sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Trabalho infantil e país dos desempregados

Por Euzébio Jorge Silveira de Sousa e Carlos Eduardo Siqueira, no site da Fundação Maurício Grabois:

Por que defender o trabalho infantil em um país com elevado desemprego? No mundo, 210 milhões de adultos sofrem com o desemprego, ao passo que existem 152 milhões de crianças trabalhando, segundo Kailash Satyarthi, ganhador do prêmio Nobel da paz. Satyarthi afirma ainda que nos últimos 20 anos o número de crianças trabalhando reduziu de 260 milhões para 152 milhões, o que correspondeu a uma redução de 42%. No entanto, no Brasil, ao menos 1,8 milhão de pessoas entre 5 e 17 anos trabalhavam em 2016, número que pode chegar a 2,5 milhões se for considerado o trabalho de subsistência, segundo o Fórum nacional de prevenção e erradicação do trabalho infantil.

Outro dado relevante sobre trabalho e educação é que mais de 2/3 dos homens jovens entre 15 a 24 anos que foram trabalhadores infantis possuem uma escolarização de até o ensino primário completo, segundo relatório World Report on Child Labour 2015 da OIT, indicando assim que, quanto mais cedo se ingressa no trabalho, mais precocemente se abandona a educação (OIT, 2015).



Mas, por que o trabalho infantil volta a ser defendido no Brasil? O que falta para o país superar a crise e se desenvolver é colocarmos crianças para trabalhar? É preciso dizer que o trabalho infantil já era bastante difundido na primeira revolução industrial. Buscou-se um tipo de progresso tecnológico que transformou trabalho fabril em uma tarefa suficientemente simples e que demandasse menor força física, a fim de permitir a absorção de crianças nas sujas e insalubres fábricas, contando, inclusive, com a conveniência de seu tamanho para entrar em estreitas frestas das máquinas onde os adultos não caberiam [1].

Durante a revolução industrial, crianças rastejavam nas fábricas de tecidos para limpar as máquinas de tear. Já naquela época os empresários sabiam que ao introduzir crianças e mulheres no mercado de trabalho gerariam um excedente de força de trabalho que rebaixaria a remuneração dos trabalhadores em toda a economia [2].

Porém, o trabalho infantil no Brasil possui também uma herança ainda mais arcaica, a escravidão. Que crianças negras e indígenas trabalhavam como escravas, não restam dúvidas, no entanto, mesmo a lei que representava um suposto passo em direção à abolição da escravidão significou uma autorização para o trabalho infantil forçado. A lei 2.040, conhecida como “Lei do ventre livre”, sancionada em 1871, dizia que os filhos de pessoas escravizadas ficariam em poder dos senhores de escravos até os 8 anos de idade, quando estes senhores poderiam continuar “usufruindo” do trabalho da criança e do adolescente até os 21 anos, ou poderiam vendê-las aos 8 anos de idade, para prestar serviços ao Estado ou a uma instituição indicada pelo Estado. Perceba que se a criança não fosse suficientemente útil ao senhor de escravos ela poderia ser retirada do convívio da mãe para ser enviada a lugares possivelmente piores.

Após a abolição em 1888 as chagas da escravidão não cicatrizaram. Sem serem absorvidos pelo nascente mercado de trabalho brasileiro, os negros e negras foram arremessados em uma condição social de exclusão e pobreza, por vezes subsistindo à margem da economia de mercado no Brasil. As mulheres foram compelidas a um tipo de trabalho doméstico muito similar ao que as pessoas escravizadas faziam no interior da casa grande, cuidando não apenas de limpar e cozinhar, como também de criar os filhos de seus patrões, restando pouco tempo para dedicar a seus próprios filhos.

Às crianças pobres restava apenas o trabalho degradante e mal pago para lhe garantir a subsistência. Vistas como um risco social, crianças e jovens negros eram obrigados a buscar subempregos, ou bicos, que lhes trouxessem algo para comer e, quando possível, um teto para morar.

O quadro de exclusão social e racial constituiu uma marca ao Brasil no mundo, a marca da desigualdade [3]. A pobreza compele todos ao trabalho, sejam crianças ou idosos, doentes ou saudáveis, a entregar sua força de trabalho por qualquer salário e qualquer jornada [4]. As crianças trabalhadoras têm um senso de urgência que não lhes permite estudar adequadamente ou pensar o que desejam ser no futuro. Seus brinquedos serão as ferramentas de trabalho dos pais, não lhes restando tempo para estudo, leitura, viagens ou sonhos. A estas crianças resta a necessidade de subsistir, trabalhando por dinheiro ou comida.

“Segundo Bolsonaro, uma situação em que se vê “um moleque fumando um paralelepípedo de crack” é considerada “normal”. Mas quando se “pega um moleque lavando um carro”, afirmou, “é um escândalo” [5].

Afirmou ainda que: “Trabalhei desde criança e isso moldou meu caráter”, “aprendi a dar valor às coisas com o suor do meu trabalho desde muito pequeno”, “criança ou está vagabundeando ou está trabalhando” e “para consertar uma criança delinquente é só pôr no trabalho pesado” [6]

O que afasta as crianças da droga e da marginalidade é a educação e não o trabalho. A redução do trabalho infantil no mundo foi uma conquista constituída a partir de um pacto social de cuidado com as crianças e combate à desigualdade estabelecido especialmente nos países centrais. Não existe país desenvolvido que tolere crianças trabalhando, posto que o trabalho infantil é um subproduto da miséria de um povo que não consegue ter suas necessidades básicas atendidas, nem pela renda do trabalho nem por ação do Estado.

Vale destacar que no Brasil políticas públicas largamente atacadas atualmente, como o “Bolsa família”, além de reduzirem a pobreza, também ampliam a escolarização, combatem a desigualdade e o trabalho infantil, ao obrigar que os pais comprovem a frequência escolar de seus filhos.

Fica evidente que a defesa do trabalho infantil feita pelo governo federal é a implementação de um projeto que busca um país profundamente miserável e desigual, projeto este que deve ser combatido por todos os que defendem as crianças, a democracia e a dignidade humana [7].

* Euzebio Jorge Silveira de Sousa é presidente do Centro de Estudos e Memória da Juventude (CEMJ), doutorando em Desenvolvimento Econômico no IE-Unicamp, mestre em Economia Política, graduado em Economia pela PUC-SP e professor na FESPSP e na STRONG ESAGS

* Carlos Eduardo Siqueira possui licenciatura plena em História, atualmente é graduando em Geografia pela Universidade Cruzeiro do Sul. É professor da rede estadual de ensino de São Paulo, tendo sua trajetória voltada para defesa da educação pública, gratuita e de qualidade.


Notas

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