Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
A noção de que o país necessita de uma reforma política é um desses falsos consensos que periodicamente aparecem política brasileira. Em 2016, todos parecem estar de acordo com a noção que o sistema político atual armazena tantos defeitos e tantos problemas que seria muito razoável fazer uma mudança de envergadura, a qual se dá o nome de "reforma política."
O problema é dizer quais problemas são estes e quais os remédios adequados para que sejam resolvidos. Como acontece com outras quimeras da vida nacional, o risco é abrir passagem para uma abstração ("reforma política") sem fazer o debate concreto, sobre o que se quer reformar, para quê, a favor de quem.
Não é difícil adivinhar quem sairá ganhando num debate realizado nessas condições. Abordando a discussão a partir de um ângulo um pouco diferente -- a convocação de uma Assembléia Constituinte - o professor João Feres Junior lança uma pergunta de uma simplicidade cortante: "como seria possível obter um contrato constitucional mais progressista que o de 1988 em um contexto politicamente tão pior que aquele da Constituição Cidadã?"
Em teoria, todo debate político ensina que é possível fazer mudanças em nosso sistema político que sejam úteis para ampliar a participação popular, assegurar o respeito pela vontade da maioria, ampliar as liberdades públicas e proteger as garantias fundamentais do cidadão. Em setembro de 2015, o Supremo aprovou uma novidade histórica, a proibição do financiamento de campanhas eleitorais por empresas privadas. Não se iluda, porém. Entre as surpresas bem escondidas da "reforma política", esconde-se a ideia de restaurar a força do poder econômico privado nos rumos da política, colonizando as instituições de Estado. Surpresa? Nem tanto.
Num país que convive com atrasos históricos reconhecidos, a ideia de "reforma" costuma ser recebida a priori de forma positiva. Para a maioria das pessoas, parece natural imaginar que estamos falando de mudanças para o bem da maioria. Nem sempre é assim, porém.
A função essencial da "reforma política" em debate em 2016 é aprovar medidas que terão a serventia de dar uma fachada legal a um estado de exceção cuja semente foi plantada pelo golpe de abril-maio que afastou uma presidente eleita, com métodos aceitáveis para um regime parlamentarista, mas que não passam de uma violação escandalosa dos princípios do sistema presidencialista, que a população brasileira já aprovou em dois plebiscitos memoráveis.
Este é o debate real em curso, introduzido pelos vitoriosos temporários do golpe, cavalgando a Câmara comanda pelo xerife do mal Eduardo Cunha. Com reconhecido horror pelo voto popular, o objetivo é derrubar o regime presidencialista, o único que garante o respeito absoluto a regra essencial de que um presidente da República deve ser escolhido pela matemática democrática 1 homem=1 voto, colocando em seu lugar um sistema que entrega a decisão final ao Congresso -- aquele mesmo, que já em 1960 era o abrigo das articulações conservadoras destinadas a amortecer o voto popular.
Após quatro derrotas presidenciais consecutivas, um fiasco raro na história dos regimes democráticos do mundo inteiro, a reação parlamentarista é previsível e é natural que seja colocada em debate neste momento. Imagina-se que, mesmo impopular, a mudança pode vir a ser viabilizada em função daquilo que os estudiosos chamam de relação de forças favorável, criado pela caça implacável às lideranças populares mais temidas, a começar por Luiz Inácio Lula da Silva. Num sintoma da baderna institucional que se tenta instituir no país, o temporário Michel Temer já definiu seu governo como "semi-parlamentarista" -- conceito que, levado a sério, equivale a um delito constitucional aos olhos da carta de 1988.
O esforço para criar um consenso em torno da ideia de que estamos assistindo ao desmoronamento do sistema político erguido após a democratização que se seguiu ao fim do regime militar inclui um cuidado na linguagem. O processo é descrito por expressões carregadas de fatalismo, como "fim de ciclo", que sugere uma decomposição natural e inevitável, como se fosse um acontecimento a margem de decisões humanas, de interesses econômicos e decisões políticas.
Antes de debater quais mudanças e quais reformas podem ser realmente úteis e indispensáveis a nosso sistema político, é bom entender que se assiste no Brasil de hoje a uma crise no sistema de dominação política instituído ao longo da história brasileira, através de um pacto de subordinação de classes que, dizia o figurino, deveria ser capaz de sobreviver -- sem maiores atropelos -- tanto nas ditaduras como nas democracias. Os brasileiros não enfrentam uma dificuldade que caiu do céu, mas uma reação previsível por parte de uma camada dirigente que não consegue conviver com os direitos e progressos de uma maioria que só muito recentemente conquistou direitos de cidadania.
Vamos combinar: a origem do desmantelamento do sistema político não se encontra no sistema de financiamento de campanhas eleitorais; nem na ausência de voto distrital para escolhar de deputados; nem na fragilidade política de respeitáveis lideranças populares que se deixaram capturar por inaceitáveis esquemas de corrupção que sempre existiram na história do país.
A causa é política e é outra. Encontra-se na insubordinação das camadas subalternas diante dos interesses e vontades de antigos senhores ou, para usar um termo mais adequados, dos parceiros preferenciais.
Mesmo limitadas e parciais, em muitos casos reversíveis, as mudanças em favor dessa maioiria social estão na origem da mais grave ruptura institucional ocorrida no país desde o golpe militar de 1964. Ao tomar o poder de qualquer maneira, e até deixando uma porta aberta no TSE para o caso do primeiro assalto dar errado, a finalidade é interromper de vez o processo de mudanças, erguendo uma barreira institucional contra as maiorias no futuro -- a começar por 2018.
A narrativa convencional do sistema político pós-ditadura nos conta que a política brasileira foi dominada por dois polos, um deles em torno do PSDB de Fernando Henrique Cardoso, o outro pelo PT de Luiz Inácio Lula da Silva. A coreografia sem dúvida é esta. Mas convém acrescentar que não se tratava do conflito binário, com alguma tintura ideológica, que integra a disputa cotidiana das democracias desenvolvidas, aquelas que estudiosos de várias correntes gostam de chamar de "maduras", sugerindo que nós brasileiros vivemos numa fase ainda adolescente de acesso a direitos e garantias plenas.
Em sua versão verde-amarela, o espetáculo foi montado com um roteiro pré-estabelecido, com uma divisão de trabalho pré-definida, pela qual apenas um dos lados poderia sair-se vencedor. Assim, sempre caberia ao bloco-PSDB-DEM o papel comando do Estado e orientação do governo, restando ao bloco-PT a função de seguir a pauta e curvar-se para agradecer os aplausos no final. Não havia uma alternância real de poderes no Estado, de áreas de interesses e de influencia. Nem mesmo leves arranhões nos monopolios dos meios de comunicação, construídos durante o regime militar, chegaram a ser considerados.
Em suas principais estruturas e centros de decisão, e também nos aparelhos ideológicos, a máquina do Estado seguiu sendo monopolio a serviço de quem sempre a teve em mãos.
Este sistema de democracia seletiva funcionou muito bem até que, por um desses processos que garantem alguma poesia ao cotidiano burocrático e repetitivo da vida social, e costumam explicar os melhores avanços da história, a parte subalterna resolveu cobrar mais do que lhe fora reservado. Nada muito radical, mas forte o suficiente para produzir um deslocamento do conjunto do sistema político, dando origem a um processodestucanização do eleitorado, que tornou a disputa de poder muito mais difícil para quem não tinha respostas favoráveis aos interesses de uma maioria representada pela primeira vez.
Essa mudança nas opções políticas do eleitorado, natural em toda democracia verdadeira, é que tornou necessária, para a manutenção da ordem tradicional das coisas, a destruição do PT a partir da AP 470 -- primeira tentativa, parcialmente bem sucedida -- e da Lava Jato, na véspera de atingir os resultados pretendidos, talvez em mais de 100%. Em 2016, não são apenas as estruturas políticas ligadas ao governo Lula e seus aliados que têm sido atacadas e destruídas, num processo regular, profundo, com alvo definido.
O patrimônio econômico -- estatais e grandes empresas privadas nacionais -- capaz de viabilizar políticas econômicas alternativas ao domínio absoluto do mercado encontra-se em posição de fraqueza histórica, colocando a economia brasileira em posição de liquidação.
No plano dos direitos e liberdades, há muito tempo deixou de ser possível sustentar -- como se fazia depois da democratização -- que a população brasileira usufrui do "mais prolongado regime de liberdades da história republicana".
Ainda que seja necessário reconhecer os méritos indiscutíveis da Lava Jato na denúncia necessária de casos de corrupção, esforço que interessa ao conjunto dos brasileiros, não se pode deixar de apontar para seu efeito daninho no esfacelamento de garantias democrática. Não vamos falar apenas da institucionalização das prisões provisórias para obtenção de delações premiadas. Mesmo advogados conservadores comparam o processo à tortura. Outros juristas denunciam a prática como "coerção psicológica," o que é igualmente inaceitável, ainda que isso nem sempre possa ser admitido numa visão brutalizada da condição humana e da maioria dos animais.
A prisão de parlamentares no exercício do mandato, sem que se atendesse às cláusulas específicas para sua condição, não era prática comum sequer nos períodos da ditadura militar -- os generais cassavam os parlamentares por decreto e mandavam os atingidos para casa, excluídos da vida pública por dez anos. Mas em 2015 o senador Delcídio do Amaral foi preso. A situação ameaça repetir-se em 2016, contra Renan Calheiros e Romero Jucá, sem falar no pedido de tornozeleira nos calcanhares de José Sarney.
Definida numa Vara de primeira instância, a censura ao jornalista Marcelo Auler, é uma medida grave e preocupante. Repórter já agraciado com o Premio Esso, na época em que se tratava do maior reconhecimento a um jornalista brasileiro, Auler está proibido pela justiça de veicular reportagens que possam ser consideradas "ofensivas" por delegados ligados a Lava Jato, numa medida inaceitável, digna de uma reação mais vigorosa do que se viu até aqui.
Se, como ensinam os estudiosos de Direito, a judicialização é "a política por outros meios", mais errado ainda é ser transformada na "ditadura por outros meios. " O professor Eros Grau, num voto célebre no STF, disse que "pior que a ditadura das fardas é a das togas."
O ponto de partida para o debate sobre mudanças no regime político transformado em escombros, basicamente, pela incapacidade da elite brasileira em reconhecer o resultado das urnas, envolve o acerto de contas com o passado recente -- o retorno aos direitos e garantias previstos na Constituição de 1988, a mais progressista de nossa história. A hora é de resistência.
Cabe recuperar um regime de liberdades construído com sacrifícios por uma população que se emancipava de uma ditadura e nem por um minuto deseja retornar a um passado de trevas, impotência e medo. É preciso separar o que é crime e corrupção daquilo que não passa de notória perseguição política. Num postura lúcida de ponderação e distanciamento, cabe reconhecer acertos reais mas também abusos e desvios num processo onde a seletividade se tornou um método de trabalho. É preciso entender que a democracia só será recuperada e restaurada por homens e mulheres que a população reconhece como seus líderes e dirigentes. A hora do espetáculo está acabando. Deve começar a política.
A noção de que o país necessita de uma reforma política é um desses falsos consensos que periodicamente aparecem política brasileira. Em 2016, todos parecem estar de acordo com a noção que o sistema político atual armazena tantos defeitos e tantos problemas que seria muito razoável fazer uma mudança de envergadura, a qual se dá o nome de "reforma política."
O problema é dizer quais problemas são estes e quais os remédios adequados para que sejam resolvidos. Como acontece com outras quimeras da vida nacional, o risco é abrir passagem para uma abstração ("reforma política") sem fazer o debate concreto, sobre o que se quer reformar, para quê, a favor de quem.
Não é difícil adivinhar quem sairá ganhando num debate realizado nessas condições. Abordando a discussão a partir de um ângulo um pouco diferente -- a convocação de uma Assembléia Constituinte - o professor João Feres Junior lança uma pergunta de uma simplicidade cortante: "como seria possível obter um contrato constitucional mais progressista que o de 1988 em um contexto politicamente tão pior que aquele da Constituição Cidadã?"
Em teoria, todo debate político ensina que é possível fazer mudanças em nosso sistema político que sejam úteis para ampliar a participação popular, assegurar o respeito pela vontade da maioria, ampliar as liberdades públicas e proteger as garantias fundamentais do cidadão. Em setembro de 2015, o Supremo aprovou uma novidade histórica, a proibição do financiamento de campanhas eleitorais por empresas privadas. Não se iluda, porém. Entre as surpresas bem escondidas da "reforma política", esconde-se a ideia de restaurar a força do poder econômico privado nos rumos da política, colonizando as instituições de Estado. Surpresa? Nem tanto.
Num país que convive com atrasos históricos reconhecidos, a ideia de "reforma" costuma ser recebida a priori de forma positiva. Para a maioria das pessoas, parece natural imaginar que estamos falando de mudanças para o bem da maioria. Nem sempre é assim, porém.
A função essencial da "reforma política" em debate em 2016 é aprovar medidas que terão a serventia de dar uma fachada legal a um estado de exceção cuja semente foi plantada pelo golpe de abril-maio que afastou uma presidente eleita, com métodos aceitáveis para um regime parlamentarista, mas que não passam de uma violação escandalosa dos princípios do sistema presidencialista, que a população brasileira já aprovou em dois plebiscitos memoráveis.
Este é o debate real em curso, introduzido pelos vitoriosos temporários do golpe, cavalgando a Câmara comanda pelo xerife do mal Eduardo Cunha. Com reconhecido horror pelo voto popular, o objetivo é derrubar o regime presidencialista, o único que garante o respeito absoluto a regra essencial de que um presidente da República deve ser escolhido pela matemática democrática 1 homem=1 voto, colocando em seu lugar um sistema que entrega a decisão final ao Congresso -- aquele mesmo, que já em 1960 era o abrigo das articulações conservadoras destinadas a amortecer o voto popular.
Após quatro derrotas presidenciais consecutivas, um fiasco raro na história dos regimes democráticos do mundo inteiro, a reação parlamentarista é previsível e é natural que seja colocada em debate neste momento. Imagina-se que, mesmo impopular, a mudança pode vir a ser viabilizada em função daquilo que os estudiosos chamam de relação de forças favorável, criado pela caça implacável às lideranças populares mais temidas, a começar por Luiz Inácio Lula da Silva. Num sintoma da baderna institucional que se tenta instituir no país, o temporário Michel Temer já definiu seu governo como "semi-parlamentarista" -- conceito que, levado a sério, equivale a um delito constitucional aos olhos da carta de 1988.
O esforço para criar um consenso em torno da ideia de que estamos assistindo ao desmoronamento do sistema político erguido após a democratização que se seguiu ao fim do regime militar inclui um cuidado na linguagem. O processo é descrito por expressões carregadas de fatalismo, como "fim de ciclo", que sugere uma decomposição natural e inevitável, como se fosse um acontecimento a margem de decisões humanas, de interesses econômicos e decisões políticas.
Antes de debater quais mudanças e quais reformas podem ser realmente úteis e indispensáveis a nosso sistema político, é bom entender que se assiste no Brasil de hoje a uma crise no sistema de dominação política instituído ao longo da história brasileira, através de um pacto de subordinação de classes que, dizia o figurino, deveria ser capaz de sobreviver -- sem maiores atropelos -- tanto nas ditaduras como nas democracias. Os brasileiros não enfrentam uma dificuldade que caiu do céu, mas uma reação previsível por parte de uma camada dirigente que não consegue conviver com os direitos e progressos de uma maioria que só muito recentemente conquistou direitos de cidadania.
Vamos combinar: a origem do desmantelamento do sistema político não se encontra no sistema de financiamento de campanhas eleitorais; nem na ausência de voto distrital para escolhar de deputados; nem na fragilidade política de respeitáveis lideranças populares que se deixaram capturar por inaceitáveis esquemas de corrupção que sempre existiram na história do país.
A causa é política e é outra. Encontra-se na insubordinação das camadas subalternas diante dos interesses e vontades de antigos senhores ou, para usar um termo mais adequados, dos parceiros preferenciais.
Mesmo limitadas e parciais, em muitos casos reversíveis, as mudanças em favor dessa maioiria social estão na origem da mais grave ruptura institucional ocorrida no país desde o golpe militar de 1964. Ao tomar o poder de qualquer maneira, e até deixando uma porta aberta no TSE para o caso do primeiro assalto dar errado, a finalidade é interromper de vez o processo de mudanças, erguendo uma barreira institucional contra as maiorias no futuro -- a começar por 2018.
A narrativa convencional do sistema político pós-ditadura nos conta que a política brasileira foi dominada por dois polos, um deles em torno do PSDB de Fernando Henrique Cardoso, o outro pelo PT de Luiz Inácio Lula da Silva. A coreografia sem dúvida é esta. Mas convém acrescentar que não se tratava do conflito binário, com alguma tintura ideológica, que integra a disputa cotidiana das democracias desenvolvidas, aquelas que estudiosos de várias correntes gostam de chamar de "maduras", sugerindo que nós brasileiros vivemos numa fase ainda adolescente de acesso a direitos e garantias plenas.
Em sua versão verde-amarela, o espetáculo foi montado com um roteiro pré-estabelecido, com uma divisão de trabalho pré-definida, pela qual apenas um dos lados poderia sair-se vencedor. Assim, sempre caberia ao bloco-PSDB-DEM o papel comando do Estado e orientação do governo, restando ao bloco-PT a função de seguir a pauta e curvar-se para agradecer os aplausos no final. Não havia uma alternância real de poderes no Estado, de áreas de interesses e de influencia. Nem mesmo leves arranhões nos monopolios dos meios de comunicação, construídos durante o regime militar, chegaram a ser considerados.
Em suas principais estruturas e centros de decisão, e também nos aparelhos ideológicos, a máquina do Estado seguiu sendo monopolio a serviço de quem sempre a teve em mãos.
Este sistema de democracia seletiva funcionou muito bem até que, por um desses processos que garantem alguma poesia ao cotidiano burocrático e repetitivo da vida social, e costumam explicar os melhores avanços da história, a parte subalterna resolveu cobrar mais do que lhe fora reservado. Nada muito radical, mas forte o suficiente para produzir um deslocamento do conjunto do sistema político, dando origem a um processodestucanização do eleitorado, que tornou a disputa de poder muito mais difícil para quem não tinha respostas favoráveis aos interesses de uma maioria representada pela primeira vez.
Essa mudança nas opções políticas do eleitorado, natural em toda democracia verdadeira, é que tornou necessária, para a manutenção da ordem tradicional das coisas, a destruição do PT a partir da AP 470 -- primeira tentativa, parcialmente bem sucedida -- e da Lava Jato, na véspera de atingir os resultados pretendidos, talvez em mais de 100%. Em 2016, não são apenas as estruturas políticas ligadas ao governo Lula e seus aliados que têm sido atacadas e destruídas, num processo regular, profundo, com alvo definido.
O patrimônio econômico -- estatais e grandes empresas privadas nacionais -- capaz de viabilizar políticas econômicas alternativas ao domínio absoluto do mercado encontra-se em posição de fraqueza histórica, colocando a economia brasileira em posição de liquidação.
No plano dos direitos e liberdades, há muito tempo deixou de ser possível sustentar -- como se fazia depois da democratização -- que a população brasileira usufrui do "mais prolongado regime de liberdades da história republicana".
Ainda que seja necessário reconhecer os méritos indiscutíveis da Lava Jato na denúncia necessária de casos de corrupção, esforço que interessa ao conjunto dos brasileiros, não se pode deixar de apontar para seu efeito daninho no esfacelamento de garantias democrática. Não vamos falar apenas da institucionalização das prisões provisórias para obtenção de delações premiadas. Mesmo advogados conservadores comparam o processo à tortura. Outros juristas denunciam a prática como "coerção psicológica," o que é igualmente inaceitável, ainda que isso nem sempre possa ser admitido numa visão brutalizada da condição humana e da maioria dos animais.
A prisão de parlamentares no exercício do mandato, sem que se atendesse às cláusulas específicas para sua condição, não era prática comum sequer nos períodos da ditadura militar -- os generais cassavam os parlamentares por decreto e mandavam os atingidos para casa, excluídos da vida pública por dez anos. Mas em 2015 o senador Delcídio do Amaral foi preso. A situação ameaça repetir-se em 2016, contra Renan Calheiros e Romero Jucá, sem falar no pedido de tornozeleira nos calcanhares de José Sarney.
Definida numa Vara de primeira instância, a censura ao jornalista Marcelo Auler, é uma medida grave e preocupante. Repórter já agraciado com o Premio Esso, na época em que se tratava do maior reconhecimento a um jornalista brasileiro, Auler está proibido pela justiça de veicular reportagens que possam ser consideradas "ofensivas" por delegados ligados a Lava Jato, numa medida inaceitável, digna de uma reação mais vigorosa do que se viu até aqui.
Se, como ensinam os estudiosos de Direito, a judicialização é "a política por outros meios", mais errado ainda é ser transformada na "ditadura por outros meios. " O professor Eros Grau, num voto célebre no STF, disse que "pior que a ditadura das fardas é a das togas."
O ponto de partida para o debate sobre mudanças no regime político transformado em escombros, basicamente, pela incapacidade da elite brasileira em reconhecer o resultado das urnas, envolve o acerto de contas com o passado recente -- o retorno aos direitos e garantias previstos na Constituição de 1988, a mais progressista de nossa história. A hora é de resistência.
Cabe recuperar um regime de liberdades construído com sacrifícios por uma população que se emancipava de uma ditadura e nem por um minuto deseja retornar a um passado de trevas, impotência e medo. É preciso separar o que é crime e corrupção daquilo que não passa de notória perseguição política. Num postura lúcida de ponderação e distanciamento, cabe reconhecer acertos reais mas também abusos e desvios num processo onde a seletividade se tornou um método de trabalho. É preciso entender que a democracia só será recuperada e restaurada por homens e mulheres que a população reconhece como seus líderes e dirigentes. A hora do espetáculo está acabando. Deve começar a política.
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