Por David Ranc, no blog Viomundo:
Ontem [25 de junho], vários jornais franceses disseram que Copa do Mundo de 2014 tem sido, até agora, melhor organizada do que as Olimpíadas de Londres de 2012. É meu dever informar que isso de, forma alguma, distorce a minha visão.
Eu reafirmo o que disse.
Foram meses, talvez anos, de reportagens negativas a respeito da Copa do Mundo de 2014.
Antes de o evento começar, comentários de todos os lados (mídia ocidental, FIFA, donos e garçons de pubs) prometeram um desastre completo e tristeza no Brasil.
Os estádios não ficariam prontos a tempo, os espectadores não conseguiriam viajar para chegar aos locais dos jogos, porque a infraestrutura não ficaria pronta a tempo ou porque os brasileiros protestariam sem parar. A maioria dos comentaristas quase dizia “esses brasileiros preguiçosos, antipatrióticos e não confiáveis” – quando não dizia…
A não ser que eu esteja errado, até agora nada disso de fato aconteceu.
Todos os estádios estão prontos e foram usados para a Copa. Os brasileiros estão exercitando seu direito democrático de protestar e existem relatos isolados de que Pelé e algumas outras celebridades do futebol não conseguiram chegar ao local dos jogos.
Apesar disso, os estádios não estão apenas prontos. Eles ficam lotados em todos os jogos! Mesmo quando a Coréia do Sul está enfrentando a Argélia, em um jogo no qual pouco se ganha ou se perde.
Compare esse quadro com as Olimpíadas de Londres que foram marcadas por várias controvérsias:
*Vários locais de competição estavam praticamente vazios durante vários dos eventos do começo das Olimpíadas. Apesar de o Daily Telegraph ter culpado os estrangeiros (!) (como eles sempre fazem ), o LOCOG, Comitê Organizador de Londres dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos, relutantemente admitiu a responsabilidade quando encontraram soluções e usou o exército (!) para preencher os assentos vazios.
*O exército já havia sido mobilizado para cobrir as falhas do G4S, a empresa particular que o LOCOG contratou para fazer a segurança dos jogos.
Realmente, o G4S não contratou um número suficiente de guardas para as Olimpíadas. Como de costume , o Daily Telegraph e grande parte da imprensa britânica usaram casualmente a retórica xenofóbica, destacando que os guardas contratados pela G4S nem falavam inglês (“essas drogas de estrangeiros” novamente!).
*O Brasil foi acusado de ter exagerado no controle das manifestações de rua. Eu certamente concordaria que menos policiamento é, em geral, a solução melhor quando as pessoas estão exercendo seus direitos democráticos pacificamente.
No entanto, as autoridades britânicas exageram bem mais do que o governo brasileiro no que diz respeito à segurança.
Pense: o exército foi autorizado a instalar mísseis terra-ar em propriedades particulares próximas aos locais dos jogos durante as Olimpíadas. Como até mesmo a BBC destacou, a medida era apenas um “show” e não podia realmente servir a propósito algum.
Quem pode abater um avião a poucos metros de um estádio, a não ser alguém que esteja tentando de tudo para que esse avião caia no estádio e mate o maior número possível de pessoas? Não podemos deixar de mencionar que, apesar de as manifestações serem uma realidade no Brasil, ainda não vimos um avião ou uma asa delta ameaçar os locais dos jogos olímpicos.
Poderíamos adicionar à lista das “coisas que não foram muito bem em Londres 2012”, por exemplo, o penetra na parada das nações que chocou tanta gente na Índia, o LOCOG exibindo a bandeira da Coréia do Sul no lugar da bandeira da Coréia do Norte (obviamente o time da Coréia do Norte se recusou a aquecer e jogar até que a bandeira certa fosse exibida, o que provocou um grande atraso no jogo), mas o que interessa não é criticar a relativamente bem organizada Olimpíada. Não quero ser injusto com os britânicos já que sempre existem polêmicas em torno das organizações de megaeventos.
Vamos apenas recordar que, até onde vai o meu conhecimento, o único evento esportivo internacional que até hoje teve que mudar de país, porque um estádio não ficou pronto a tempo, foi o Campeonato Mundial de Atletismo de 2007, planejado para Wembley, Londres, que acabou sendo realizado em Oslo. Mais uma vez, sejamos justos com a Grã-Bretanha: os atrasos nas construções são comuns em todo país, e os orçamentos das construções invariavelmente estouram.
O ponto, na verdade, é mostrar o abismo que existe entre a realidade e a percepção.
Sempre que um evento é organizado em um país do Hemisfério Sul, o discurso, e a memória, são de fiascos potenciais que, em geral, não se materializaram. Sempre que um evento é organizado nos países do Hemisfério Norte, o discurso e a memória são de sucesso, mesmo quando os fiascos aconteceram.
Seguindo Edward Said, podemos chamar este fenômeno de “orientalização”. Quer dizer: em um mundo no qual a divisão Leste/Oeste foi substituída, nos anos 90, pela divisão Norte-Sul, esse é o resultado de uma visão distorcida que a mídia do Ocidente/Norte tem a respeito do Oriente/Sul.
Vamos dizer de forma mais clara: esse é um discurso xenofóbico e até mesmo racista.
PS do Viomundo: David Ranc é um pesquisador francês em esportes e relações internacionais. Faz parte do projeto Pesquisa em Futebol em uma Europa Expandida (Free, na sigla em inglês), um consórcio que reúne universidades de vários países da União Europeia e da Turquia.
* Publicado originalmente no blog do Free Projet (Pesquisa em Futebol em uma Europa Expandida). Tradução de Heloisa Villela.
Ontem [25 de junho], vários jornais franceses disseram que Copa do Mundo de 2014 tem sido, até agora, melhor organizada do que as Olimpíadas de Londres de 2012. É meu dever informar que isso de, forma alguma, distorce a minha visão.
Eu reafirmo o que disse.
Foram meses, talvez anos, de reportagens negativas a respeito da Copa do Mundo de 2014.
Antes de o evento começar, comentários de todos os lados (mídia ocidental, FIFA, donos e garçons de pubs) prometeram um desastre completo e tristeza no Brasil.
Os estádios não ficariam prontos a tempo, os espectadores não conseguiriam viajar para chegar aos locais dos jogos, porque a infraestrutura não ficaria pronta a tempo ou porque os brasileiros protestariam sem parar. A maioria dos comentaristas quase dizia “esses brasileiros preguiçosos, antipatrióticos e não confiáveis” – quando não dizia…
A não ser que eu esteja errado, até agora nada disso de fato aconteceu.
Todos os estádios estão prontos e foram usados para a Copa. Os brasileiros estão exercitando seu direito democrático de protestar e existem relatos isolados de que Pelé e algumas outras celebridades do futebol não conseguiram chegar ao local dos jogos.
Apesar disso, os estádios não estão apenas prontos. Eles ficam lotados em todos os jogos! Mesmo quando a Coréia do Sul está enfrentando a Argélia, em um jogo no qual pouco se ganha ou se perde.
Compare esse quadro com as Olimpíadas de Londres que foram marcadas por várias controvérsias:
*Vários locais de competição estavam praticamente vazios durante vários dos eventos do começo das Olimpíadas. Apesar de o Daily Telegraph ter culpado os estrangeiros (!) (como eles sempre fazem ), o LOCOG, Comitê Organizador de Londres dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos, relutantemente admitiu a responsabilidade quando encontraram soluções e usou o exército (!) para preencher os assentos vazios.
*O exército já havia sido mobilizado para cobrir as falhas do G4S, a empresa particular que o LOCOG contratou para fazer a segurança dos jogos.
Realmente, o G4S não contratou um número suficiente de guardas para as Olimpíadas. Como de costume , o Daily Telegraph e grande parte da imprensa britânica usaram casualmente a retórica xenofóbica, destacando que os guardas contratados pela G4S nem falavam inglês (“essas drogas de estrangeiros” novamente!).
*O Brasil foi acusado de ter exagerado no controle das manifestações de rua. Eu certamente concordaria que menos policiamento é, em geral, a solução melhor quando as pessoas estão exercendo seus direitos democráticos pacificamente.
No entanto, as autoridades britânicas exageram bem mais do que o governo brasileiro no que diz respeito à segurança.
Pense: o exército foi autorizado a instalar mísseis terra-ar em propriedades particulares próximas aos locais dos jogos durante as Olimpíadas. Como até mesmo a BBC destacou, a medida era apenas um “show” e não podia realmente servir a propósito algum.
Quem pode abater um avião a poucos metros de um estádio, a não ser alguém que esteja tentando de tudo para que esse avião caia no estádio e mate o maior número possível de pessoas? Não podemos deixar de mencionar que, apesar de as manifestações serem uma realidade no Brasil, ainda não vimos um avião ou uma asa delta ameaçar os locais dos jogos olímpicos.
Poderíamos adicionar à lista das “coisas que não foram muito bem em Londres 2012”, por exemplo, o penetra na parada das nações que chocou tanta gente na Índia, o LOCOG exibindo a bandeira da Coréia do Sul no lugar da bandeira da Coréia do Norte (obviamente o time da Coréia do Norte se recusou a aquecer e jogar até que a bandeira certa fosse exibida, o que provocou um grande atraso no jogo), mas o que interessa não é criticar a relativamente bem organizada Olimpíada. Não quero ser injusto com os britânicos já que sempre existem polêmicas em torno das organizações de megaeventos.
Vamos apenas recordar que, até onde vai o meu conhecimento, o único evento esportivo internacional que até hoje teve que mudar de país, porque um estádio não ficou pronto a tempo, foi o Campeonato Mundial de Atletismo de 2007, planejado para Wembley, Londres, que acabou sendo realizado em Oslo. Mais uma vez, sejamos justos com a Grã-Bretanha: os atrasos nas construções são comuns em todo país, e os orçamentos das construções invariavelmente estouram.
O ponto, na verdade, é mostrar o abismo que existe entre a realidade e a percepção.
Sempre que um evento é organizado em um país do Hemisfério Sul, o discurso, e a memória, são de fiascos potenciais que, em geral, não se materializaram. Sempre que um evento é organizado nos países do Hemisfério Norte, o discurso e a memória são de sucesso, mesmo quando os fiascos aconteceram.
Seguindo Edward Said, podemos chamar este fenômeno de “orientalização”. Quer dizer: em um mundo no qual a divisão Leste/Oeste foi substituída, nos anos 90, pela divisão Norte-Sul, esse é o resultado de uma visão distorcida que a mídia do Ocidente/Norte tem a respeito do Oriente/Sul.
Vamos dizer de forma mais clara: esse é um discurso xenofóbico e até mesmo racista.
PS do Viomundo: David Ranc é um pesquisador francês em esportes e relações internacionais. Faz parte do projeto Pesquisa em Futebol em uma Europa Expandida (Free, na sigla em inglês), um consórcio que reúne universidades de vários países da União Europeia e da Turquia.
* Publicado originalmente no blog do Free Projet (Pesquisa em Futebol em uma Europa Expandida). Tradução de Heloisa Villela.
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