Por Reginaldo Moraes, no site Carta Maior:
Há uma estória antiga, dizendo que quando a gente está com medo fica assobiando no escuro. Uma reação infantil, claro, mas acalma. Por vezes, botar no papel as ideias tem esse efeito. E pode ser que sirva também para os outros. Então, aí vai mais um assobio no escuro.
Tenho amigos que faz algum tempo passaram a reduzir a importância do que chamam de “a politica” ou da “política institucional”. Nesse rótulo o que se incluía, principalmente, eram os partidos e as eleições.
Compreensível. Por outro lado, começaram a enfatizar a importância de movimentos políticos “setoriais”, temáticos ou identitários, nichos de afirmação, etc. Compreensível. Esses espaços lhes pareciam imunes às perversões e compromissos da tal “política institucional”. Eles se multiplicaram e trouxeram temas novos e vida nova à esquerda. O que também é verdade.
Por conta dessa proliferação de movimentos pontuais, sem vínculos partidários e muitos, até, avessos aos partidos, alguns amigos comentavam, esperançosos, que as pessoas se distanciavam da “política institucional”, principalmente das eleições e partidos e que isso poderia significar um avanço e não um recuo, um avanço de politização, não o contrário. Compreensível, tem uma certa verdade, não?
Sim, tudo isso tem elementos de verdade. Contudo, para acrescentar uma dose de ceticismo preventivo, diria que o distanciamento do mundo torpe das eleições e dos partidos não foi proporcionalmente acompanhado ou compensado, de fato, por um aumento da política não institucional, daquela frequentemente identificada com associação horizontal, ação direta, democracia participativa ou coisas assim. Apenas com muito boa vontade alguém afirmaria isso, mesmo diante da proliferação desses movimentos e nichos. Não me parece correto afirmar que o descrédito da “política”, velha política, ou, resumindo, eleições, tenha sido compensada por um fervilhar equivalente de movimentos extrainstitucionais, manifestações não-eleitorais e não partidárias de participação política.
Com boa vontade, tendemos a incluir numa genérica “esquerda” tudo isso: não apenas os tradicionais partidos, sindicatos, movimentos políticos, mas, também, os movimentos sociais e setoriais (ecologistas, de gênero, de orientação sexual, etc). Isto me parece adequado. Essa soma toda seria o movimento de contestação, de contraposição aos famosos “1% de cima. Alguns de nós dizem algo parecido com isso: “somos os 99%”, foi até um lema de movimentos como o Occupy Wall Street. Servia para destacar a representação da maioria frente à minoria privilegiada. Erro tremendo. Primeiro, porque a minoria mandante não é nem poderia ser dos 1%. É feita de pelo menos 20% dos adultos e vacinados - dos grandes oligarcas, claro, mas também de seus acessórios funcionais, seus mordomos espalhados pelo aparato político, pela administração da vida cotidiana e pelos aparatos de hegemonia ideológica, como a mídia, a igreja e assim por diante. Segundo, porque nós, a esquerda, não chegamos nem mesmo aos 1%. Nós não somos, de fato, os 99%. Pouquíssima gente está “entre nós”, se por isso entendemos gente que, para nivelar por baixo, tem pelo menos duas ou três atividades políticas durante o ano (mobilização, passeata, o que seja). Nem de longe. Lembro de uma frase do Fidel a seus companheiros, quando estavam em Sierra Maestra, iniciando a caminhada: “se nós fossemos apenas quantos somos, seria melhor desistir; mas atrás de nós estão milhares e milhões de explorados e oprimidos”. Verdade e pode ser estimulante, mas não deve embriagar a fria reflexão.
O fenômeno central dos últimos tempos não foi o avanço da direita no terreno institucional - partidos, eleições. O eleitorado da direita, por exemplo, é fiel mas relativamente o mesmo, cresce um pouco ali, diminui acolá, mas flutua em torno do mesmo nível. O que talvez tenha crescido mais do que a média foi a disseminação da apatia, da indiferença, da desmobilização, do “tanto faz!”. Isso foi a troca relevante, mais do que vitórias da direita em eleições, por exemplo. Com esse movimento lento e quase imperceptível, tão homeopático que quase não percebemos, enraizou-se a hegemonia das ideias, valores e comportamentos conservadores.
Agora e aqui, com os últimos movimentos, essa hegemonia deu um passo mais. De certo modo, pode ter dado um salto de qualidade e veio à luz, explodiu na nossa cara – daí muita gente se espante com seu vigor, sua ousadia. A direita (e até a ultradireita) traduz agora na “política institucional” o avanço que obtivera no terreno da hegemonia social, comportamental, ideológica. A oligarquia aboliu o que restava de espaço institucional, cancelando ou tornando inócuas as disputas eleitorais, as brechas que tinham sido abertas desde as “diretas-já” dos anos 80. E essa onda não tem hora para acabar. Não vai parar na porta das politicas setoriais, identitárias, dos nichos aparentemente “apolíticos” das “políticas não institucionais”. A onda vai passar por cima e reprimir sem dó todos esses segmentos e movimentos horizontais que supostamente ficam à margem da política. Não nos iludamos, os fascismos não preservam nada que tenha cheiro de democracia, progressismo. Nem cheiro.
Para os mais velhos, melhor avivar a memória, Para os mais jovens vale a pena lembrar o que já leram nos livros: a ditadura resultante do movimento de 64 não mudou apenas os governantes. Não liquidou Jango apenas. Rapidamente “limpou” sindicatos, grêmios estudantis, o que houvesse pela frente. Fechamento, prisão, exílio, cabeça baixa. Ano e meio depois do golpe, cancelou as eleições, sem mais. E foi implantando, pouco a pouco, um medo que não se reconhecia como tal, um medo que sequer reconhecia que era medo, um medo que se tornava a aceitação de uma nova “normalidade”. Era essa a normalidade que eu vivia (tanto quanto lembro) quando comecei a participar do movimento secundarista, ali por 1966. E que se alongou por muitos anos.
No primeiro momento, o novo regime garantiu a propriedade. Depois, a tradição e a família, abafando e tornando perversões as ideias e comportamentos dissidentes. É assim que se firma a “nova realidade”, se “normaliza” o golpe.
Estamos diante dessa possibilidade. Não de uma mudança de governo. Já repetimos isso dezenas de vezes. Estamos diante de uma mudança de regime. E, agora se torna mais visível outra coisa: trata-se também de uma mudança de padrão na vida cotidiana. A instauração de um medo genérico e uma censura prévia no pensamento. Está aberto o caminho do medo e da “normalidade” ultraconservadora. Vai vingar? Depende de muita coisa, principalmente da percepção e da reação das vítimas.
Há uma estória antiga, dizendo que quando a gente está com medo fica assobiando no escuro. Uma reação infantil, claro, mas acalma. Por vezes, botar no papel as ideias tem esse efeito. E pode ser que sirva também para os outros. Então, aí vai mais um assobio no escuro.
Tenho amigos que faz algum tempo passaram a reduzir a importância do que chamam de “a politica” ou da “política institucional”. Nesse rótulo o que se incluía, principalmente, eram os partidos e as eleições.
Compreensível. Por outro lado, começaram a enfatizar a importância de movimentos políticos “setoriais”, temáticos ou identitários, nichos de afirmação, etc. Compreensível. Esses espaços lhes pareciam imunes às perversões e compromissos da tal “política institucional”. Eles se multiplicaram e trouxeram temas novos e vida nova à esquerda. O que também é verdade.
Por conta dessa proliferação de movimentos pontuais, sem vínculos partidários e muitos, até, avessos aos partidos, alguns amigos comentavam, esperançosos, que as pessoas se distanciavam da “política institucional”, principalmente das eleições e partidos e que isso poderia significar um avanço e não um recuo, um avanço de politização, não o contrário. Compreensível, tem uma certa verdade, não?
Sim, tudo isso tem elementos de verdade. Contudo, para acrescentar uma dose de ceticismo preventivo, diria que o distanciamento do mundo torpe das eleições e dos partidos não foi proporcionalmente acompanhado ou compensado, de fato, por um aumento da política não institucional, daquela frequentemente identificada com associação horizontal, ação direta, democracia participativa ou coisas assim. Apenas com muito boa vontade alguém afirmaria isso, mesmo diante da proliferação desses movimentos e nichos. Não me parece correto afirmar que o descrédito da “política”, velha política, ou, resumindo, eleições, tenha sido compensada por um fervilhar equivalente de movimentos extrainstitucionais, manifestações não-eleitorais e não partidárias de participação política.
Com boa vontade, tendemos a incluir numa genérica “esquerda” tudo isso: não apenas os tradicionais partidos, sindicatos, movimentos políticos, mas, também, os movimentos sociais e setoriais (ecologistas, de gênero, de orientação sexual, etc). Isto me parece adequado. Essa soma toda seria o movimento de contestação, de contraposição aos famosos “1% de cima. Alguns de nós dizem algo parecido com isso: “somos os 99%”, foi até um lema de movimentos como o Occupy Wall Street. Servia para destacar a representação da maioria frente à minoria privilegiada. Erro tremendo. Primeiro, porque a minoria mandante não é nem poderia ser dos 1%. É feita de pelo menos 20% dos adultos e vacinados - dos grandes oligarcas, claro, mas também de seus acessórios funcionais, seus mordomos espalhados pelo aparato político, pela administração da vida cotidiana e pelos aparatos de hegemonia ideológica, como a mídia, a igreja e assim por diante. Segundo, porque nós, a esquerda, não chegamos nem mesmo aos 1%. Nós não somos, de fato, os 99%. Pouquíssima gente está “entre nós”, se por isso entendemos gente que, para nivelar por baixo, tem pelo menos duas ou três atividades políticas durante o ano (mobilização, passeata, o que seja). Nem de longe. Lembro de uma frase do Fidel a seus companheiros, quando estavam em Sierra Maestra, iniciando a caminhada: “se nós fossemos apenas quantos somos, seria melhor desistir; mas atrás de nós estão milhares e milhões de explorados e oprimidos”. Verdade e pode ser estimulante, mas não deve embriagar a fria reflexão.
O fenômeno central dos últimos tempos não foi o avanço da direita no terreno institucional - partidos, eleições. O eleitorado da direita, por exemplo, é fiel mas relativamente o mesmo, cresce um pouco ali, diminui acolá, mas flutua em torno do mesmo nível. O que talvez tenha crescido mais do que a média foi a disseminação da apatia, da indiferença, da desmobilização, do “tanto faz!”. Isso foi a troca relevante, mais do que vitórias da direita em eleições, por exemplo. Com esse movimento lento e quase imperceptível, tão homeopático que quase não percebemos, enraizou-se a hegemonia das ideias, valores e comportamentos conservadores.
Agora e aqui, com os últimos movimentos, essa hegemonia deu um passo mais. De certo modo, pode ter dado um salto de qualidade e veio à luz, explodiu na nossa cara – daí muita gente se espante com seu vigor, sua ousadia. A direita (e até a ultradireita) traduz agora na “política institucional” o avanço que obtivera no terreno da hegemonia social, comportamental, ideológica. A oligarquia aboliu o que restava de espaço institucional, cancelando ou tornando inócuas as disputas eleitorais, as brechas que tinham sido abertas desde as “diretas-já” dos anos 80. E essa onda não tem hora para acabar. Não vai parar na porta das politicas setoriais, identitárias, dos nichos aparentemente “apolíticos” das “políticas não institucionais”. A onda vai passar por cima e reprimir sem dó todos esses segmentos e movimentos horizontais que supostamente ficam à margem da política. Não nos iludamos, os fascismos não preservam nada que tenha cheiro de democracia, progressismo. Nem cheiro.
Para os mais velhos, melhor avivar a memória, Para os mais jovens vale a pena lembrar o que já leram nos livros: a ditadura resultante do movimento de 64 não mudou apenas os governantes. Não liquidou Jango apenas. Rapidamente “limpou” sindicatos, grêmios estudantis, o que houvesse pela frente. Fechamento, prisão, exílio, cabeça baixa. Ano e meio depois do golpe, cancelou as eleições, sem mais. E foi implantando, pouco a pouco, um medo que não se reconhecia como tal, um medo que sequer reconhecia que era medo, um medo que se tornava a aceitação de uma nova “normalidade”. Era essa a normalidade que eu vivia (tanto quanto lembro) quando comecei a participar do movimento secundarista, ali por 1966. E que se alongou por muitos anos.
No primeiro momento, o novo regime garantiu a propriedade. Depois, a tradição e a família, abafando e tornando perversões as ideias e comportamentos dissidentes. É assim que se firma a “nova realidade”, se “normaliza” o golpe.
Estamos diante dessa possibilidade. Não de uma mudança de governo. Já repetimos isso dezenas de vezes. Estamos diante de uma mudança de regime. E, agora se torna mais visível outra coisa: trata-se também de uma mudança de padrão na vida cotidiana. A instauração de um medo genérico e uma censura prévia no pensamento. Está aberto o caminho do medo e da “normalidade” ultraconservadora. Vai vingar? Depende de muita coisa, principalmente da percepção e da reação das vítimas.
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