Por Saul Leblon, no site Carta Maior:
Marcelo Odebrecht é um capitalista para ninguém botar defeito.
Herdeiro da empresa fundada pelo avô e expandida pelo pai, uma das maiores construtoras do país e do mundo, logo entendeu que era inexorável servir à lógica da acumulação intrínseca ao sistema do qual é senhor, ‘mas também escravo’, como já disse um alemão especializado no assunto no século XIX.
O roteiro dessa dinâmica persegue objetivos sabidos.
Otimizar os fatores pela ampliação da escala.
Explorar oportunidades convergentes.
Devorar o concorrente para não ser devorado por ele –canibalismo hoje expandido à escala global.
Elevar as taxas de retorno ao paradigma rentista que se libertou da etapa produtiva da acumulação.
E, claro, exercer a ganância na exploração da fonte fundamental da riqueza. Aquela para a qual o capitalismo nunca cessa de aperfeiçoar as formas de extrair o suor e aquilo que o acompanha: o lastro real de valor das coisas.
O impulso inexorável à expansão conduziu e foi conduzido pelo herdeiro da Odebrecht num período favorável de alta do ciclo econômico no Brasil, com gigantesca carteira de obras públicas.
A holding Odebrecht, sob sua batuta desde 2006 e, oficialmente, a partir de 2009, estendeu o alcance do núcleo original da engenharia de construção para 15 eixos de negócios, com ramificações nos EUA, Europa, Oriente, América Latina e África.
Não é uma singularidade pantagruélica dos ‘odebrechts’.
Ou uma artimanha urdida nos bastidores do ‘lulopetismo’, como gostaria a frivolidade pedestre das mirians leitões.
É a lógica compulsiva do processo sistêmico de acumulação capitalista.
O mesma que traz a Alstom ao Brasil, por exemplo, para disputar com os mesmos métodos e o mesmo arrojo, as ‘quase-licitações’ das obras do metrô de São Paulo --e vencê-las da forma sabida, ao preço agora escancarado.
Oito anos depois de assumir a frente dos negócios da família, Marcelo tinha sob seu comando 180 mil funcionários; um faturamento de R$ 130 bilhões.
A meta do empresário cuja delação escancarou a cooptação de um sistema de representação política do século XIX, pela engrenagem capitalista do século XXI, era atingir R$ 200 bilhões em 2020.
Carta Maior chama a atenção para a dinâmica estrutural por trás de um capítulo devastador da história brasileira não para edulcorar a responsabilidade das maiores forças e lideranças progressistas nesse processo ecumênico e suprapartidário.
A verdade é que dele participaram, ‘ todas as elites, todos os poderes, inclusive a imprensa, (que dele) tinham ciência(...) há 30 anos (porque tudo) acontecia sob as barbas de todos...’ .
O desabafo de Emilio Odebrecht, pai de Marcelo, diante da indignação seletiva do bravo jornalismo brasileiro à delação da família e de seus funcionários resume a hipocrisia dos escandalizados.
Não há querubins nem serafins nessa história.
Tampouco ela cumprirá integralmente seu papel no esforço do esclarecimento se ficar restrita à narrativa da demonização maniqueísta e moralista, mesmo quando expressa no idioma de esquerda.
Carta Maior registra aqui seu esforço, antigo, para escapar às armadilhas das boas intenções movediças.
Já a partir da crise do dito ‘mensalão’ Carta Maior sublinharia sistematicamente sua crítica : ‘ (...) às aberrações que a prática (do caixa 2) encerra, a saber: descarna partidos, esfarela programas, subverte a urna e aleija lideranças...’ (trecho do editorial de Carta Maior publicado em 23 de outubro de 2012)
Esse contraponto não contradizia o apoio claro a avanços sociais e econômicos inéditos e substantivos que para serem aprofundados necessitavam ser reconhecidos e defendidos com estruturas democráticas compatíveis --insistiria nossa angustiada crônica dos acontecimentos.
Ele levaria a outra ressalva diante de um equívoco de gravidade histórica superlativa.
O economicismo no poder.
Ele permeou doze anos de governos progressistas, lastreados na desastrosa suposição de que ganhos incrementais de renda das camadas populares promoveriam mecanicamente e consciência política indispensável à autodefesa popular do processo.
Foi assim que se terceirizou às gondolas dos supermercados a responsabilidade pelo salto ideológico, político e organizativo capaz de promover a mudança crucial na correlação de forças da sociedade.
A negligência mostrou-se fatal.
Quando a persistência da desordem global secou o lubrificante das receitas externas que permitiam girar a roda da riqueza sem luta social aberta, sobreveio o golpe.
Um vetor da ofensiva, porém, já corroía a solidez das conquistas há mais tempo.
Desde o mensalão, em 2006, a mídia cuidava de direcionar ao PT, e personalizar em Lula, o que era uma distorção suprapartidária intrínseca ao sistema político brasileiro.
Incansáveis pelotões da indignação seletiva escrita e falada empenhavam-se em convencer a opinião pública de que, no caso do PT, a política transformara-se em degeneração sistêmica. A corrupção metabólica entranhara-se em suas lideranças.
Nas demais siglas relevantes, o desvio –quando inevitável reconhece-lo-- seria pontual.
A delação de Marcelo Odebrecht não vem apenas desembaçar a visão de uma sociedade deliberadamente vedada, anos a fio, por um jornalismo e um judiciário vergonhosamente cúmplices desse esbulho.
Ela permite, a quem quiser, enxergar melhor o que havia por trás da fuligem.
Havia a crise de uma democracia subordinada a um sistema político integralmente cevado na captura do Estado para servir ao capital.
O dispositivo midiático conservador optou conscientemente pelo argumento de que a 'maçã podre’ era o lulopetismo: um consenso jornalístico dispensável de provas que o judiciário endossou.
Não se economizou paiol nessa fuzilaria.
Em 2012, no auge do jornalismo isento, apenas nas quatro semanas terminadas em 13 de agosto, como informou então Marcos Coimbra, da Vox Populi, 65 mil textos foram publicados na imprensa sobre o ‘mensalão’.
Todos repisavam o esbulho que circunscrevia o geral no particular.
No Jornal Nacional da Globo, no mesmo período, para cada 10 segundos de cobertura neutra houve cerca de 1,5 mil segundo negativos, batendo na mesma tecla da demonização do PT.
Nos anos mais recentes, coube ao juiz Sergio Moro lapidar a avalanche.
E corroborar a farsa rudimentarmente sagrada no patético power point de um figurante do enredo já a meio caminho do messianismo.
A pedra angular do processo, assim, permaneceu oculta.
Mesmo após Marcelo Odebrecht ter nivelado o que durante décadas se pretendeu distinguir --carecas, mineirinhos, santos, príncipes da sociologia, a cúpula do golpe, o baile todo, enfim – a sociedade continua a ser entorpecida pelas lentes da simplificação.
Essa que reduz o jogo pesado no qual se movem as forças monumentais do capitalismo a um duelo romântico entre anjos e demônios, entre ‘liberais’ e ‘aparelhistas’.
Agora que a porta foi arrombada não basta que guardiões da fé nesse dogma ofereçam algumas carcaças mortas às labaredas do inferno para dar consistência à fabula maniqueísta.
É preciso ir além de chutar cachorro morto.
Para tirar o país do socavão em que se encontra --emparedado entre o esgotamento de um ciclo de desenvolvimento e a indisponibilidade de canais democráticos para repactuar o seguinte-- será necessário institucionalizar novas práticas que sustentem um degrau superior de participação popular na ordenação do passo seguinte de nossa história.
Somente assim será possível subordinar a dinâmica que fez a Odebrecht ser o colosso que é.
E concentrar o poder que tem.
Nada muito diferente, repita-se, das dimensões e intrusões cometidas pelos executivos da Siemens, Alstom e assemelhados no metrô de São Paulo.
Ou do que fazem bancos e endinheirados nativos, parte deles flagrada em escândalos de sonegação que ungiu a plutocracia brasileira ao topo do ranking mundial de lavagens e golpes fiscais...
Se enxergasse esse horizonte a sua frente –ele não enxerga-- o meritíssimo de Curitiba perceberia que a sua lógica jurídica conduz ao mapa de Borges: aquele que se amplia a exaustão, até adquirir finalmente a escala da realidade.
A escala capitalista do século XXI é a das grandes corporações e a da voragem financeira que se expande no terreno cedido pela democracia e no recuo imposto pela agenda do Estado mínimo desde os anos 70, urbi et orbi.
Estudos do economista francês, François Morin, indicam que um núcleo formado por 28 megabancos globais funciona como uma espécie de fígado do aparelho circulatório do capital na atualidade: todo o sistema passa por eles de alguma forma.
Visto desse mirante o Estado é o anão capturado pelos paquidermes da concentração de capital e das megacorporações privadas.
Esse é o reino das Odebrechts.
Nele, a crise fiscal reflete o endividamento de um Tesouro tangido a emprestar de quem deveria taxar.
E a hipertrofia corporativa é a contraface de um Estado atrofiado em sua capacidade de ouvir a população, planejar o desenvolvimento, empreender e coordenar as respostas às demandas da sociedade.
Essa constatação não endossa a tese da corrupção como fatalidade.
Mas tampouco reconhece na agenda dos depuradores do capitalismo uma resposta à altura da encruzilhada vivida pelo país.
Dotados não raro de indisfarçável escovão ideológico, como no caso da Lava Jato, os depuradores frequentemente pavimentam um paradoxo.
Fortalecem interesses que convalidam o que se afirma combater. Ou seja, a rapinagem do interesse público pela sucção dos apetites unilaterais
O que está em jogo, portanto, é algo mais que uma ópera bufa de salvadores da pátria.
É uma tragédia que a encruzilhada do desenvolvimento brasileiro nesse momento seja escrutinada por critérios tão bisonhos, incensados por uma mídia de singular mediocridade, empenhada acima de tudo em agilizar o abate daquele que desde 2002 estorva suas preferências na savana eleitoral.
A suposição de que existe um mercado puro --como o Deus com o qual o procurador de Curitiba se comunica-- enfrenta colisões apreciáveis com a realidade do capitalismo em nosso tempo.
É isso, sobretudo isso, o que a trajetória da Odebrecht e a delação de Marcelo e Emilio escancaram.
Vivemos um tempo em que a supremacia dos oligopólios e a deriva da democracia e do desenvolvimento não são realidades antagônicas.
Antes, são complementares.
O conjunto exprime uma racionalidade impossível de se combater sem uma intervenção política que credencie o Estado e a democracia para subordinarem o mercado à finalidade social do desenvolvimento.
Esse é o drama do povo brasileiro, turvado em sua visão política pela indigência ética e intelectual de um jornalismo que deforma aquilo que a sirene da história informa.
A delação da Odebrecht evidencia o quão profunda pode ser a ingerência privada na esfera pública, quando esta jaz imobilizada por um torniquete composto de Estado fraco (‘mínimo’), sistema político apartado da vigilância cidadã, insuficiência fiscal e crispação da ganância privada, expressa na fusão entre partidos e mercado.
O conjunto culminou no caso brasileiro na excrescência de um congresso argentário, em assembleia permanente contra o povo.
Nessas condições verifica-se que são as corporações que planejam a sociedade.
Aos ingênuos, ou espertos, que embarcam o ‘gigantismo estatal’ na lista dos demônios a serem calcinados na fornalha de Curitiba, cabe esclarecer: a tragédia atual reside justamente em um ‘intervencionismo' às avessas.
Esse em que o oligopólio subordina a sociedade, suas lideranças, seus partidos, seus direito e seu projeto de futuro.
A matriz local dessa engrenagem pegou carona na Lava Jato na tentativa de retornar ao poder e terminar o serviço iniciado nos anos 90, quando a agenda neoliberal chegou ao Planalto.
A saber: comprimir ganhos reais de salário, esfacelar o pleno emprego, implodir a Carta de 1988, transformar direitos sociais em serviços pagos, revogar a legislação trabalhista de Vargas, espremer o poder de barganha sindical e, o mais importante, retomar as grandes privatizações do patrimônio público brasileiro --o Banco do Brasil, o BNDES, a Caixa Federal, a Previdência Social, o SUS e a joia da coroa deste e de todos os tempos, o pré-sal.
Aquilo que já foi feito está presente no DNA da corrupção que agora se combate para promover um upgrade nas suas causas.
Ou seja, erigir um Estado ainda mais fraco, diante de um mercado desregulado ainda mais forte, com governantes, partidos, lideranças e urnas adicionalmente reféns de seus interesses.
Não é uma jabuticaba brasileira.
Trata-se do metabolismo constitutivo do capitalismo em nosso tempo.
Razões sistêmicas, associadas às derrotas e recuos da esquerda mundial, reforçaram esse movimento de expansão e concentração do capital desde os anos 70, coagulado em um poder financeiro desterritorializado, graças à liberalização imposta às contas de capitais, e em grandes ‘odebrechts’ regionais e globais.
É preciso adicionar história às tensões desse momento político extremado, se não quisermos errar de novo a porta de saída.
O fato é que, ademais de configurar uma etapa superior de dominação, essas megaempresas e oligopólios atendem também às necessidades estruturais da sociedade em nosso tempo.
A formação de grandes corporações operacionais e respectivos fundos financeiros é um requisito à escala das obras e dos custos impostos pelo agigantamento dos projetos de infraestrutura, dos planos de universalização de serviços e, cada vez mais, das exigências de enfrentamento dos desequilíbrios climáticos (gigantescos planos de reciclagem energética, prevenção de desastres climáticos etc).
Essa agregação de capacidade empreendedora e financeira tem que ser feita por alguém.
Que ela ocorra por meio de processos dilapidadores ou se dê subordinada ao planejamento democrático, eis a disjuntiva crucial da luta pelo desenvolvimento no século XXI.
É em torno dela também que se dilacera a sociedade brasileira nesse momento.
Não se trata, porém, de uma quimera.
A experiência das sucessivas rupturas capitalistas desde 1929 evidencia a necessidade incontornável de um poder de coordenação capaz de colocar essas forças úteis à sociedade, de fato a seu serviço.
A delação da Odebrecht, a amplitude de suas intervenções, a expertise e a escala de suas ramificações reafirma esse desafio.
Sua capacidade empreendedora e a de outras empreiteiras –sem falar a das estruturas estatais, como a da Petrobras e BNDES— só escapa à indigência política e intelectual dos liquidacionistas da nação embarcados na Lava Jato.
Todo o desafio brasileiro hoje gira em torno de um nó górdio: quem vai destravar o passo seguinte do desenvolvimento?
A mitologia faxineira assegura que a purga atual fará emergir um mercado mais livre e saneado, capaz de equacionar os desafios do crescimento e da cidadania à margem do Estado,
Não há precedente histórico de um ciclo de prosperidade e soberania nacional dissociado dos grandes pactos que aglutinam recursos, ferramentas e estruturas dotadas de força e consentimento para deflagrar o impulso inicial e garantir sua sustentação no tempo.
O verdadeiro antídoto à captura do interesse público pelo privado nesses processos não está em negar sua necessidade ou o papel do Estado como amalgamador do conjunto.
Menos ainda em demonizar seus personagens de carne e osso. Com as virtudes e defeitos da carne e do osso.
O repto da virtude –da sociedade, de seus cidadãos e governantes-- depende da construção de instituições virtuosas.
Essas que nos faltam para, entre outras coisas, devolver ao povo brasileiro o comando do seu destino e o destino do seu desenvolvimento, capacitando-o a escrutinar suas escolhas com um salto nos mecanismos de participação e consulta popular
O pleito de 2018 só não será a antessala de uma terrível frustração se do embate político emergir uma rua assim mais organizada, capaz de protagonizar o passo seguinte do nosso desenvolvimento. E nele ocupar o espaço hoje açambarcado pela cepa das odebrechts.
Marcelo Odebrecht é um capitalista para ninguém botar defeito.
Herdeiro da empresa fundada pelo avô e expandida pelo pai, uma das maiores construtoras do país e do mundo, logo entendeu que era inexorável servir à lógica da acumulação intrínseca ao sistema do qual é senhor, ‘mas também escravo’, como já disse um alemão especializado no assunto no século XIX.
O roteiro dessa dinâmica persegue objetivos sabidos.
Otimizar os fatores pela ampliação da escala.
Explorar oportunidades convergentes.
Devorar o concorrente para não ser devorado por ele –canibalismo hoje expandido à escala global.
Elevar as taxas de retorno ao paradigma rentista que se libertou da etapa produtiva da acumulação.
E, claro, exercer a ganância na exploração da fonte fundamental da riqueza. Aquela para a qual o capitalismo nunca cessa de aperfeiçoar as formas de extrair o suor e aquilo que o acompanha: o lastro real de valor das coisas.
O impulso inexorável à expansão conduziu e foi conduzido pelo herdeiro da Odebrecht num período favorável de alta do ciclo econômico no Brasil, com gigantesca carteira de obras públicas.
A holding Odebrecht, sob sua batuta desde 2006 e, oficialmente, a partir de 2009, estendeu o alcance do núcleo original da engenharia de construção para 15 eixos de negócios, com ramificações nos EUA, Europa, Oriente, América Latina e África.
Não é uma singularidade pantagruélica dos ‘odebrechts’.
Ou uma artimanha urdida nos bastidores do ‘lulopetismo’, como gostaria a frivolidade pedestre das mirians leitões.
É a lógica compulsiva do processo sistêmico de acumulação capitalista.
O mesma que traz a Alstom ao Brasil, por exemplo, para disputar com os mesmos métodos e o mesmo arrojo, as ‘quase-licitações’ das obras do metrô de São Paulo --e vencê-las da forma sabida, ao preço agora escancarado.
Oito anos depois de assumir a frente dos negócios da família, Marcelo tinha sob seu comando 180 mil funcionários; um faturamento de R$ 130 bilhões.
A meta do empresário cuja delação escancarou a cooptação de um sistema de representação política do século XIX, pela engrenagem capitalista do século XXI, era atingir R$ 200 bilhões em 2020.
Carta Maior chama a atenção para a dinâmica estrutural por trás de um capítulo devastador da história brasileira não para edulcorar a responsabilidade das maiores forças e lideranças progressistas nesse processo ecumênico e suprapartidário.
A verdade é que dele participaram, ‘ todas as elites, todos os poderes, inclusive a imprensa, (que dele) tinham ciência(...) há 30 anos (porque tudo) acontecia sob as barbas de todos...’ .
O desabafo de Emilio Odebrecht, pai de Marcelo, diante da indignação seletiva do bravo jornalismo brasileiro à delação da família e de seus funcionários resume a hipocrisia dos escandalizados.
Não há querubins nem serafins nessa história.
Tampouco ela cumprirá integralmente seu papel no esforço do esclarecimento se ficar restrita à narrativa da demonização maniqueísta e moralista, mesmo quando expressa no idioma de esquerda.
Carta Maior registra aqui seu esforço, antigo, para escapar às armadilhas das boas intenções movediças.
Já a partir da crise do dito ‘mensalão’ Carta Maior sublinharia sistematicamente sua crítica : ‘ (...) às aberrações que a prática (do caixa 2) encerra, a saber: descarna partidos, esfarela programas, subverte a urna e aleija lideranças...’ (trecho do editorial de Carta Maior publicado em 23 de outubro de 2012)
Esse contraponto não contradizia o apoio claro a avanços sociais e econômicos inéditos e substantivos que para serem aprofundados necessitavam ser reconhecidos e defendidos com estruturas democráticas compatíveis --insistiria nossa angustiada crônica dos acontecimentos.
Ele levaria a outra ressalva diante de um equívoco de gravidade histórica superlativa.
O economicismo no poder.
Ele permeou doze anos de governos progressistas, lastreados na desastrosa suposição de que ganhos incrementais de renda das camadas populares promoveriam mecanicamente e consciência política indispensável à autodefesa popular do processo.
Foi assim que se terceirizou às gondolas dos supermercados a responsabilidade pelo salto ideológico, político e organizativo capaz de promover a mudança crucial na correlação de forças da sociedade.
A negligência mostrou-se fatal.
Quando a persistência da desordem global secou o lubrificante das receitas externas que permitiam girar a roda da riqueza sem luta social aberta, sobreveio o golpe.
Um vetor da ofensiva, porém, já corroía a solidez das conquistas há mais tempo.
Desde o mensalão, em 2006, a mídia cuidava de direcionar ao PT, e personalizar em Lula, o que era uma distorção suprapartidária intrínseca ao sistema político brasileiro.
Incansáveis pelotões da indignação seletiva escrita e falada empenhavam-se em convencer a opinião pública de que, no caso do PT, a política transformara-se em degeneração sistêmica. A corrupção metabólica entranhara-se em suas lideranças.
Nas demais siglas relevantes, o desvio –quando inevitável reconhece-lo-- seria pontual.
A delação de Marcelo Odebrecht não vem apenas desembaçar a visão de uma sociedade deliberadamente vedada, anos a fio, por um jornalismo e um judiciário vergonhosamente cúmplices desse esbulho.
Ela permite, a quem quiser, enxergar melhor o que havia por trás da fuligem.
Havia a crise de uma democracia subordinada a um sistema político integralmente cevado na captura do Estado para servir ao capital.
O dispositivo midiático conservador optou conscientemente pelo argumento de que a 'maçã podre’ era o lulopetismo: um consenso jornalístico dispensável de provas que o judiciário endossou.
Não se economizou paiol nessa fuzilaria.
Em 2012, no auge do jornalismo isento, apenas nas quatro semanas terminadas em 13 de agosto, como informou então Marcos Coimbra, da Vox Populi, 65 mil textos foram publicados na imprensa sobre o ‘mensalão’.
Todos repisavam o esbulho que circunscrevia o geral no particular.
No Jornal Nacional da Globo, no mesmo período, para cada 10 segundos de cobertura neutra houve cerca de 1,5 mil segundo negativos, batendo na mesma tecla da demonização do PT.
Nos anos mais recentes, coube ao juiz Sergio Moro lapidar a avalanche.
E corroborar a farsa rudimentarmente sagrada no patético power point de um figurante do enredo já a meio caminho do messianismo.
A pedra angular do processo, assim, permaneceu oculta.
Mesmo após Marcelo Odebrecht ter nivelado o que durante décadas se pretendeu distinguir --carecas, mineirinhos, santos, príncipes da sociologia, a cúpula do golpe, o baile todo, enfim – a sociedade continua a ser entorpecida pelas lentes da simplificação.
Essa que reduz o jogo pesado no qual se movem as forças monumentais do capitalismo a um duelo romântico entre anjos e demônios, entre ‘liberais’ e ‘aparelhistas’.
Agora que a porta foi arrombada não basta que guardiões da fé nesse dogma ofereçam algumas carcaças mortas às labaredas do inferno para dar consistência à fabula maniqueísta.
É preciso ir além de chutar cachorro morto.
Para tirar o país do socavão em que se encontra --emparedado entre o esgotamento de um ciclo de desenvolvimento e a indisponibilidade de canais democráticos para repactuar o seguinte-- será necessário institucionalizar novas práticas que sustentem um degrau superior de participação popular na ordenação do passo seguinte de nossa história.
Somente assim será possível subordinar a dinâmica que fez a Odebrecht ser o colosso que é.
E concentrar o poder que tem.
Nada muito diferente, repita-se, das dimensões e intrusões cometidas pelos executivos da Siemens, Alstom e assemelhados no metrô de São Paulo.
Ou do que fazem bancos e endinheirados nativos, parte deles flagrada em escândalos de sonegação que ungiu a plutocracia brasileira ao topo do ranking mundial de lavagens e golpes fiscais...
Se enxergasse esse horizonte a sua frente –ele não enxerga-- o meritíssimo de Curitiba perceberia que a sua lógica jurídica conduz ao mapa de Borges: aquele que se amplia a exaustão, até adquirir finalmente a escala da realidade.
A escala capitalista do século XXI é a das grandes corporações e a da voragem financeira que se expande no terreno cedido pela democracia e no recuo imposto pela agenda do Estado mínimo desde os anos 70, urbi et orbi.
Estudos do economista francês, François Morin, indicam que um núcleo formado por 28 megabancos globais funciona como uma espécie de fígado do aparelho circulatório do capital na atualidade: todo o sistema passa por eles de alguma forma.
Visto desse mirante o Estado é o anão capturado pelos paquidermes da concentração de capital e das megacorporações privadas.
Esse é o reino das Odebrechts.
Nele, a crise fiscal reflete o endividamento de um Tesouro tangido a emprestar de quem deveria taxar.
E a hipertrofia corporativa é a contraface de um Estado atrofiado em sua capacidade de ouvir a população, planejar o desenvolvimento, empreender e coordenar as respostas às demandas da sociedade.
Essa constatação não endossa a tese da corrupção como fatalidade.
Mas tampouco reconhece na agenda dos depuradores do capitalismo uma resposta à altura da encruzilhada vivida pelo país.
Dotados não raro de indisfarçável escovão ideológico, como no caso da Lava Jato, os depuradores frequentemente pavimentam um paradoxo.
Fortalecem interesses que convalidam o que se afirma combater. Ou seja, a rapinagem do interesse público pela sucção dos apetites unilaterais
O que está em jogo, portanto, é algo mais que uma ópera bufa de salvadores da pátria.
É uma tragédia que a encruzilhada do desenvolvimento brasileiro nesse momento seja escrutinada por critérios tão bisonhos, incensados por uma mídia de singular mediocridade, empenhada acima de tudo em agilizar o abate daquele que desde 2002 estorva suas preferências na savana eleitoral.
A suposição de que existe um mercado puro --como o Deus com o qual o procurador de Curitiba se comunica-- enfrenta colisões apreciáveis com a realidade do capitalismo em nosso tempo.
É isso, sobretudo isso, o que a trajetória da Odebrecht e a delação de Marcelo e Emilio escancaram.
Vivemos um tempo em que a supremacia dos oligopólios e a deriva da democracia e do desenvolvimento não são realidades antagônicas.
Antes, são complementares.
O conjunto exprime uma racionalidade impossível de se combater sem uma intervenção política que credencie o Estado e a democracia para subordinarem o mercado à finalidade social do desenvolvimento.
Esse é o drama do povo brasileiro, turvado em sua visão política pela indigência ética e intelectual de um jornalismo que deforma aquilo que a sirene da história informa.
A delação da Odebrecht evidencia o quão profunda pode ser a ingerência privada na esfera pública, quando esta jaz imobilizada por um torniquete composto de Estado fraco (‘mínimo’), sistema político apartado da vigilância cidadã, insuficiência fiscal e crispação da ganância privada, expressa na fusão entre partidos e mercado.
O conjunto culminou no caso brasileiro na excrescência de um congresso argentário, em assembleia permanente contra o povo.
Nessas condições verifica-se que são as corporações que planejam a sociedade.
Aos ingênuos, ou espertos, que embarcam o ‘gigantismo estatal’ na lista dos demônios a serem calcinados na fornalha de Curitiba, cabe esclarecer: a tragédia atual reside justamente em um ‘intervencionismo' às avessas.
Esse em que o oligopólio subordina a sociedade, suas lideranças, seus partidos, seus direito e seu projeto de futuro.
A matriz local dessa engrenagem pegou carona na Lava Jato na tentativa de retornar ao poder e terminar o serviço iniciado nos anos 90, quando a agenda neoliberal chegou ao Planalto.
A saber: comprimir ganhos reais de salário, esfacelar o pleno emprego, implodir a Carta de 1988, transformar direitos sociais em serviços pagos, revogar a legislação trabalhista de Vargas, espremer o poder de barganha sindical e, o mais importante, retomar as grandes privatizações do patrimônio público brasileiro --o Banco do Brasil, o BNDES, a Caixa Federal, a Previdência Social, o SUS e a joia da coroa deste e de todos os tempos, o pré-sal.
Aquilo que já foi feito está presente no DNA da corrupção que agora se combate para promover um upgrade nas suas causas.
Ou seja, erigir um Estado ainda mais fraco, diante de um mercado desregulado ainda mais forte, com governantes, partidos, lideranças e urnas adicionalmente reféns de seus interesses.
Não é uma jabuticaba brasileira.
Trata-se do metabolismo constitutivo do capitalismo em nosso tempo.
Razões sistêmicas, associadas às derrotas e recuos da esquerda mundial, reforçaram esse movimento de expansão e concentração do capital desde os anos 70, coagulado em um poder financeiro desterritorializado, graças à liberalização imposta às contas de capitais, e em grandes ‘odebrechts’ regionais e globais.
É preciso adicionar história às tensões desse momento político extremado, se não quisermos errar de novo a porta de saída.
O fato é que, ademais de configurar uma etapa superior de dominação, essas megaempresas e oligopólios atendem também às necessidades estruturais da sociedade em nosso tempo.
A formação de grandes corporações operacionais e respectivos fundos financeiros é um requisito à escala das obras e dos custos impostos pelo agigantamento dos projetos de infraestrutura, dos planos de universalização de serviços e, cada vez mais, das exigências de enfrentamento dos desequilíbrios climáticos (gigantescos planos de reciclagem energética, prevenção de desastres climáticos etc).
Essa agregação de capacidade empreendedora e financeira tem que ser feita por alguém.
Que ela ocorra por meio de processos dilapidadores ou se dê subordinada ao planejamento democrático, eis a disjuntiva crucial da luta pelo desenvolvimento no século XXI.
É em torno dela também que se dilacera a sociedade brasileira nesse momento.
Não se trata, porém, de uma quimera.
A experiência das sucessivas rupturas capitalistas desde 1929 evidencia a necessidade incontornável de um poder de coordenação capaz de colocar essas forças úteis à sociedade, de fato a seu serviço.
A delação da Odebrecht, a amplitude de suas intervenções, a expertise e a escala de suas ramificações reafirma esse desafio.
Sua capacidade empreendedora e a de outras empreiteiras –sem falar a das estruturas estatais, como a da Petrobras e BNDES— só escapa à indigência política e intelectual dos liquidacionistas da nação embarcados na Lava Jato.
Todo o desafio brasileiro hoje gira em torno de um nó górdio: quem vai destravar o passo seguinte do desenvolvimento?
A mitologia faxineira assegura que a purga atual fará emergir um mercado mais livre e saneado, capaz de equacionar os desafios do crescimento e da cidadania à margem do Estado,
Não há precedente histórico de um ciclo de prosperidade e soberania nacional dissociado dos grandes pactos que aglutinam recursos, ferramentas e estruturas dotadas de força e consentimento para deflagrar o impulso inicial e garantir sua sustentação no tempo.
O verdadeiro antídoto à captura do interesse público pelo privado nesses processos não está em negar sua necessidade ou o papel do Estado como amalgamador do conjunto.
Menos ainda em demonizar seus personagens de carne e osso. Com as virtudes e defeitos da carne e do osso.
O repto da virtude –da sociedade, de seus cidadãos e governantes-- depende da construção de instituições virtuosas.
Essas que nos faltam para, entre outras coisas, devolver ao povo brasileiro o comando do seu destino e o destino do seu desenvolvimento, capacitando-o a escrutinar suas escolhas com um salto nos mecanismos de participação e consulta popular
O pleito de 2018 só não será a antessala de uma terrível frustração se do embate político emergir uma rua assim mais organizada, capaz de protagonizar o passo seguinte do nosso desenvolvimento. E nele ocupar o espaço hoje açambarcado pela cepa das odebrechts.
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