faz com que este não ocorra de maneira efetiva.
Dessa forma, a questão inflacionária atua, no interior da discussão econômica, como uma espécie de interdição: a aparência do debate que o tema supostamente engendra é o elo que impede sua possibilidade real, isto é, a forma como este se desenrola demonstra sua efetiva não ocorrência.
Enfim, cumpre sua função de distorção dentro do discurso econômico ortodoxo, minando as bases de um debate lúcido e genuíno sobre o atual momento da economia brasileira.
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