Por Fernando Horta, no site Brasil Debate:
Desde o século XIX, o mundo não se sentia tão desconfortável pelo surgimento de um “xerife” que se arrogava o direito de intervir em qualquer parte do mundo, a partir de seus pressupostos éticos. Em 1845, a Inglaterra lançou o Bill Aberdeen, declarando-se em condições e legitimidade de atacar qualquer embarcação carregando escravos, em qualquer lugar do mundo. Trump, nos últimos dias, avisou que os ataques que foram lançados sobre a Síria seriam um “aviso” a todos os países “fora da ordem internacional”. Para amenizar o discurso, assessores de Trump rapidamente apontaram para a Coreia do Norte e seu teste de mísseis balísticos próximos ao Japão.
As tensões entre Washington e Kim Jong Un parecem realmente incomodar Coreia do Sul e China, não devido às bravatas do líder coreano, mas ao fato de que, agora, um presidente norte-americano se incomoda com elas. Trump deslocou pesada força marítima para a região da península da Coreia, ao que foi rebatido com a ameaça de ser “transformado em cinzas” pela Coreia do Norte. É impossível deixar de ligar os dois casos, e passar a perceber que os EUA de Trump parecem querer agir como reserva moral do planeta.
Esta posição tem, ao menos em curto prazo, dado resultado frente ao público norte-americano. A opinião pública norte-americana oscila entre o apoio aberto às ações de Trump e uma silenciosa neutralidade. Curiosamente, os democratas abriram mão de atacar Trump. Hillary Clinton apoiou as ações do presidente e Bernie Sanders declarou que o problema dos bombardeios era o fato de serem “unilaterais”. Não houve uma crítica mais contundente à falta de adesão aos princípios de direito internacional ou à ética dos ataques. As vozes mais agressivas contra o bombardeio vieram de Rand Paul (senador republicano pelo Kentucky). O “fogo amigo” por parte dos republicanos foi minorado pelo senador John McCain (republicano pelo Arizona) que não só apoiou as ações de Trump como afirmou que Paul “não tem influência alguma no Senado”.
Se o ambiente interno parece ter se acomodado às ações de Trump, sua diplomacia deixou bem clara que esta será a tônica de suas atitudes. A embaixadora norte-americana na ONU, Nikki Haley, afirmou que “os ataques estão plenamente justificados” e que “os EUA podem atacar novamente”, deixando clara a posição de polícia que Trump parece se sentir à vontade em exercer. Imediatamente, Rússia e Irã estreitaram ainda mais os laços e declararam que estão prontos a reagir a qualquer nova tentativa de ação norte-americana que venha a atacar o direito internacional na Síria. China e Coreia do Sul imediatamente se puseram a interceder na disputa entre EUA e Coreia do Norte, tentando diminuir o tom das ameaças e evitar um confronto. De qualquer, forma o mal-estar internacional está estabelecido.
É fato que os EUA têm constantemente lançado mão de intervenções unilaterais, mas existem diferenças com relação a este momento. A primeira e mais gritante delas é que os EUA (seu território e cidadãos) não foram atacados para justificar uma ação como a tomada contra a Síria. À luz do direito internacional, a ação de Trump é uma agressão imotivada e poderia ser tratado como um “ato de guerra” sem um “casus belli” legítimo.
O segundo ponto de diferença é que a busca de apoio internacional se deu APÓS a tomada das ações e não antes, como aconteceu, por exemplo, na segunda guerra do Iraque. Os EUA antes, ainda que reunindo poucos e inconsistentes apoios, buscavam formar uma “coalizão” para somente então atacar. Trump atira primeiro e pergunta depois. Usando abertamente e unilateralmente o poder militar, Trump ajuda a enterrar a já combalida estrutura internacional montada após 1945.
Há muito se sabe que o custo da ação militar aberta vai subindo exponencialmente com o seu uso. Ao mesmo tempo, a legitimidade das ações tomadas tende a cair violentamente. Mesmo durante a Guerra Fria, os EUA evitaram o uso aberto da força de forma unilateral para, segundo a interpretação de John Ikenberry, fortalecer uma ordem em longo prazo. Ao evitar o uso explícito da força, os EUA trocavam realizar suas vantagens materiais de forma imediata por estabilizar o sistema internacional, construindo amarras que contivessem o comportamento dos Estados de forma não violenta. Trump vai em sentido contrário.
Existem, ao menos, dois outros grandes problemas nesta estratégia. O primeiro é que “faltou combinar com os russos”, parafraseando Garrincha. Putin rompeu os acordos de cooperação militar com os EUA 24 horas após o ataque e já colocou uma boa parte da sua máquina de guerra em alerta. Irã também se manifestou e no mesmo diapasão russo. Os EUA precisam tomar cuidado para não provocarem uma aliança contra-hegemônica com vantagem geopolítica para o oriente. Duvida-se também que a situação financeira norte-americana seja propícia para a guerra. Os elevados déficits internos não são um cenário convidativo para conflitos duradouros. Se o “complexo industrial-militar” norte-americano vislumbra lucros em situações como esta, o tesouro do país sente o esforço de guerra, especialmente quando o presidente reduz impostos.
O segundo ponto a ser levantado trata da amplitude do termo “países fora da ordem internacional”. Quais ordens seriam suficientes para fazer o líder norte-americano ensejar um ataque? Estaria Israel e sua sempre mencionada política de assentamentos fora desta ordem? A Arábia Saudita e suas execuções sumárias em desacordo com convenções de direitos humanos? A Rússia e sua política para a Crimeia? A China com sua relação conturbada com Hong Kong? O Brasil e seu estendido mar territorial ou a construção do submarino nuclear? Efetivamente até onde vai a discricionariedade do novo xerife na aplicação das normas internacionais?
Infelizmente, o governo Trump, enquanto não oferecer respostas claras sobre estas indagações, lançará mais e mais o cenário internacional em uma época de incertezas. Entretanto, parece que o mandatário norte-americano não se importa de criar incertezas internacionais contanto que estas lhe tragam a consolidação de certezas internas. De fato, isto também não é novo. Os EUA historicamente consolidaram poder interno através de guerras internacionais. A novidade é que, dada a baixa popularidade de Trump já no início do seu mandato, a consolidação interna demandará ações externas de calibre bastante alto. Terá o sistema internacional capacidade de assimilar estas pressões?
Desde o século XIX, o mundo não se sentia tão desconfortável pelo surgimento de um “xerife” que se arrogava o direito de intervir em qualquer parte do mundo, a partir de seus pressupostos éticos. Em 1845, a Inglaterra lançou o Bill Aberdeen, declarando-se em condições e legitimidade de atacar qualquer embarcação carregando escravos, em qualquer lugar do mundo. Trump, nos últimos dias, avisou que os ataques que foram lançados sobre a Síria seriam um “aviso” a todos os países “fora da ordem internacional”. Para amenizar o discurso, assessores de Trump rapidamente apontaram para a Coreia do Norte e seu teste de mísseis balísticos próximos ao Japão.
As tensões entre Washington e Kim Jong Un parecem realmente incomodar Coreia do Sul e China, não devido às bravatas do líder coreano, mas ao fato de que, agora, um presidente norte-americano se incomoda com elas. Trump deslocou pesada força marítima para a região da península da Coreia, ao que foi rebatido com a ameaça de ser “transformado em cinzas” pela Coreia do Norte. É impossível deixar de ligar os dois casos, e passar a perceber que os EUA de Trump parecem querer agir como reserva moral do planeta.
Esta posição tem, ao menos em curto prazo, dado resultado frente ao público norte-americano. A opinião pública norte-americana oscila entre o apoio aberto às ações de Trump e uma silenciosa neutralidade. Curiosamente, os democratas abriram mão de atacar Trump. Hillary Clinton apoiou as ações do presidente e Bernie Sanders declarou que o problema dos bombardeios era o fato de serem “unilaterais”. Não houve uma crítica mais contundente à falta de adesão aos princípios de direito internacional ou à ética dos ataques. As vozes mais agressivas contra o bombardeio vieram de Rand Paul (senador republicano pelo Kentucky). O “fogo amigo” por parte dos republicanos foi minorado pelo senador John McCain (republicano pelo Arizona) que não só apoiou as ações de Trump como afirmou que Paul “não tem influência alguma no Senado”.
Se o ambiente interno parece ter se acomodado às ações de Trump, sua diplomacia deixou bem clara que esta será a tônica de suas atitudes. A embaixadora norte-americana na ONU, Nikki Haley, afirmou que “os ataques estão plenamente justificados” e que “os EUA podem atacar novamente”, deixando clara a posição de polícia que Trump parece se sentir à vontade em exercer. Imediatamente, Rússia e Irã estreitaram ainda mais os laços e declararam que estão prontos a reagir a qualquer nova tentativa de ação norte-americana que venha a atacar o direito internacional na Síria. China e Coreia do Sul imediatamente se puseram a interceder na disputa entre EUA e Coreia do Norte, tentando diminuir o tom das ameaças e evitar um confronto. De qualquer, forma o mal-estar internacional está estabelecido.
É fato que os EUA têm constantemente lançado mão de intervenções unilaterais, mas existem diferenças com relação a este momento. A primeira e mais gritante delas é que os EUA (seu território e cidadãos) não foram atacados para justificar uma ação como a tomada contra a Síria. À luz do direito internacional, a ação de Trump é uma agressão imotivada e poderia ser tratado como um “ato de guerra” sem um “casus belli” legítimo.
O segundo ponto de diferença é que a busca de apoio internacional se deu APÓS a tomada das ações e não antes, como aconteceu, por exemplo, na segunda guerra do Iraque. Os EUA antes, ainda que reunindo poucos e inconsistentes apoios, buscavam formar uma “coalizão” para somente então atacar. Trump atira primeiro e pergunta depois. Usando abertamente e unilateralmente o poder militar, Trump ajuda a enterrar a já combalida estrutura internacional montada após 1945.
Há muito se sabe que o custo da ação militar aberta vai subindo exponencialmente com o seu uso. Ao mesmo tempo, a legitimidade das ações tomadas tende a cair violentamente. Mesmo durante a Guerra Fria, os EUA evitaram o uso aberto da força de forma unilateral para, segundo a interpretação de John Ikenberry, fortalecer uma ordem em longo prazo. Ao evitar o uso explícito da força, os EUA trocavam realizar suas vantagens materiais de forma imediata por estabilizar o sistema internacional, construindo amarras que contivessem o comportamento dos Estados de forma não violenta. Trump vai em sentido contrário.
Existem, ao menos, dois outros grandes problemas nesta estratégia. O primeiro é que “faltou combinar com os russos”, parafraseando Garrincha. Putin rompeu os acordos de cooperação militar com os EUA 24 horas após o ataque e já colocou uma boa parte da sua máquina de guerra em alerta. Irã também se manifestou e no mesmo diapasão russo. Os EUA precisam tomar cuidado para não provocarem uma aliança contra-hegemônica com vantagem geopolítica para o oriente. Duvida-se também que a situação financeira norte-americana seja propícia para a guerra. Os elevados déficits internos não são um cenário convidativo para conflitos duradouros. Se o “complexo industrial-militar” norte-americano vislumbra lucros em situações como esta, o tesouro do país sente o esforço de guerra, especialmente quando o presidente reduz impostos.
O segundo ponto a ser levantado trata da amplitude do termo “países fora da ordem internacional”. Quais ordens seriam suficientes para fazer o líder norte-americano ensejar um ataque? Estaria Israel e sua sempre mencionada política de assentamentos fora desta ordem? A Arábia Saudita e suas execuções sumárias em desacordo com convenções de direitos humanos? A Rússia e sua política para a Crimeia? A China com sua relação conturbada com Hong Kong? O Brasil e seu estendido mar territorial ou a construção do submarino nuclear? Efetivamente até onde vai a discricionariedade do novo xerife na aplicação das normas internacionais?
Infelizmente, o governo Trump, enquanto não oferecer respostas claras sobre estas indagações, lançará mais e mais o cenário internacional em uma época de incertezas. Entretanto, parece que o mandatário norte-americano não se importa de criar incertezas internacionais contanto que estas lhe tragam a consolidação de certezas internas. De fato, isto também não é novo. Os EUA historicamente consolidaram poder interno através de guerras internacionais. A novidade é que, dada a baixa popularidade de Trump já no início do seu mandato, a consolidação interna demandará ações externas de calibre bastante alto. Terá o sistema internacional capacidade de assimilar estas pressões?
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