Charge: Zé Dassilva |
O novo ministro do Supremo Tribunal Federal, André Mendonça, aprovado em sabatina na Comissão de Constituição e Justiça do Senado e em seguida no plenário da Casa, é um hipócrita. Não é apenas despreparado para a função, o que retiraria sua candidatura da primeira exigência legal, pela ausência de notório saber jurídico. Nem somente fraco moralmente pela genuflexão ao presidente que o indicou e aos líderes de sua fé. Ou mesmo um reles mentiroso. Há uma progressão em matéria de fuga à verdade no magistrado genuinamente evangélico.
Ele fez de tudo para enganar os senadores e a opinião pública com determinação, método e, é preciso reconhecer, competência performática. O importante não era o que dizia, mas a conquista da aprovação de seu nome pela CCJ. O fim justificava o meio escolhido durante a arguição: a dissimulação. Por isso, a palavra exata para seu comportamento é hipocrisia. O que tira dele o segundo atributo que um ministro do STF precisa ter: reputação ilibada.
O mais grave não é a operação falsidade, farsa e desonestidade levada a cabo com treinamento de profissionais da impostura recrutados na imprensa corporativa (que de tanto mentir com verossimilhança criou a profissão de media training, para dar funcionalidade ao seu método), mas o jogo de cartas marcadas. Mendonça mentia, sabendo que estava mentindo, e os senadores fingiam que acreditavam.
Não é um acaso que a questão religiosa, desde a indicação do ex-advogado geral da União para o cargo, tenha dirigido a cena. O presidente Bolsonaro deixou claro que essa era a motivação, que era sensível à pressão dos eleitores e lideranças mais conservadoras do neopentecostalismo, dentro e fora do Congresso, e que a aprovação de um evangélico além de interferir na pauta teria a força de alterar até mesmo as regras de laicidade da corte.
A pauta evangélica se relaciona de forma tensa com muitas conquistas da modernidade. Ela é preconceituosa em matéria de liberdades individuais; discriminatória em relação aos vários modelos de organização familiar; doutrinária em matérias relativas às ciências da vida e à liberdade individual. Cada uma dessas questões ganha tradução na vida social, em forma de debates que são transformados em princípios consagrados na lei.
André Mendonça, em sua atuação insincera na CCJ do Senado, criou uma falsa dicotomia, em que se preservava nos valores íntimos para se submeter às determinações constitucionais na atuação como magistrado. Ficou parecendo que ele colocaria suas convicções entre parênteses, julgando de acordo com a letra da lei. Como se não houvesse discordância possível na interpretação da lei e o papel do ministro fosse apenas o de confirmar o consenso.
Todos que acompanham os julgamentos no STF sabem que as decisões são divididas, que as convicções pessoais (filosóficas, jurídicas e religiosas) contam na hora do voto, que há várias formas de divisão entre os ministros. Há os garantistas. Os conservadores. Os progressistas. Os lava-jatistas. Os alinhados. E, agora, os hipócritas.
E é porque a constitucionalidade não é uma ciência exata, mas uma construção política, jurídica e discursiva, que ocupar uma cadeira na corte é tão importante para os projetos de poder de inspiração autoritária. Formar maioria em questões consideradas essenciais garante a regressividade da modernidade para a ética da paróquia; dos valores da ciência para o universo da crença; da defesa da justiça social para a afirmação do individualismo.
Mendonça somará mais 10% aos votos garantidos (em dobradinha com Nunes Marques, outro ministro terrivelmente bolsonarista) aos interesses da extrema direita em vários temas que não estão plenamente assentados na legislação brasileira. São questões como a educação domiciliar e a escola sem partido. A demarcação de terras indígenas e os limites da exploração mineral e do desmatamento.
O aborto, a eutanásia, a experimentação científica com seres vivos. A ampliação do comércio e posse de armas. A criminalização do uso de drogas, a exclusão de punibilidade a ações militares violentas. O direito à manifestação popular e a defesa da função social da terra. E até a ameaça da mudança do sistema de votação para franquear pressões golpistas.
Na sabatina, Mendonça não chegou a ser perguntado sobre essas questões. Mas em pelo menos três momentos mostrou sua capacidade diversionista, previamente ensaiada, em temas considerados de fronteira para os evangélicos. Um trio de mentiras convictamente afirmadas, com toda a expertise da farsa montada para garantir sua aprovação.
Mentiu sobre a questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo, que pareceu defender, embora ressalvando sua posição pessoal fora da função de ministro. O deputado Sóstenes Cavalcante já se prontificou a explicar à sua base a afirmação de Mendonça, que, jogando para a Constituição, não deixou claro que a questão não está pacificada e pode ser considerada, por exemplo, a partir da distinção entre união civil e casamento. Não é um jogo de palavras, mas uma estratégia desonesta.
Mentiu sobre o uso da Lei de Segurança Nacional, que ele acessou orgulhosamente como advogado da União, para perseguir opositores e críticos do governo e para ameaçar servidores públicos e militantes. Usou os instrumentos do arbítrio, de forma deliberada, voluntária e seletiva entre outros caminhos que dispunha. Inclusive a aceitação democrática da divergência. Usou de instrumentos de força extemporâneos para melhor bajular o chefe e cacifar sua indicação ao STF.
Mentiu, por fim, ao afirmar que a democracia brasileira foi conquistada sem derramamento de sangue, como resultado de uma conciliação pacífica, fantasia típica das elites. Voltou atrás para pedir desculpas pelo erro e homenagear as muitas vítimas que tombaram para liberdade no país. Usou a luta abolicionista, pelo voto e pela igualdade das mulheres, mas sem se referir à ditadura militar e a outras lutas libertárias igualmente fundamentais. A explicação estava preparada para ser usada se necessário. Mendonça foi falso até para se desculpar.
Aprovada sua indicação, não esperou nem uma hora para voltar atrás em tudo o que apresentou na tribuna civil, vestindo a roupagem adequada para o púlpito. Sua celebração do resultado foi uma homilia em louvor à religião e a Deus. Falou da Bíblia meia dúzia de vezes e parece ter esquecido a Constituição, intocada no discurso, que até algumas horas antes era evocada a todo momento. Ficou claro que as instituições democráticas brasileiras passaram a correr mais risco.
Quem tem Deus como companheiro não pode se limitar apenas às medidas do nosso pequeno mundo. Mendonça olhou para dentro, gostou do que viu, e encontrou motivos para olhar para o alto. Parodiando o astronauta Neil Armstrong, deixou a modéstia de lado e comparou sua chegada como evangélico ao STF ao primeiro passo do homem na Lua.
Uma hipocrisia gigantesca.
Ele fez de tudo para enganar os senadores e a opinião pública com determinação, método e, é preciso reconhecer, competência performática. O importante não era o que dizia, mas a conquista da aprovação de seu nome pela CCJ. O fim justificava o meio escolhido durante a arguição: a dissimulação. Por isso, a palavra exata para seu comportamento é hipocrisia. O que tira dele o segundo atributo que um ministro do STF precisa ter: reputação ilibada.
O mais grave não é a operação falsidade, farsa e desonestidade levada a cabo com treinamento de profissionais da impostura recrutados na imprensa corporativa (que de tanto mentir com verossimilhança criou a profissão de media training, para dar funcionalidade ao seu método), mas o jogo de cartas marcadas. Mendonça mentia, sabendo que estava mentindo, e os senadores fingiam que acreditavam.
Não é um acaso que a questão religiosa, desde a indicação do ex-advogado geral da União para o cargo, tenha dirigido a cena. O presidente Bolsonaro deixou claro que essa era a motivação, que era sensível à pressão dos eleitores e lideranças mais conservadoras do neopentecostalismo, dentro e fora do Congresso, e que a aprovação de um evangélico além de interferir na pauta teria a força de alterar até mesmo as regras de laicidade da corte.
A pauta evangélica se relaciona de forma tensa com muitas conquistas da modernidade. Ela é preconceituosa em matéria de liberdades individuais; discriminatória em relação aos vários modelos de organização familiar; doutrinária em matérias relativas às ciências da vida e à liberdade individual. Cada uma dessas questões ganha tradução na vida social, em forma de debates que são transformados em princípios consagrados na lei.
André Mendonça, em sua atuação insincera na CCJ do Senado, criou uma falsa dicotomia, em que se preservava nos valores íntimos para se submeter às determinações constitucionais na atuação como magistrado. Ficou parecendo que ele colocaria suas convicções entre parênteses, julgando de acordo com a letra da lei. Como se não houvesse discordância possível na interpretação da lei e o papel do ministro fosse apenas o de confirmar o consenso.
Todos que acompanham os julgamentos no STF sabem que as decisões são divididas, que as convicções pessoais (filosóficas, jurídicas e religiosas) contam na hora do voto, que há várias formas de divisão entre os ministros. Há os garantistas. Os conservadores. Os progressistas. Os lava-jatistas. Os alinhados. E, agora, os hipócritas.
E é porque a constitucionalidade não é uma ciência exata, mas uma construção política, jurídica e discursiva, que ocupar uma cadeira na corte é tão importante para os projetos de poder de inspiração autoritária. Formar maioria em questões consideradas essenciais garante a regressividade da modernidade para a ética da paróquia; dos valores da ciência para o universo da crença; da defesa da justiça social para a afirmação do individualismo.
Mendonça somará mais 10% aos votos garantidos (em dobradinha com Nunes Marques, outro ministro terrivelmente bolsonarista) aos interesses da extrema direita em vários temas que não estão plenamente assentados na legislação brasileira. São questões como a educação domiciliar e a escola sem partido. A demarcação de terras indígenas e os limites da exploração mineral e do desmatamento.
O aborto, a eutanásia, a experimentação científica com seres vivos. A ampliação do comércio e posse de armas. A criminalização do uso de drogas, a exclusão de punibilidade a ações militares violentas. O direito à manifestação popular e a defesa da função social da terra. E até a ameaça da mudança do sistema de votação para franquear pressões golpistas.
Na sabatina, Mendonça não chegou a ser perguntado sobre essas questões. Mas em pelo menos três momentos mostrou sua capacidade diversionista, previamente ensaiada, em temas considerados de fronteira para os evangélicos. Um trio de mentiras convictamente afirmadas, com toda a expertise da farsa montada para garantir sua aprovação.
Mentiu sobre a questão do casamento entre pessoas do mesmo sexo, que pareceu defender, embora ressalvando sua posição pessoal fora da função de ministro. O deputado Sóstenes Cavalcante já se prontificou a explicar à sua base a afirmação de Mendonça, que, jogando para a Constituição, não deixou claro que a questão não está pacificada e pode ser considerada, por exemplo, a partir da distinção entre união civil e casamento. Não é um jogo de palavras, mas uma estratégia desonesta.
Mentiu sobre o uso da Lei de Segurança Nacional, que ele acessou orgulhosamente como advogado da União, para perseguir opositores e críticos do governo e para ameaçar servidores públicos e militantes. Usou os instrumentos do arbítrio, de forma deliberada, voluntária e seletiva entre outros caminhos que dispunha. Inclusive a aceitação democrática da divergência. Usou de instrumentos de força extemporâneos para melhor bajular o chefe e cacifar sua indicação ao STF.
Mentiu, por fim, ao afirmar que a democracia brasileira foi conquistada sem derramamento de sangue, como resultado de uma conciliação pacífica, fantasia típica das elites. Voltou atrás para pedir desculpas pelo erro e homenagear as muitas vítimas que tombaram para liberdade no país. Usou a luta abolicionista, pelo voto e pela igualdade das mulheres, mas sem se referir à ditadura militar e a outras lutas libertárias igualmente fundamentais. A explicação estava preparada para ser usada se necessário. Mendonça foi falso até para se desculpar.
Aprovada sua indicação, não esperou nem uma hora para voltar atrás em tudo o que apresentou na tribuna civil, vestindo a roupagem adequada para o púlpito. Sua celebração do resultado foi uma homilia em louvor à religião e a Deus. Falou da Bíblia meia dúzia de vezes e parece ter esquecido a Constituição, intocada no discurso, que até algumas horas antes era evocada a todo momento. Ficou claro que as instituições democráticas brasileiras passaram a correr mais risco.
Quem tem Deus como companheiro não pode se limitar apenas às medidas do nosso pequeno mundo. Mendonça olhou para dentro, gostou do que viu, e encontrou motivos para olhar para o alto. Parodiando o astronauta Neil Armstrong, deixou a modéstia de lado e comparou sua chegada como evangélico ao STF ao primeiro passo do homem na Lua.
Uma hipocrisia gigantesca.
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