Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Ao decidir abandonar o governo Dilma depois de vampirizar todas as artérias do Estado brasileiro, exibindo sem constrangimento um apetite guloso e incontrolável, a maioria do PMDB contribuiu para elevar em grau absurdo um conhecido traço da política brasileira - o cinismo.
Vamos combinar: com 17 implicados - até agora - na Lava Jato, o PMDB confirma que possui uma periculosidade inferior apenas ao velho PP, herdeiro do PDS da ditadura, mas vem à frente do Partido dos Trabalhadores, por boa vantagem.
Ao apoiar uma proposta de impeachment sem crime de responsabilidade contra a presidente da República, a maioria de seus membros pretende votar a favor de um golpe de Estado operado pelo suíço Eduardo Cunha, um de seus grandes caciques nacionais, elo de ligação direta com os esquemas clandestinos desde os tempos de Fernando Collor e PC Farias. Seu maior beneficiário, Michel Temer, escolheu fazer história recolhendo os dejetos disponíveis na porta dos fundos da evolução humana.
Por uma dessas infelizes coincidências da política brasileira, como presidente do PMDB Temer é herdeiro funcional de Ulysses Guimarães, um dos grandes líderes políticos da história brasileira no século XX. Num dado comum à biografia da maioria dos seres humanos, Ulysses cometeu um erro grave em sua trajetória. Em março de 1964, foi um dos votos favoráveis ao golpe militar que depôs João Goulart. Depois que o novo regime mostrou-se capaz de cometer crimes hediondos, que muitos aliados julgavam impensáveis naqueles momentos iniciais, Ulysses mudou de lado. Aderiu à causa democrática, da qual tornou-se um dos líderes indispensáveis e corajosos.
Em 2016, Temer, cuja atividade contra a ditadura não deixou registros destacados, tenta seu lugar na história como laranja de um golpe onde assumiu o risco de trair - a palavra é essa, desculpem a dureza - o movimento político que permitiu sua chegada ao Palácio Jaburu. Fez sua parte na coleta de votos, sim. Entregou o tempo na TV, que fez diferença inegável na campanha. Também recebeu recompensas inegáveis, inclusive a maior fatia do ministério. Agora, na hora mais difícil, muda de lado e auxilia no retrocesso.
Numa articulação nascida, em outubro de 2014, para impedir a posse de Dilma e dele próprio no segundo mandato, o que dá uma ideia dos valores partilhados com suas novas companhias, Temer pode colher benefícios de uma denúncia sobre créditos suplementares - a única que consta no pedido de afastamento da presidente. É uma acusação que, se tivesse caráter criminoso, como quer a oposição, não poderia poupá-lo, já que o vice deixou seu autógrafo de vice em decretos assinados em 2014 e também em 2015, que somam R$ 10,7 bilhões. É escandaloso.
Numa nota divulgada na época em que os gastos vieram a público, o vice empregou argumentos que não combinam com suas reconhecidas qualidades como professor de Direito. Tampouco estão de acordo com seu papel político.
Como se a vice-presidência garantisse a condição de inimputável a seus ocupantes - pelo Direito Penal, essa alegação cabe a doentes mentais graves, ou pessoas em estado de embriaguez completa no momento em que um crime foi cometido -, alegou em nota escrita na terceira pessoa que "o vice presidente não formula a política econômica ou fiscal. Não entra no mérito das matérias objeto de decretos ou leis." A verdade é dura também para o vice presidente. Se discordasse do que leu, bastava não assinar. Nada o obrigava. Não cabe sequer a desculpa de perder emprego, pois um vice não é demissível pela titular.
Comparado a Itamar Franco, o comportamento de Temer chama a atenção pela sede exibida em chegar ao pote. O vice de Collor assistiu, em silêncio, sem movimentos suspeitos, a articulação que produziu a queda do presidente. Essa postura rendeu frutos positivos para formar o novo governo. Empossado sem dever favores aos novos sócios, Itamar pode fazer o governo que gostaria, como queria. Teve forças para fazer um primeiro plano anti-inflacionário que durou mais do que 12 meses. Tinha uma legitimidade inegável, sempre difícil para quem é um número 2 e nunca teve luz própria junto ao eleitorado.
A lembrança desses fatos ajuda a sublinhar um aspecto importante. Não há superioridade moral no recém-formado condomínio partidário que pretende dar o golpe contra Dilma Rousseff. É uma questão de oportunidade e conveniência, na qual valores éticos que levam tantas pessoas as ruas são manipulados para servir de cobertura e justificativa para decisões que atendem a interesses políticos. Ao repudiar, em um ano e quatro meses, o programa progressista pelo qual seu partido chegou ao Planalto, em 2010 e 2014, para assumir uma plataforma que pudesse transformá-lo num nome palatável pelo conservadorismo mais reacionário, Temer apenas se contorce num esforço para facilitar o acesso ao poder, em qualquer condição.
O vice tenta assumir a presidência como a fase visível de uma aliança de dinossauros derrotados da política brasileira, personagens de um tempo de pior concentração de renda, salário mínimo inferior em termos reais, mais desemprego e submissão aos interesses do mercado. Nada de novo sob esta ponte, o que explica a preferência por uma opção que não passe pelas urnas. Mais uma vez, o anti-Ulysses, o senhor Diretas.
A mobilização popular continua sendo o principal elemento da situação política e terá um papel decisivo no desfecho final da crise, que ninguém sabe quando será. O esforço da bancada golpista para conseguir 342 votos não é pequeno nem terá sucesso garantido, num país onde a ideia democrática de que é preciso resistir a um golpe de Estado está acima dos partidos e ideologias. Ao contrário do que ocorreu em 1992, na queda de Collor, o país está dividido e basta andar pelas ruas para assistir o crescimento do repúdio a uma iniciativa que implica num retrocesso político inaceitável.
Coube ao governo Dilma proibir manifestações anti democráticas de lideres militares e civis que festejavam o golpe de 1964, que derrubou um presidente constitucional. Nesta quinta-feira, o calendário marca a passagem de 42 anos de um golpe nascido para durar um ano e que se prolongou por duas décadas. É um dia de protesto não apenas pelo passado - mas uma advertência quanto ao futuro.
Ao decidir abandonar o governo Dilma depois de vampirizar todas as artérias do Estado brasileiro, exibindo sem constrangimento um apetite guloso e incontrolável, a maioria do PMDB contribuiu para elevar em grau absurdo um conhecido traço da política brasileira - o cinismo.
Vamos combinar: com 17 implicados - até agora - na Lava Jato, o PMDB confirma que possui uma periculosidade inferior apenas ao velho PP, herdeiro do PDS da ditadura, mas vem à frente do Partido dos Trabalhadores, por boa vantagem.
Ao apoiar uma proposta de impeachment sem crime de responsabilidade contra a presidente da República, a maioria de seus membros pretende votar a favor de um golpe de Estado operado pelo suíço Eduardo Cunha, um de seus grandes caciques nacionais, elo de ligação direta com os esquemas clandestinos desde os tempos de Fernando Collor e PC Farias. Seu maior beneficiário, Michel Temer, escolheu fazer história recolhendo os dejetos disponíveis na porta dos fundos da evolução humana.
Por uma dessas infelizes coincidências da política brasileira, como presidente do PMDB Temer é herdeiro funcional de Ulysses Guimarães, um dos grandes líderes políticos da história brasileira no século XX. Num dado comum à biografia da maioria dos seres humanos, Ulysses cometeu um erro grave em sua trajetória. Em março de 1964, foi um dos votos favoráveis ao golpe militar que depôs João Goulart. Depois que o novo regime mostrou-se capaz de cometer crimes hediondos, que muitos aliados julgavam impensáveis naqueles momentos iniciais, Ulysses mudou de lado. Aderiu à causa democrática, da qual tornou-se um dos líderes indispensáveis e corajosos.
Em 2016, Temer, cuja atividade contra a ditadura não deixou registros destacados, tenta seu lugar na história como laranja de um golpe onde assumiu o risco de trair - a palavra é essa, desculpem a dureza - o movimento político que permitiu sua chegada ao Palácio Jaburu. Fez sua parte na coleta de votos, sim. Entregou o tempo na TV, que fez diferença inegável na campanha. Também recebeu recompensas inegáveis, inclusive a maior fatia do ministério. Agora, na hora mais difícil, muda de lado e auxilia no retrocesso.
Numa articulação nascida, em outubro de 2014, para impedir a posse de Dilma e dele próprio no segundo mandato, o que dá uma ideia dos valores partilhados com suas novas companhias, Temer pode colher benefícios de uma denúncia sobre créditos suplementares - a única que consta no pedido de afastamento da presidente. É uma acusação que, se tivesse caráter criminoso, como quer a oposição, não poderia poupá-lo, já que o vice deixou seu autógrafo de vice em decretos assinados em 2014 e também em 2015, que somam R$ 10,7 bilhões. É escandaloso.
Numa nota divulgada na época em que os gastos vieram a público, o vice empregou argumentos que não combinam com suas reconhecidas qualidades como professor de Direito. Tampouco estão de acordo com seu papel político.
Como se a vice-presidência garantisse a condição de inimputável a seus ocupantes - pelo Direito Penal, essa alegação cabe a doentes mentais graves, ou pessoas em estado de embriaguez completa no momento em que um crime foi cometido -, alegou em nota escrita na terceira pessoa que "o vice presidente não formula a política econômica ou fiscal. Não entra no mérito das matérias objeto de decretos ou leis." A verdade é dura também para o vice presidente. Se discordasse do que leu, bastava não assinar. Nada o obrigava. Não cabe sequer a desculpa de perder emprego, pois um vice não é demissível pela titular.
Comparado a Itamar Franco, o comportamento de Temer chama a atenção pela sede exibida em chegar ao pote. O vice de Collor assistiu, em silêncio, sem movimentos suspeitos, a articulação que produziu a queda do presidente. Essa postura rendeu frutos positivos para formar o novo governo. Empossado sem dever favores aos novos sócios, Itamar pode fazer o governo que gostaria, como queria. Teve forças para fazer um primeiro plano anti-inflacionário que durou mais do que 12 meses. Tinha uma legitimidade inegável, sempre difícil para quem é um número 2 e nunca teve luz própria junto ao eleitorado.
A lembrança desses fatos ajuda a sublinhar um aspecto importante. Não há superioridade moral no recém-formado condomínio partidário que pretende dar o golpe contra Dilma Rousseff. É uma questão de oportunidade e conveniência, na qual valores éticos que levam tantas pessoas as ruas são manipulados para servir de cobertura e justificativa para decisões que atendem a interesses políticos. Ao repudiar, em um ano e quatro meses, o programa progressista pelo qual seu partido chegou ao Planalto, em 2010 e 2014, para assumir uma plataforma que pudesse transformá-lo num nome palatável pelo conservadorismo mais reacionário, Temer apenas se contorce num esforço para facilitar o acesso ao poder, em qualquer condição.
O vice tenta assumir a presidência como a fase visível de uma aliança de dinossauros derrotados da política brasileira, personagens de um tempo de pior concentração de renda, salário mínimo inferior em termos reais, mais desemprego e submissão aos interesses do mercado. Nada de novo sob esta ponte, o que explica a preferência por uma opção que não passe pelas urnas. Mais uma vez, o anti-Ulysses, o senhor Diretas.
A mobilização popular continua sendo o principal elemento da situação política e terá um papel decisivo no desfecho final da crise, que ninguém sabe quando será. O esforço da bancada golpista para conseguir 342 votos não é pequeno nem terá sucesso garantido, num país onde a ideia democrática de que é preciso resistir a um golpe de Estado está acima dos partidos e ideologias. Ao contrário do que ocorreu em 1992, na queda de Collor, o país está dividido e basta andar pelas ruas para assistir o crescimento do repúdio a uma iniciativa que implica num retrocesso político inaceitável.
Coube ao governo Dilma proibir manifestações anti democráticas de lideres militares e civis que festejavam o golpe de 1964, que derrubou um presidente constitucional. Nesta quinta-feira, o calendário marca a passagem de 42 anos de um golpe nascido para durar um ano e que se prolongou por duas décadas. É um dia de protesto não apenas pelo passado - mas uma advertência quanto ao futuro.
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