Por Sergio Lirio, na revista CartaCapital:
O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, corre o risco de se tornar o São Sebastião do Ministério Público, aquele soldado romano que preferiu a morte a flechadas a renegar sua fé cristã.
Janot prometia lançar inúmeras flechas contra Michel Temer, mas, às vésperas de ser substituído no cargo pela colega Raquel Dodge, as setas parecem ter mudado de rumo e virado em sua direção. O fato de ter aderido à cruzada que transformou agentes públicos em inquisidores, em meros executores dos autos-da-fé, o colocaram nesta situação.
O procurador tentou se antecipar ao pior. Na segunda-feira 4, em pronunciamento público, classificou de “fatos gravíssimos” as suspeitas em relação à lisura dos acordos de delação dos executivos da JBS, a começar pela acusação de interferência indevida nas negociações de um ex-integrante da PGR, Marcelo Miller.
Miller integrava a força-tarefa da Lava Jato em Brasília. Em abril deste ano, demitiu-se do Ministério Público para trabalhar no escritório Trench Rossi Watanabe, contratado para atuar no acordo de leniência da J&F, holding controladora da JBS. Antes de deixar o cargo público, teria, no entanto, orientado o empresário Joesley Batista a coletar as provas contra Temer. Desde então, tornou-se o calcanhar-de-aquiles da PGR e enfraqueceu os efeitos das denúncias contra o peemedebista.
Janot mandou ainda apurar supostas omissões dos delatores e ameaçou anular os benefícios concedidos nos acordos de colaboração, incluído o direito à liberdade. Para uma parte da opinião pública, o acordo foi demasiadamente vantajoso para o empresário.
A demonstração de irritação e coragem de Janot é uma tentativa de limpar o currículo. O procurador-geral sabe que os dois assuntos não escapariam da lupa da sucessora, que assume o comando do Ministério Público em 17 de setembro. Melhor tratar dos temas agora, como se fosse sua a iniciativa, do que ser obrigado a responder pelos erros quando estiver fora da chefia da corporação.
Um eventual cancelamento do acordo, fez questão de frisar o procurador, não anularia as provas colhidas. A frase é tão somente a expressão de um desejo recôndito. Caso se comprove a ilegalidade da atuação de Miller no episódio, haveria motivo suficiente para anular a delação do empresário e dos executivos da JBS. Neste caso, Temer inevitavelmente se safaria das acusações, embora não restem dúvidas de sua participação no esquema de corrupção.
Nada de novo. Por irregularidades muito menos relevantes, às vezes por suspeitas de ilegalidades nunca comprovadas, as operações Castelo de Areia e Satiagraha acabaram anuladas por tribunais superiores. A Justiça, aliás, acaba de determinar a incineração das provas colhidas durante a Castelo de Areia, o que impossibilitará de forma definitiva qualquer esclarecimento sobre o esquema de corrupção que envolveu empreiteiras e políticos tucanos (os “inimputáveis”), demistas e peemedebistas.
Ao contrário de Sergio Moro e dos procuradores da Lava Jato, os investigadores da Castelo de Areia e da Satiagraha foram tratados à época não como heróis, mas como vilões. O delegado Protógenes Queiróz, responsável pela Satiagraha, perderia o emprego na Polícia Federal e se refugiaria na Suíça para escapar de uma condenação à prisão. O juiz Fausto De Sanctis, que atuou nos dois processos, seria impelido a aceitar uma promoção à segunda instância.
Quem atuou pelo engavetamento dessas investigações (vários deles coincidentemente se irmanaram nas recentes críticas a Janot), dizia defender os direitos individuais contra os abusos do Estado “policial”. Os abusos, tudo indica, só incomodam esporadicamente, a depender de quem os sofre.
O problema da súbita indignação é que a delação da JBS não se configura um ato isolado, um ponto fora da curva na Lava Jato. A operação, de maneira geral e desde o início, ancorou-se em ilegalidades: prisões preventivas para forçar delações, exigências para que as declarações se encaixassem nas teses do Ministério Público, vazamentos ilegais, condenações baseadas apenas nas acusações de delatores etc. A lista é extensa.
As medidas de exceção, para usar uma expressão do professor de Direito Pedro Serrano, da PUC de São Paulo, que se tornaram praxe foram toleradas e até incentivadas enquanto serviram para desestabilizar o governo Dilma Rousseff, levar à cadeia dirigentes do PT e colocar Lula no banco dos réus.
O próprio Janot sabe que o establishment tem lado. Após virar alvo de críticas da mídia e de aliados do governo, o procurador-geral apresentou nesta terça 5 uma denúncia contra Lula, Dilma e outras lideranças petistas acusadas de participar de uma organização criminosa de desvios na Petrobras.
Com este roteiro bem encaminhado e diante da possibilidade de as punições se estenderem a políticos do PSDB, PMDB e DEM, o establishment jurídico e econômico voltou a se interessar pela defesa do Estado de Direito. Porta-voz desse arranjo, o ministro Gilmar Mendes, legalista de ocasião, apressou-se em dar o tom da reação. “O procurador-geral da República”, espinafrou na manhã da terça-feira 5, “mais uma vez deu curso a sua estratégia de delinquente e fez uma chantagem com o Supremo Tribunal Federal”. Nas gravações de Batista aparecem citações a ministros do STF.
Em entrevista recente, o filósofo José Arthur Gianotti, amigo de Fernando Henrique Cardoso e ex-ideólogo do PSDB, talvez não intencionalmente, expôs a naturalidade dessa estratégia. Ou melhor, de uma certa visão de mundo. “A operação Mãos Limpas, na Itália, não deu certo porque os parlamentares se uniram e liquidaram o movimento”, declarou Gianotti. “No Brasil, eles conheciam o caso italiano e têm sido mais inteligentes. Em vez de metralhar todo o sistema político, metralharam quem estava no governo ou próximo dele”.
A repentina reação às supostas ilegalidades na delação da JBS, em contraposição ao silêncio cínico em relação às rotineiras irregularidades da Lava Jato, é só outra prova, a enésima, da seletividade do “combate à corrupção”. Quem ainda se ilude?
Janot prometia lançar inúmeras flechas contra Michel Temer, mas, às vésperas de ser substituído no cargo pela colega Raquel Dodge, as setas parecem ter mudado de rumo e virado em sua direção. O fato de ter aderido à cruzada que transformou agentes públicos em inquisidores, em meros executores dos autos-da-fé, o colocaram nesta situação.
O procurador tentou se antecipar ao pior. Na segunda-feira 4, em pronunciamento público, classificou de “fatos gravíssimos” as suspeitas em relação à lisura dos acordos de delação dos executivos da JBS, a começar pela acusação de interferência indevida nas negociações de um ex-integrante da PGR, Marcelo Miller.
Miller integrava a força-tarefa da Lava Jato em Brasília. Em abril deste ano, demitiu-se do Ministério Público para trabalhar no escritório Trench Rossi Watanabe, contratado para atuar no acordo de leniência da J&F, holding controladora da JBS. Antes de deixar o cargo público, teria, no entanto, orientado o empresário Joesley Batista a coletar as provas contra Temer. Desde então, tornou-se o calcanhar-de-aquiles da PGR e enfraqueceu os efeitos das denúncias contra o peemedebista.
Janot mandou ainda apurar supostas omissões dos delatores e ameaçou anular os benefícios concedidos nos acordos de colaboração, incluído o direito à liberdade. Para uma parte da opinião pública, o acordo foi demasiadamente vantajoso para o empresário.
A demonstração de irritação e coragem de Janot é uma tentativa de limpar o currículo. O procurador-geral sabe que os dois assuntos não escapariam da lupa da sucessora, que assume o comando do Ministério Público em 17 de setembro. Melhor tratar dos temas agora, como se fosse sua a iniciativa, do que ser obrigado a responder pelos erros quando estiver fora da chefia da corporação.
Um eventual cancelamento do acordo, fez questão de frisar o procurador, não anularia as provas colhidas. A frase é tão somente a expressão de um desejo recôndito. Caso se comprove a ilegalidade da atuação de Miller no episódio, haveria motivo suficiente para anular a delação do empresário e dos executivos da JBS. Neste caso, Temer inevitavelmente se safaria das acusações, embora não restem dúvidas de sua participação no esquema de corrupção.
Nada de novo. Por irregularidades muito menos relevantes, às vezes por suspeitas de ilegalidades nunca comprovadas, as operações Castelo de Areia e Satiagraha acabaram anuladas por tribunais superiores. A Justiça, aliás, acaba de determinar a incineração das provas colhidas durante a Castelo de Areia, o que impossibilitará de forma definitiva qualquer esclarecimento sobre o esquema de corrupção que envolveu empreiteiras e políticos tucanos (os “inimputáveis”), demistas e peemedebistas.
Ao contrário de Sergio Moro e dos procuradores da Lava Jato, os investigadores da Castelo de Areia e da Satiagraha foram tratados à época não como heróis, mas como vilões. O delegado Protógenes Queiróz, responsável pela Satiagraha, perderia o emprego na Polícia Federal e se refugiaria na Suíça para escapar de uma condenação à prisão. O juiz Fausto De Sanctis, que atuou nos dois processos, seria impelido a aceitar uma promoção à segunda instância.
Quem atuou pelo engavetamento dessas investigações (vários deles coincidentemente se irmanaram nas recentes críticas a Janot), dizia defender os direitos individuais contra os abusos do Estado “policial”. Os abusos, tudo indica, só incomodam esporadicamente, a depender de quem os sofre.
O problema da súbita indignação é que a delação da JBS não se configura um ato isolado, um ponto fora da curva na Lava Jato. A operação, de maneira geral e desde o início, ancorou-se em ilegalidades: prisões preventivas para forçar delações, exigências para que as declarações se encaixassem nas teses do Ministério Público, vazamentos ilegais, condenações baseadas apenas nas acusações de delatores etc. A lista é extensa.
As medidas de exceção, para usar uma expressão do professor de Direito Pedro Serrano, da PUC de São Paulo, que se tornaram praxe foram toleradas e até incentivadas enquanto serviram para desestabilizar o governo Dilma Rousseff, levar à cadeia dirigentes do PT e colocar Lula no banco dos réus.
O próprio Janot sabe que o establishment tem lado. Após virar alvo de críticas da mídia e de aliados do governo, o procurador-geral apresentou nesta terça 5 uma denúncia contra Lula, Dilma e outras lideranças petistas acusadas de participar de uma organização criminosa de desvios na Petrobras.
Com este roteiro bem encaminhado e diante da possibilidade de as punições se estenderem a políticos do PSDB, PMDB e DEM, o establishment jurídico e econômico voltou a se interessar pela defesa do Estado de Direito. Porta-voz desse arranjo, o ministro Gilmar Mendes, legalista de ocasião, apressou-se em dar o tom da reação. “O procurador-geral da República”, espinafrou na manhã da terça-feira 5, “mais uma vez deu curso a sua estratégia de delinquente e fez uma chantagem com o Supremo Tribunal Federal”. Nas gravações de Batista aparecem citações a ministros do STF.
Em entrevista recente, o filósofo José Arthur Gianotti, amigo de Fernando Henrique Cardoso e ex-ideólogo do PSDB, talvez não intencionalmente, expôs a naturalidade dessa estratégia. Ou melhor, de uma certa visão de mundo. “A operação Mãos Limpas, na Itália, não deu certo porque os parlamentares se uniram e liquidaram o movimento”, declarou Gianotti. “No Brasil, eles conheciam o caso italiano e têm sido mais inteligentes. Em vez de metralhar todo o sistema político, metralharam quem estava no governo ou próximo dele”.
A repentina reação às supostas ilegalidades na delação da JBS, em contraposição ao silêncio cínico em relação às rotineiras irregularidades da Lava Jato, é só outra prova, a enésima, da seletividade do “combate à corrupção”. Quem ainda se ilude?
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