Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
A notícia de que a Operação Lava Jato decidiu investigar os vazamentos de informações internas deveria ser recebida com menos naturalidade por parte da mídia grande, principal beneficiária de notícias exclusivas sobre investigações que, em princípio, deveriam ocorrer em segredo.
Toda instituição pública ou privada tem o direito de apurar responsabilidades internas pelo vazamento de informações de circulação restrita. É uma forma de defesa e proteção da imagem.
O complicado se encontra no outro lado do guichê: quando se tenta conduzir a apuração para o interior de jornais e revistas que exercem o direito sagrado a liberdade de expressão. Um dos pontos altos da Constituição brasileira, o capítulo sobre direitos individuais protege o sigilo da fonte como garantia constitucional. Quem fala de vazamentos, e sabe do que está falando, cedo ou tarde chegará aí.
O uso dos vazamentos - quando isso convém a seu ponto de vista - é defendido sem maiores rodeios por Sérgio Moro no célebre artigo sobre a Operação Mãos Limpas, escrito em 2004, que pode ser visto como uma reflexão preparatória da Lava Jato.
Avaliando a dificuldade de investigar, processar e prender lideranças com respaldo legítimo na sociedade italiana, que poderia reagir inconformada durante o processo, Moro explica a necessidade de "deslegitimar" a classe política. "Ao mesmo tempo em que tornava a ação judicial possível, a deslegitimação era por ela alimentada", escreve.
Em outro trecho, o juiz da Lava Jato esclarece: "A investigação vazava como uma peneira. Tão logo alguém era preso, detalhes de sua confissão era veiculada no L'Espresso, no La Reppublica e outros jornais e revistas simpatizantes (o grifo é meu)." Difícil negar que, uma década depois, com simples mudanças de nome e endereço, a mesma estratégia esteja sendo aplicada no Brasil.
Os vazamentos têm um aspecto utilitário: ajudam a destruir a imagem pública dos acusados, assegurando credibilidade para denúncias que não se consegue demonstrar de forma límpida.
Vazando "como uma peneira" informações que lhe interessam, a Lava Jato consegue amortecer eventuais reações contra acusados reconhecidos pela população. Fica incomodada, porém, quando pode ser úteis para a defesa, contribuindo para questionar o que acontece. Estamos num caso claro de dois pesos, duas medidas -- nada de novo, certo?
Não é coincidência que o problema tenha surgido agora, no momento em que a Lava Jato enfrenta uma etapa decisiva, histórica, do ponto de vista político e jurídico: cercar e tentar condenar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o mais popular político brasileiro, sem equivalência ao lado da massa de ilustres desconhecidos - para a grande massa da população - levados para a carceragem de Curitiba. Estamos falando do personagem cujo destino marcará a fronteira não só da operação -- mas da própria democracia brasileira e seus limites em futuro próximo.
Verdade que, em parte, Lula já foi atingido, como era inevitável, pelas sucessivas reportagens que, tratando informações vazadas contra ele como prova de verdade, lhe reservam um único direito: "negar" que seja o proprietário do triplex do Guarujá e "negar" que tenha comprado o sítio de Atibaia. É um tratamento desigual, apenas coreográfico, que ajuda a criar um ambiente de pré-condenação, "deslegitimando" possíveis argumentos em sua defesa.
O truque é este: não se demonstra que Lula comprou o triplex nem o sítio, situação que deveria levar ao reconhecimento de que é inocente até que se prove o contrário. É tratado como um cidadão suspeito que apenas "nega" sua culpa. Um pré-condenado que, cedo ou tarde, não terá mais quem o defenda e poderá ser condenado -- mesmo que as provas continuem fracas como sempre foram.
A reação popular à condução coercitiva de Lula pela Polícia Federal demonstrou, porém, que este trabalho de destruição está longe de ter sido completado. Ao contrário do que ocorreu em outros 117 casos anteriores de condução coercitiva, uma parcela significativa dos brasileiros fez questão de demonstrar sua indignação. Pode-se acreditar que tudo teria ocorrido da mesma forma, se a Folha de S. Paulo não tivesse a postos às 5 da manhã em frente à casa de Lula? Se a notícia não tivesse explodido nas redes sociais? Duvido.
A experiência, em qualquer país onde vigoram valores democráticos, informa que a decisão de publicar - ou não - informações consideradas confidenciais é responsabilidade dos próprios meios de comunicação. É um princípio, que protege os jornais e a população em seu direito a ser informada, em particular sobre assuntos de interesse público indiscutível.
Abrir mão desse direito, aceitando tentativas mesmo informais de pressão externa, é uma maneira lamentável de adaptar-se a um estado de coisas policialesco, postura nefasta que já marcou boa parte da imprensa brasileira durante o regime militar. Naquele tempo, empregava-se a censura justamente para impedir que a população fosse informada sobre o destino macabro reservado a cidadãos que eram feitos prisioneiros. Como uma coisa sempre leva a outra, a censura encaixava-se com a supressão de outro direito, ao habeas corpus, suspenso na treva do AI-5. Curioso, não?
Para colocar o debate em campo neutro. Embora soubesse da decisão do governo norte-americano em apoiar a invasão da Baía dos Porcos, num grotesco ato de sabotagem contra a revolução de Fidel Castro, o mais influente jornal dos Estados Unidos, New York Times, decidiu não publicar uma linha a respeito. A operação contra revolucionária foi um vexame e o saldo foi inevitável. Após um longo e demorado processo de avaliação interna, o New York Times fez a necessária autocrítica. Em 1971, o mesmo jornal enfrentou o Pentágono e a Casa Branca para publicar os célebres "Papéis do Pentágono", que traziam informações secretas sobre o debate dentro do governo sobre os rumos da guerra do Vietnã. Levando a guerra até a Suprema Corte, o jornal foi autorizado a publicar os documentos.
Glorificado como um dos heróis da liberdade de imprensa, Emile Zola foi preso e condenado pela publicação do célebre Eu Acuso, onde denunciava a fraude que levou a condenação do capitão Dreyfus. Para não cumprir pena de prisão, fugiu para a Inglaterra.
A notícia de que a Operação Lava Jato decidiu investigar os vazamentos de informações internas deveria ser recebida com menos naturalidade por parte da mídia grande, principal beneficiária de notícias exclusivas sobre investigações que, em princípio, deveriam ocorrer em segredo.
Toda instituição pública ou privada tem o direito de apurar responsabilidades internas pelo vazamento de informações de circulação restrita. É uma forma de defesa e proteção da imagem.
O complicado se encontra no outro lado do guichê: quando se tenta conduzir a apuração para o interior de jornais e revistas que exercem o direito sagrado a liberdade de expressão. Um dos pontos altos da Constituição brasileira, o capítulo sobre direitos individuais protege o sigilo da fonte como garantia constitucional. Quem fala de vazamentos, e sabe do que está falando, cedo ou tarde chegará aí.
O uso dos vazamentos - quando isso convém a seu ponto de vista - é defendido sem maiores rodeios por Sérgio Moro no célebre artigo sobre a Operação Mãos Limpas, escrito em 2004, que pode ser visto como uma reflexão preparatória da Lava Jato.
Avaliando a dificuldade de investigar, processar e prender lideranças com respaldo legítimo na sociedade italiana, que poderia reagir inconformada durante o processo, Moro explica a necessidade de "deslegitimar" a classe política. "Ao mesmo tempo em que tornava a ação judicial possível, a deslegitimação era por ela alimentada", escreve.
Em outro trecho, o juiz da Lava Jato esclarece: "A investigação vazava como uma peneira. Tão logo alguém era preso, detalhes de sua confissão era veiculada no L'Espresso, no La Reppublica e outros jornais e revistas simpatizantes (o grifo é meu)." Difícil negar que, uma década depois, com simples mudanças de nome e endereço, a mesma estratégia esteja sendo aplicada no Brasil.
Os vazamentos têm um aspecto utilitário: ajudam a destruir a imagem pública dos acusados, assegurando credibilidade para denúncias que não se consegue demonstrar de forma límpida.
Vazando "como uma peneira" informações que lhe interessam, a Lava Jato consegue amortecer eventuais reações contra acusados reconhecidos pela população. Fica incomodada, porém, quando pode ser úteis para a defesa, contribuindo para questionar o que acontece. Estamos num caso claro de dois pesos, duas medidas -- nada de novo, certo?
Não é coincidência que o problema tenha surgido agora, no momento em que a Lava Jato enfrenta uma etapa decisiva, histórica, do ponto de vista político e jurídico: cercar e tentar condenar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o mais popular político brasileiro, sem equivalência ao lado da massa de ilustres desconhecidos - para a grande massa da população - levados para a carceragem de Curitiba. Estamos falando do personagem cujo destino marcará a fronteira não só da operação -- mas da própria democracia brasileira e seus limites em futuro próximo.
Verdade que, em parte, Lula já foi atingido, como era inevitável, pelas sucessivas reportagens que, tratando informações vazadas contra ele como prova de verdade, lhe reservam um único direito: "negar" que seja o proprietário do triplex do Guarujá e "negar" que tenha comprado o sítio de Atibaia. É um tratamento desigual, apenas coreográfico, que ajuda a criar um ambiente de pré-condenação, "deslegitimando" possíveis argumentos em sua defesa.
O truque é este: não se demonstra que Lula comprou o triplex nem o sítio, situação que deveria levar ao reconhecimento de que é inocente até que se prove o contrário. É tratado como um cidadão suspeito que apenas "nega" sua culpa. Um pré-condenado que, cedo ou tarde, não terá mais quem o defenda e poderá ser condenado -- mesmo que as provas continuem fracas como sempre foram.
A reação popular à condução coercitiva de Lula pela Polícia Federal demonstrou, porém, que este trabalho de destruição está longe de ter sido completado. Ao contrário do que ocorreu em outros 117 casos anteriores de condução coercitiva, uma parcela significativa dos brasileiros fez questão de demonstrar sua indignação. Pode-se acreditar que tudo teria ocorrido da mesma forma, se a Folha de S. Paulo não tivesse a postos às 5 da manhã em frente à casa de Lula? Se a notícia não tivesse explodido nas redes sociais? Duvido.
A experiência, em qualquer país onde vigoram valores democráticos, informa que a decisão de publicar - ou não - informações consideradas confidenciais é responsabilidade dos próprios meios de comunicação. É um princípio, que protege os jornais e a população em seu direito a ser informada, em particular sobre assuntos de interesse público indiscutível.
Abrir mão desse direito, aceitando tentativas mesmo informais de pressão externa, é uma maneira lamentável de adaptar-se a um estado de coisas policialesco, postura nefasta que já marcou boa parte da imprensa brasileira durante o regime militar. Naquele tempo, empregava-se a censura justamente para impedir que a população fosse informada sobre o destino macabro reservado a cidadãos que eram feitos prisioneiros. Como uma coisa sempre leva a outra, a censura encaixava-se com a supressão de outro direito, ao habeas corpus, suspenso na treva do AI-5. Curioso, não?
Para colocar o debate em campo neutro. Embora soubesse da decisão do governo norte-americano em apoiar a invasão da Baía dos Porcos, num grotesco ato de sabotagem contra a revolução de Fidel Castro, o mais influente jornal dos Estados Unidos, New York Times, decidiu não publicar uma linha a respeito. A operação contra revolucionária foi um vexame e o saldo foi inevitável. Após um longo e demorado processo de avaliação interna, o New York Times fez a necessária autocrítica. Em 1971, o mesmo jornal enfrentou o Pentágono e a Casa Branca para publicar os célebres "Papéis do Pentágono", que traziam informações secretas sobre o debate dentro do governo sobre os rumos da guerra do Vietnã. Levando a guerra até a Suprema Corte, o jornal foi autorizado a publicar os documentos.
Glorificado como um dos heróis da liberdade de imprensa, Emile Zola foi preso e condenado pela publicação do célebre Eu Acuso, onde denunciava a fraude que levou a condenação do capitão Dreyfus. Para não cumprir pena de prisão, fugiu para a Inglaterra.
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