Por Vinícius dos Santos, na revista Teoria e Debate:
Passado mais de um mês desde as imprevistas manifestações que sacudiram o Brasil no mês de junho, parece haver certo consenso, ao menos à esquerda, de que, independentemente das diferentes avaliações de suas causas e consequências mais imediatas, elas tiveram ao menos o mérito de expor, a exemplo do que já ocorrera recentemente em outros países, a falência de nosso atual sistema político. Com efeito, já não se pode negar que a estreiteza de nossa democracia não é mais capaz de dar vazão ao legítimo anseio de participação que floresceu, sobretudo, com o advento e a disseminação da internet e de suas redes sociais. Tampouco é capaz de permitir respostas satisfatórias às demandas surgidas a partir das transformações econômicas e sociais vividas pelo Brasil nos últimos dez anos.
Nesse sentido, não resta dúvida de que apenas uma profunda reforma em nosso sistema político-eleitoral, nas formas de representação e nos mecanismos de participação popular, pode abrir uma saída positiva para este novo momento. No entanto, como ficou provado pelos ataques ferozes da direita e dos setores dominantes às propostas da presidenta Dilma – primeiro, de uma Constituinte exclusiva sobre o tema e, na sequência, de um plebiscito –, a resistência à mudança da ordem política é muito mais resoluta do que pode parecer. E isso não apenas por conta do desejo de grande parte de nossos atuais representantes de continuar a se locupletar de um sistema que favorece a corrupção e a conservação do poder, mas também, e sobretudo, porque o modelo político vigente, no Brasil, está intimamente ligado às necessidades de reprodução de nosso capitalismo historicamente predatório.
Sistema político e interesses econômicos
O processo de formação nacional brasileiro, bem como o modo de nossa integração na engrenagem capitalista mundial (isto é, enquanto país periférico, escravista, exportador de produtos primários, subsumido aos interesses das grandes potências etc.), gerou uma situação diferente daquela vivida, por exemplo, nos países do capitalismo central, sobretudo no pós-Segunda Guerra. Se lá, por exemplo, foi possível, durante décadas, estabelecer um Estado de Bem-Estar através de um pacto de concessões e ganhos mútuos entre capital e trabalho, aqui, pelo menos até a chegada de Lula ao governo, esse contrato jamais pôde ser vislumbrado, dado o caráter altamente exploratório que assumiu nosso capitalismo. Isso porque historicamente se alimentou do abismo social que separa ricos e pobres (bem como da hegemonia ideológica, amplificada na fase do capitalismo neoliberal, que sobrepõe o direito privado à res publica).
O perverso processo de acumulação capitalista, no Brasil, faz com que toda medida de ampliação da democracia (promoção de políticas estruturais de diminuição das desigualdades ou a oferta de serviços públicos de qualidade, por exemplo) se choque necessariamente – em maior ou menor grau, não importa – com os interesses da minoria detentora do capital, nada disposta a abrir mão de seus ganhos em nome de qualquer tipo de pacto ou contrato social de médio e longo prazo.
Nesse cenário, sempre é preciso lembrar que o atual modelo político brasileiro, gestado sob a égide da orientação liberal exercida pelo PMDB durante a transição da ditadura para a Nova República, foi elaborado precisamente com vistas a bloquear transformações mais profundas em nossa estrutura social, num momento em que a classe trabalhadora e a esquerda se organizavam crescentemente em torno do PT e da CUT e no qual movimentos, como o MST, começavam a surgir e outros, como a UNE, a renascer.
Diante disso, criava-se um arcabouço político-institucional capaz de garantir, sem maiores sustos, o pleno funcionamento dos mecanismos de acumulação de capital: um sistema em que todas as decisões se resolvem “por cima”, via Congresso, e no qual a necessária conquista da maioria parlamentar depende do concurso dos partidos conservadores, representantes diretos dos setores economicamente dominantes. Não por acaso, portanto, até hoje, mesmo um governo liderado pela esquerda tem suas mãos quase sempre atadas, na medida em que qualquer tentativa de ação que atente contra os interesses do capital pode ser facilmente bloqueada pelos mecanismos políticos constitucionais. Quando não, pela influência exercida pela grande mídia, que funciona como porta-voz desses setores. São os famosos “limites da governabilidade” que, na prática, impedem mudanças estruturais em nossa sociedade, especialmente no ritmo em que deveriam acontecer.
As novas demandas
Nos últimos dez anos, o “reformismo fraco” do “lulismo”, tal como o define André Singer, buscou atender a algumas das demandas sociais mais urgentes sem alterar essas regras do jogo, e mesmo se esforçando para evitar uma política de conflito aberto com o capital, operando criativa e habilidosamente nos estreitos limites que este delimitava. Ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, essa via teve o grande mérito de abrir a perspectiva de criação de um mais do que necessário paradigma pós-neoliberal (em consonância com o ocorrido em quase todos os demais países da América do Sul). Ao reformular (ainda que parcialmente) o papel do Estado e, por meio da massificação de políticas sociais, permitir a enormes camadas da população o acesso a bens, serviços e direitos que até então lhes eram frequentemente vedados, o lulismo começou a redesenhar de maneira positiva, e inédita, nossa estrutura de classes, diminuindo de modo sustentável nossas desigualdades sociais e regionais.
Ocorre que, ao operar essas mudanças, que naturalmente alteraram também os parâmetros de nossa luta de classes, ele fez nascer, desde seu bojo, e como não poderia deixar de acontecer, uma nova espiral de demandas e aspirações (em particular, por serviços públicos de melhor qualidade) que se confrontam crescentemente com a lógica perversa da acumulação capitalista brasileira – a qual, dentre outras coisas, se nutre fortemente da deficiência crônica dos serviços oferecidos pelo Estado.
Nesse ponto, os protestos de junho são exemplares. Pois, mesmo não assumindo, em nenhum momento, qualquer caráter abertamente “anticapitalista” (em alguns casos foi o oposto que ocorreu, com a esquerda tornando-se, por confusão ou instrumentalização direta da mídia, o alvo preferencial dos manifestantes), o eixo dos protestos, implícita ou “inconscientemente”, foi o combate a alguns dos efeitos mais perversos do capitalismo brasileiro, que persistem ou se agravaram em nossa vida cotidiana, mesmo após os avanços dos dez anos de governos petistas. Por exemplo, a mobilidade urbana e a ocupação das cidades pensadas pelo prisma do transporte individual; a nefasta diferença qualitativa entre a educação e a saúde públicas e privadas, com todas as graves e conhecidas consequências sociais decorrentes dessas distorções; ou a promíscua relação entre o poder público e a iniciativa privada, que permeia todo o nosso aparelho estatal.
Logo, e não por acidente, as respostas positivas da esquerda surgidas após as manifestações põem potencialmente em questão a própria lógica perversa da reprodução do capital no Brasil. Por exemplo, abrir planilhas e diminuir os exorbitantes ganhos das empresas de transporte, ou mesmo se encaminhar para a estatização, parcial ou total, desse serviço, a fim de assegurar uma tarifa acessível a todos, como se discute em São Paulo. Fazer uma reforma tributária progressiva, taxar as grandes fortunas e reverter os ganhos do petróleo do pré-sal para subsidiar a saúde e a educação públicas, como propõem o PT e, no último caso, o governo federal. Todas são propostas que, em alguma (ou grande) medida, colidem com o movimento predatório de acumulação capitalista hegemônico na história brasileira. Não é de espantar, portanto, que sua efetivação seja dificultada ao extremo pelo aparato político existente, profundamente entrelaçado aos interesses do poder econômico. Basta ver a dificuldade que teve o governo em fazer aprovar o uso dos royalties do petróleo para a área social, mesmo num cenário de efervescência política, para ter ideia da magnitude do problema colocado.
O porquê da resistência à reforma
É nesse ponto que se esclarecem tanto a urgência quanto a enorme dificuldade de reformar nosso sistema político. A explosão de vozes do mês de junho, para além da fragmentação de suas pautas, contou com um denominador comum expresso na vontade de se “fazer ouvir”. Mesmo diante do refluxo atual, é muito provável que no próximo período, caso nenhuma mudança substancial ocorra, surjam novas explosões (catalisadas pela realização da Copa do Mundo ou pelas eleições de 2014, por exemplo).
Assim, a proposta do governo, com o apoio do PT e dos movimentos sociais, de canalizar a energia surgida nas ruas em direção a uma reforma política é mais do que acertada: é o único caminho possível para superarmos os entraves de nossa estreita democracia e criarmos condições de aprofundar as conquistas sociais no próximo período. Para isso, no entanto, é preciso uma reforma capaz de ampliar o horizonte de nossa ação política, garantindo maior participação popular nos processos decisórios e, ao mesmo tempo, diminuindo a força do poder econômico na esfera política (no limite, trata-se de inverter a equação entre política e economia, subsumindo esta àquela).
Mas justamente aqui deparamos com um dos núcleos do problema – não por acaso, aliás, aquele que impediu a convocação imediata da Constituinte exclusiva ou mesmo do plebiscito propostos pela presidenta Dilma para a reforma política. Dar “voz ao povo”, de modo permanente, direto, para além do momento do voto, pode se mostrar arriscado (do ponto de vista do capital). Ao ampliar a capacidade de influência e o poder popular nas decisões governamentais, abre-se espaço para uma maior contestação – ainda que indireta, involuntária, ou mesmo “inconsciente” (isto é, concentrada apenas sobre seus efeitos cotidianos mais diretos, como ocorreu na onda de protestos) – das condições necessárias, no contexto brasileiro, à reprodução do capital. Em outras palavras: ampliar a participação popular põe em risco o poder da pequena parcela detentora da maior parte de nossa riqueza.
Eis a razão de fundo, que vai além dos interesses particulares de parlamentares e de seus partidos, da enorme resistência a uma reforma capaz de radicalizar nossa democracia, materializada nos discursos do núcleo-duro da oposição (PSDB, DEM e PPS, mas com o precioso auxílio de amplos setores da “base aliada”, sobretudo o PMDB), reproduzidos acriticamente pela grande mídia. Assim também se explica a frequente e completamente desconexa acusação de “chavismo” às propostas governistas, que reflete, no fundo, o temor das classes dominantes de ver seu poder diminuído, tal como tem ocorrido na Venezuela. A recusa ao financiamento público de campanha, outro ponto-chave das discussões acerca da reforma política, segue a mesma lógica de preservação dos interesses de uma minoria que se beneficia do financiamento privado e da corrupção dele decorrente.
O desafio posto
Diante desse cenário, enfim, não há soluções mágicas. De um lado, está claro que nada se pode esperar do atual Congresso (ou mesmo do próximo, que, sendo eleito sobre as mesmas bases do atual, tenderá a reproduzir seus vícios e interesses). Por outro lado, ficou igualmente demonstrado que tampouco basta um movimento, mesmo que de grande amplitude, de mobilizações difusas, “contra tudo”, para fazer avançar de fato nossa democracia. Assim, mudar nossa política, e portanto criar condições para transformar ainda mais e mais rapidamente nossa realidade, passa por garantir a mais profunda concentração de forças de todos os setores progressistas em torno deste objetivo comum: abrir espaços cada vez mais amplos para fazer valer a vontade democrática da população, mesmo diante dos entraves postos pela minoria economicamente dominante. Nesse sentido, a luta pela convocação de uma Constituinte exclusiva deve seguir na ordem do dia.
Por fim, convém lembrar que esse desafio diz respeito tanto àqueles setores organizados tradicionais (partidos de esquerda, movimentos sociais, sindicatos etc.) quanto aos novos atores sociais, aos jovens, aos cidadãos em rede, à “multidão”. Surge aí, no entanto, outra importante questão, sobre a qual toda a esquerda deve refletir seriamente, sobretudo após a jornada de lutas dos trabalhadores do 11 de julho: atualmente, qual é o real poder de mobilização e influência desses setores organizados, sem o concurso dos quais, é preciso sublinhar, nenhuma mudança de fôlego poderá ocorrer? Qual é sua verdadeira capacidade de dialogar com a parcela da população que ocupou as ruas brasileiras, em especial a juventude?
Mesmo não havendo espaço, aqui, para tecer maiores argumentações a esse respeito, podemos arriscar uma conclusão: responder com franqueza e humildade a essas questões, saber ouvir, verificar as deficiências e mensurar corretamente sua capacidade, refletir e buscar novas formas de organização, aproximação e integração social, novas plataformas de disputa política, não temer as ruas. Apenas por essa via passa a possibilidade de reconectar paulatinamente esses setores à “multidão”, conferir uma direção positiva à energia que ela suscitou, e assim, mesmo diante dos obstáculos erguidos pelos interesses diretos de uma minoria, impulsionar uma correlação de forças mais propícia às mudanças que tanto ansiamos.
* Vinícius dos Santos é bacharel em Ciências Sociais, mestre e doutorando em Filosofia pela UFSCar, bolsista da Fapesp.
Passado mais de um mês desde as imprevistas manifestações que sacudiram o Brasil no mês de junho, parece haver certo consenso, ao menos à esquerda, de que, independentemente das diferentes avaliações de suas causas e consequências mais imediatas, elas tiveram ao menos o mérito de expor, a exemplo do que já ocorrera recentemente em outros países, a falência de nosso atual sistema político. Com efeito, já não se pode negar que a estreiteza de nossa democracia não é mais capaz de dar vazão ao legítimo anseio de participação que floresceu, sobretudo, com o advento e a disseminação da internet e de suas redes sociais. Tampouco é capaz de permitir respostas satisfatórias às demandas surgidas a partir das transformações econômicas e sociais vividas pelo Brasil nos últimos dez anos.
Nesse sentido, não resta dúvida de que apenas uma profunda reforma em nosso sistema político-eleitoral, nas formas de representação e nos mecanismos de participação popular, pode abrir uma saída positiva para este novo momento. No entanto, como ficou provado pelos ataques ferozes da direita e dos setores dominantes às propostas da presidenta Dilma – primeiro, de uma Constituinte exclusiva sobre o tema e, na sequência, de um plebiscito –, a resistência à mudança da ordem política é muito mais resoluta do que pode parecer. E isso não apenas por conta do desejo de grande parte de nossos atuais representantes de continuar a se locupletar de um sistema que favorece a corrupção e a conservação do poder, mas também, e sobretudo, porque o modelo político vigente, no Brasil, está intimamente ligado às necessidades de reprodução de nosso capitalismo historicamente predatório.
Sistema político e interesses econômicos
O processo de formação nacional brasileiro, bem como o modo de nossa integração na engrenagem capitalista mundial (isto é, enquanto país periférico, escravista, exportador de produtos primários, subsumido aos interesses das grandes potências etc.), gerou uma situação diferente daquela vivida, por exemplo, nos países do capitalismo central, sobretudo no pós-Segunda Guerra. Se lá, por exemplo, foi possível, durante décadas, estabelecer um Estado de Bem-Estar através de um pacto de concessões e ganhos mútuos entre capital e trabalho, aqui, pelo menos até a chegada de Lula ao governo, esse contrato jamais pôde ser vislumbrado, dado o caráter altamente exploratório que assumiu nosso capitalismo. Isso porque historicamente se alimentou do abismo social que separa ricos e pobres (bem como da hegemonia ideológica, amplificada na fase do capitalismo neoliberal, que sobrepõe o direito privado à res publica).
O perverso processo de acumulação capitalista, no Brasil, faz com que toda medida de ampliação da democracia (promoção de políticas estruturais de diminuição das desigualdades ou a oferta de serviços públicos de qualidade, por exemplo) se choque necessariamente – em maior ou menor grau, não importa – com os interesses da minoria detentora do capital, nada disposta a abrir mão de seus ganhos em nome de qualquer tipo de pacto ou contrato social de médio e longo prazo.
Nesse cenário, sempre é preciso lembrar que o atual modelo político brasileiro, gestado sob a égide da orientação liberal exercida pelo PMDB durante a transição da ditadura para a Nova República, foi elaborado precisamente com vistas a bloquear transformações mais profundas em nossa estrutura social, num momento em que a classe trabalhadora e a esquerda se organizavam crescentemente em torno do PT e da CUT e no qual movimentos, como o MST, começavam a surgir e outros, como a UNE, a renascer.
Diante disso, criava-se um arcabouço político-institucional capaz de garantir, sem maiores sustos, o pleno funcionamento dos mecanismos de acumulação de capital: um sistema em que todas as decisões se resolvem “por cima”, via Congresso, e no qual a necessária conquista da maioria parlamentar depende do concurso dos partidos conservadores, representantes diretos dos setores economicamente dominantes. Não por acaso, portanto, até hoje, mesmo um governo liderado pela esquerda tem suas mãos quase sempre atadas, na medida em que qualquer tentativa de ação que atente contra os interesses do capital pode ser facilmente bloqueada pelos mecanismos políticos constitucionais. Quando não, pela influência exercida pela grande mídia, que funciona como porta-voz desses setores. São os famosos “limites da governabilidade” que, na prática, impedem mudanças estruturais em nossa sociedade, especialmente no ritmo em que deveriam acontecer.
As novas demandas
Nos últimos dez anos, o “reformismo fraco” do “lulismo”, tal como o define André Singer, buscou atender a algumas das demandas sociais mais urgentes sem alterar essas regras do jogo, e mesmo se esforçando para evitar uma política de conflito aberto com o capital, operando criativa e habilidosamente nos estreitos limites que este delimitava. Ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, essa via teve o grande mérito de abrir a perspectiva de criação de um mais do que necessário paradigma pós-neoliberal (em consonância com o ocorrido em quase todos os demais países da América do Sul). Ao reformular (ainda que parcialmente) o papel do Estado e, por meio da massificação de políticas sociais, permitir a enormes camadas da população o acesso a bens, serviços e direitos que até então lhes eram frequentemente vedados, o lulismo começou a redesenhar de maneira positiva, e inédita, nossa estrutura de classes, diminuindo de modo sustentável nossas desigualdades sociais e regionais.
Ocorre que, ao operar essas mudanças, que naturalmente alteraram também os parâmetros de nossa luta de classes, ele fez nascer, desde seu bojo, e como não poderia deixar de acontecer, uma nova espiral de demandas e aspirações (em particular, por serviços públicos de melhor qualidade) que se confrontam crescentemente com a lógica perversa da acumulação capitalista brasileira – a qual, dentre outras coisas, se nutre fortemente da deficiência crônica dos serviços oferecidos pelo Estado.
Nesse ponto, os protestos de junho são exemplares. Pois, mesmo não assumindo, em nenhum momento, qualquer caráter abertamente “anticapitalista” (em alguns casos foi o oposto que ocorreu, com a esquerda tornando-se, por confusão ou instrumentalização direta da mídia, o alvo preferencial dos manifestantes), o eixo dos protestos, implícita ou “inconscientemente”, foi o combate a alguns dos efeitos mais perversos do capitalismo brasileiro, que persistem ou se agravaram em nossa vida cotidiana, mesmo após os avanços dos dez anos de governos petistas. Por exemplo, a mobilidade urbana e a ocupação das cidades pensadas pelo prisma do transporte individual; a nefasta diferença qualitativa entre a educação e a saúde públicas e privadas, com todas as graves e conhecidas consequências sociais decorrentes dessas distorções; ou a promíscua relação entre o poder público e a iniciativa privada, que permeia todo o nosso aparelho estatal.
Logo, e não por acidente, as respostas positivas da esquerda surgidas após as manifestações põem potencialmente em questão a própria lógica perversa da reprodução do capital no Brasil. Por exemplo, abrir planilhas e diminuir os exorbitantes ganhos das empresas de transporte, ou mesmo se encaminhar para a estatização, parcial ou total, desse serviço, a fim de assegurar uma tarifa acessível a todos, como se discute em São Paulo. Fazer uma reforma tributária progressiva, taxar as grandes fortunas e reverter os ganhos do petróleo do pré-sal para subsidiar a saúde e a educação públicas, como propõem o PT e, no último caso, o governo federal. Todas são propostas que, em alguma (ou grande) medida, colidem com o movimento predatório de acumulação capitalista hegemônico na história brasileira. Não é de espantar, portanto, que sua efetivação seja dificultada ao extremo pelo aparato político existente, profundamente entrelaçado aos interesses do poder econômico. Basta ver a dificuldade que teve o governo em fazer aprovar o uso dos royalties do petróleo para a área social, mesmo num cenário de efervescência política, para ter ideia da magnitude do problema colocado.
O porquê da resistência à reforma
É nesse ponto que se esclarecem tanto a urgência quanto a enorme dificuldade de reformar nosso sistema político. A explosão de vozes do mês de junho, para além da fragmentação de suas pautas, contou com um denominador comum expresso na vontade de se “fazer ouvir”. Mesmo diante do refluxo atual, é muito provável que no próximo período, caso nenhuma mudança substancial ocorra, surjam novas explosões (catalisadas pela realização da Copa do Mundo ou pelas eleições de 2014, por exemplo).
Assim, a proposta do governo, com o apoio do PT e dos movimentos sociais, de canalizar a energia surgida nas ruas em direção a uma reforma política é mais do que acertada: é o único caminho possível para superarmos os entraves de nossa estreita democracia e criarmos condições de aprofundar as conquistas sociais no próximo período. Para isso, no entanto, é preciso uma reforma capaz de ampliar o horizonte de nossa ação política, garantindo maior participação popular nos processos decisórios e, ao mesmo tempo, diminuindo a força do poder econômico na esfera política (no limite, trata-se de inverter a equação entre política e economia, subsumindo esta àquela).
Mas justamente aqui deparamos com um dos núcleos do problema – não por acaso, aliás, aquele que impediu a convocação imediata da Constituinte exclusiva ou mesmo do plebiscito propostos pela presidenta Dilma para a reforma política. Dar “voz ao povo”, de modo permanente, direto, para além do momento do voto, pode se mostrar arriscado (do ponto de vista do capital). Ao ampliar a capacidade de influência e o poder popular nas decisões governamentais, abre-se espaço para uma maior contestação – ainda que indireta, involuntária, ou mesmo “inconsciente” (isto é, concentrada apenas sobre seus efeitos cotidianos mais diretos, como ocorreu na onda de protestos) – das condições necessárias, no contexto brasileiro, à reprodução do capital. Em outras palavras: ampliar a participação popular põe em risco o poder da pequena parcela detentora da maior parte de nossa riqueza.
Eis a razão de fundo, que vai além dos interesses particulares de parlamentares e de seus partidos, da enorme resistência a uma reforma capaz de radicalizar nossa democracia, materializada nos discursos do núcleo-duro da oposição (PSDB, DEM e PPS, mas com o precioso auxílio de amplos setores da “base aliada”, sobretudo o PMDB), reproduzidos acriticamente pela grande mídia. Assim também se explica a frequente e completamente desconexa acusação de “chavismo” às propostas governistas, que reflete, no fundo, o temor das classes dominantes de ver seu poder diminuído, tal como tem ocorrido na Venezuela. A recusa ao financiamento público de campanha, outro ponto-chave das discussões acerca da reforma política, segue a mesma lógica de preservação dos interesses de uma minoria que se beneficia do financiamento privado e da corrupção dele decorrente.
O desafio posto
Diante desse cenário, enfim, não há soluções mágicas. De um lado, está claro que nada se pode esperar do atual Congresso (ou mesmo do próximo, que, sendo eleito sobre as mesmas bases do atual, tenderá a reproduzir seus vícios e interesses). Por outro lado, ficou igualmente demonstrado que tampouco basta um movimento, mesmo que de grande amplitude, de mobilizações difusas, “contra tudo”, para fazer avançar de fato nossa democracia. Assim, mudar nossa política, e portanto criar condições para transformar ainda mais e mais rapidamente nossa realidade, passa por garantir a mais profunda concentração de forças de todos os setores progressistas em torno deste objetivo comum: abrir espaços cada vez mais amplos para fazer valer a vontade democrática da população, mesmo diante dos entraves postos pela minoria economicamente dominante. Nesse sentido, a luta pela convocação de uma Constituinte exclusiva deve seguir na ordem do dia.
Por fim, convém lembrar que esse desafio diz respeito tanto àqueles setores organizados tradicionais (partidos de esquerda, movimentos sociais, sindicatos etc.) quanto aos novos atores sociais, aos jovens, aos cidadãos em rede, à “multidão”. Surge aí, no entanto, outra importante questão, sobre a qual toda a esquerda deve refletir seriamente, sobretudo após a jornada de lutas dos trabalhadores do 11 de julho: atualmente, qual é o real poder de mobilização e influência desses setores organizados, sem o concurso dos quais, é preciso sublinhar, nenhuma mudança de fôlego poderá ocorrer? Qual é sua verdadeira capacidade de dialogar com a parcela da população que ocupou as ruas brasileiras, em especial a juventude?
Mesmo não havendo espaço, aqui, para tecer maiores argumentações a esse respeito, podemos arriscar uma conclusão: responder com franqueza e humildade a essas questões, saber ouvir, verificar as deficiências e mensurar corretamente sua capacidade, refletir e buscar novas formas de organização, aproximação e integração social, novas plataformas de disputa política, não temer as ruas. Apenas por essa via passa a possibilidade de reconectar paulatinamente esses setores à “multidão”, conferir uma direção positiva à energia que ela suscitou, e assim, mesmo diante dos obstáculos erguidos pelos interesses diretos de uma minoria, impulsionar uma correlação de forças mais propícia às mudanças que tanto ansiamos.
* Vinícius dos Santos é bacharel em Ciências Sociais, mestre e doutorando em Filosofia pela UFSCar, bolsista da Fapesp.
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