Por Bruno Aziz |
Ao aprovar, por 6 votos a 4, o desconto automático nos salários de servidores públicos que fizerem greve, o Supremo Tribunal Federal assumiu uma decisão que instaura uma relação de vassalagem no serviço público. Exclui os 10 milhões de brasileiros que são funcionários públicos do exercício de um direito assegurado a todo assalariado, que é o de cruzar os braços sempre que considerar que têm um motivo justo para tanto.
Válida em todas as esferas da administração - federal, estadual, municipal - a decisão terá um impacto político imediato, afetando o destino do conjunto dos brasileiros. Ocorre numa situação política específica, na qual conquistas e direitos dos trabalhadores se encontram sob ameaça direta.
Neste final de outubro de 2016, uma grande parcela da população tenta se organizar para resistir a PEC 241, que entra em regime de votação pelo Senado, onde os debates começam nos próximos dias e devem prolongar-se até dezembro. Propostas de maior peso político, como uma greve geral, estavam em debate. Podem tornar-se mais complicadas depois de ontem.
Não custa lembrar que, após a PEC 241, outro ponto da agenda é a reforma da Previdência. O seguinte, envolve o desmanche da CLT. Num ambiente de desemprego alto e salários em queda no setor privado, a mobilização dos servidores tem um papel essencial como parte legítima da resistência.
Com seu voto o Supremo assume um alinhamento e garante uma ajuda de bandeja ao governo Temer-Meirelles. Desde ontem, quem decidir fazer greve no serviço público deve estar preparado. Conforme o ministro Luiz Roberto Barroso, alinhado com a maioria, os governantes não têm opção de cortar ou não os vencimentos dos grevistas. A decisão vem de cima para baixo, disse Barroso no julgamento: "o poder publico não apenas pode, mas deve cortar o ponto."
Ao punir previamente as paralisações, o STF deu a governadores e prefeitos um argumento a mais para ajudar Temer e Meirelles no projeto de arrocho. Podem ajudar a aprovar o projeto de desmanche com a promessa de que não irão enfrentar problemas com eventuais reações do funcionalismo doméstico, agora e no futuro.
Num prazo mais longo, a decisão consolida a existência de dois Brasis na administração, realidade que traduz um país estruturalmente desigual.
Se já mostrou tolerância e mesmo apego com faixas privilegiadas de remuneração nas camadas superiores do Estado, ontem o STF transformou o servidor comum num cidadão de segunda classe.
O resultado prático será ampliar a insatisfação das camadas que atuam nos escalões inferiores, justamente aquelas que são responsáveis pelo atendimento ao público. Quem frequenta filas em guichês e repartições já sabe. Sem alternativas civilizadas, muitos funcionários acabam transferindo a própria indignação para o cidadão comum, que nada tem a ver com isso.
É bom lembrar que o artigo 37 da Constituição de 1988 autoriza a greve de servidores. Determina apenas que seja feita uma legislação especial para seu exercício, o que é justo, pelas características específicas da atividade. Mas esta é uma tarefa que cabe ao Congresso, que tem a missão constitucional de formular leis, e não ao Judiciário. A este poder, não eleito, cabe dizer se as leis - criadas por quem for eleito para isso - estão sendo cumpridas corretamente, o que já permite questionar a decisão de ontem pela base. Não cabe ao Judiciário punir uma situação que a Constituição mandou regulamentar - mas não proibir.
A decisão de ontem lembra períodos de auto-exaltação do Judiciário, como acontecia na Ação Penal 470, quando se bradava que a "Constituição é aquilo que o Supremo diz que ela é."
Quem gosta de argumentar que o STF só atravessa a fronteira entre poderes porque o Legislativo se omite em relação a suas obrigações precisa prestar atenção num aspecto importante das democracias. Justamente porque tem a missão de formular leis, em nome do conjunto da população, o Legislativo necessita de tempo para dar conta de sua tarefa. Não está falando em nome de uma maioria de onze cidadãos togados reunidos numa sala, em frente à câmaras de TV. Fala por um país, que de quatro em quatro anos irá decidir se devem ou não permanecer em seus cargos. Nessa condição é preciso articular interesses políticos diversos, harmonizar pontos de vista muitas vezes conflitantes, para a tomada de uma decisão.
No caso do direito de greve dos servidores, seria desonesto fazer um balanço único. Ocorreram abusos, que não precisam ser mencionados aqui. Mas também ocorreram paralisações legítimas, como lembrava, já em 2007, o ministro aposentado José Luciano Castilho Pereira, do TST: "As greves dos servidores têm acontecido com freqüência e, somente com elas, as reivindicações dos servidores têm sido atendidas."
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