Para se manter na moda, up to date, o Brasil concebeu o seu próprio “abismo fiscal”. A encrenca foi criada na Lei de Diretrizes Orçamentárias, que obriga a fixação do superávit primário em valores correntes. Esse inconveniente poderia ser contornado pelo envio ao Congresso Nacional de um projeto de lei que alterasse a LDO. Uma manobra que provavelmente suscitaria os mesmos gritos e sussurros da turma brava.
A fixação do superávit primário na Lei Orçamentária equivale, na prática, a conter o papel anticíclico da política fiscal. Excetuados os fanáticos nativos do Tea Party, nenhum economista sensato aceitaria impor tal obstáculo à atividade contracíclica do governo, sobretudo nos tempos bicudos de hoje.
Constrangido por essa impropriedade, o governo recorreu a expedientes contábeis qualificados de “contabilidade criativa”. Essa “criatividade” concentrou-se, sobretudo, na antecipação de dividendos de bancos estatais e no uso de recursos do Fundo Soberano, criado para abrigar poupança fiscal, passível de ser utilizada para recompor o resultado primário. O governo também se valeu da prerrogativa, inscrita na lei, de abater os investimentos do PAC.
Não é novidade o uso de receitas não recorrentes para engordar o superávit primário. Assim foi feito nos anos 1990, na “era das privatizações”. Isso não impediu a escalada da dívida pública entre 1995 e 1999. Nesse período, a dívida saltou de 28% do PIB para 44,5%.
É óbvio que a forte desaceleração da economia em 2012 iria provocar, como efetivamente provocou, a queda da receita. A evolução dos ingressos fiscais sofreu, ainda, as consequências das desonerações criadas pelo governo para aliviar custos tributários incidentes sobre o consumo e o investimento, com o propósito de obviar uma queda mais intensa do ritmo de atividade. Não menos importante foi o efeito do baixo crescimento e das desonerações sobre as receitas de estados e municípios. Isso jogou uma carga mais pesada sobre a União no esforço de compor o superávit primário, além obrigar o governo federal a prover as necessidades de financiamento dos entes subnacionais.
Diante da rigidez das despesas correntes, o ajuste necessário para garantir o superávit primário prometido mediante o corte de gastos contribuiria para danar os investimentos e degradar ainda mais o desempenho da economia. Até mesmo entre os críticos da política econômica, tornou-se consensual a opinião que afirma a necessidade da elevação da taxa de investimento para sustentar o crescimento.
Assim, a redução do superávit primário numa conjuntura de forte desaceleração do crescimento deve ser interpretada como natural e desejável. Ainda em 2011, a fase “baixista” do ciclo de consumo já abalroava o ritmo de atividade, afetando, sobretudo, o investimento em capital fixo na indústria de transformação, pressionada pelas importações predatórias, as filhas diletas do câmbio valorizado. No segundo semestre de 2011, o crescimento da economia brasileira aproximou-se de zero, transmitindo para 2012 uma perspectiva desanimadora para o investimento privado. Esse quadro configurou-se simultaneamente ao agravamento da crise internacional.
O desfalecimento do ciclo de investimento e consumo que se seguiu à recuperação de 2010 exigiria uma ação enérgica do governo, diferente das empreendidas em 2008. Em primeiro lugar, a abrupta desaceleração da economia e o agravamento da crise global impôs à política monetária uma redução mais rápida e intensa da taxa Selic.
Em nossa opinião, exarada ainda em 2011, a ação do governo deveria se concentrar na aceleração do investimento dito autônomo: dispêndio em infraestrutura e gastos de capital da Petrobras e da Eletrobras. Há de tomar em consideração que, em um ambiente de crise internacional aguda e de extrema agressividade de nossos parceiros comerciais, os efeitos desejados da elevação do investimento autônomo sobre o emprego, a renda e a receita fiscal podem se dissipar. Por isso, foram adequadas as ações do Banco Central do Brasil na gestão da política monetária e cambial.
Diante de sua situação fiscal, o Brasil não tem razões para reproduzir as recomendações dos republicanos nos Estados Unidos ou da senhora Merkel para a Europa do euro.
É bom esclarecer que não se trata de justificar a aceitação de um déficit primário, o que acarretaria efeitos negativos para a dinâmica da dívida pública. Apesar dos chiliques de alguns analistas, a dívida pública brasileira tem sido administrada de forma adequada. Seja qual for o critério utilizado para avaliar a trajetória do endividamento público, em termos brutos ou líquidos, o desempenho fiscal do governo, observado por este ângulo, é satisfatório. A dívida líquida equivale atualmente a 35% do PIB.
É provável que o comportamento da dívida pública seja ainda melhor por conta dos efeitos do declínio dos juros nos próximos anos. Explicamos: a queda dos juros não produziu ainda as benesses reclamadas pelos mais afoitos porque, como é óbvio, boa parte do estoque da dívida ainda carrega os juros velhos. Mas os dados do Tesouro mostram reduções expressivas das taxas de juros (prefixadas ou indexadas a índices de preços) nas novas colocações.
Para encerrar, vamos recorrer a um artigo recente de Paul Krugman no The New York Times: “Uma economia não é como uma família. Uma família pode decidir gastar menos e tentar ganhar mais. Mas, na economia como um todo, os gastos e ganhos andam juntos: meus gastos são a sua renda, o seu gasto é minha renda. Se todo mundo tenta reduzir os gastos ao mesmo tempo, a renda vai cair – e o desemprego vai subir… Nesse ponto, os governos precisam intervir, passando a apoiar suas economias enquanto o setor privado recupera o seu equilíbrio. E em certa medida isso de fato aconteceu: a receita caiu drasticamente na crise, mas os gastos realmente cresceram conforme programas como o seguro-desemprego se expandiram e o estímulo econômico temporário entrou em vigor. Os déficits orçamentários aumentaram, mas isso foi uma coisa boa, provavelmente a razão mais importante pela qual não tivemos um replay completo da Grande Depressão.”
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