Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
A sentença que libertou José Dirceu - provisoriamente - de uma condenação da Lava Jato pertence à uma família particular das grandes decisões humanas, em particular de homens de Estado.
Não se baseia em nenhuma novidade real, nenhuma mudança espetacular, mas apenas na disposição de autoridades responsáveis em recusar uma postura omissa e cumprir seu dever com o país e sua época.
O voto de Dias Toffoly, apoiado por Gilmar Mendes e Ricardo Lewandovski, teve como norte a necessidade de afirmar a "presunção da inocência", princípio básico do Estado Democrático de Direito e tão antigo como a Revolução Francesa.
Este valor é mencionado diversas vezes na decisão de Toffoly, ocupa um espaço nobre no artigo 5 da Constituição e resume a função da Justiça em qualquer país.
Consiste no esforço para defender os direitos do indivíduo contra o risco permanente de arbítrio do Estado -- ameaça que séculos atrás tinha origem no absolutismo, mais tarde passou a instrumentalizar ditaduras de todo tipo e nos tempos de hoje modernos é um instrumento cirúrgico para a sabotagem o sacrifício da soberania popular.
Por trás da presunção da inocência, encontra-se um raciocínio simples, reconhecido e lógico.
Enquanto não forem dissipadas todas as dúvidas sobre a culpa de uma pessoa, ela não pode ser privada da própria liberdade, este valor da existência que, nas sociedades contemporâneas, só não é mais essencial do que o próprio direito à vida.
Os ministros não disseram, ontem, que Dirceu é inocente das acusações usadas para montar uma condenação de 30 anos e nove meses.
Apenas consideraram que "é plausível" imaginar que as acusações podem vir a ser retiradas pelo exame isento de recursos em tribunais superiores. Dirceu recuperou a liberdade por essa razão.
Em vez de reafirmar o poder de condenar e punir, típico das masmorras e truculências de todas as épocas, Toffoly, Gilmar Mendes e Lewandovski deixaram claro que seria injusto, neste caso, autorizar a supressão de anos de liberdade na existência de um cidadão, ainda mais quando se trata de pessoa que já passou dos 70 anos -- diferenciação que também é reconhecida em lei.
Os três ministros aplicaram um dos princípios caros e sempre atuais do iluminismo, segundo o qual a um culpado livre é preferível a um inocente preso.
A decisão de ontem não envolve, a rigor, nenhuma erudição especialmente profunda sobre o Direito brasileiro ou sobre técnica jurídica. É, acima de tudo, uma demonstração de humildade, esse traço de caráter -- que pode ser natural, ou adquirido -- que leva uma pessoa a conhecer seu lugar na sociedade e seu papel na história, sem procurar se rebaixar, nem tentar se elevar além da conta, contentando-se em cumprir, lealmente, com honestidade, aquilo que, no caso específico, é dever de todo juiz -- seguir a Constituição.
A decisão favorável a Dirceu irá marcar, na história do Supremo de nossa época, como uma derrota da banalização do mal, traço típico de ditaduras contemporâneas, analisado em profundidade pela filósofa Hanna Arendt (1906-1975) para definir o comportamento de Adolf Eichmann, o carrasco nazista que tinha um traço característico. Um dos principais responsáveis pelo envio de milhões de judeus para a morte em câmaras de gás, durante o julgamento em Jerusalém no qual seria condenado a morte Eichmann sempre insistiu que não agia por maldade nem em função de preconceito. Dizia que nada tinha de pessoal contra judeus e até relatou que possuía amigos nesta comunidade.
Apoiada neste traço aparentemente banal, e sem isentar Eichmann de suas responsabilidades pessoais, Arendt demonstra que o totalitarismo é um sistema que constrói uma cultura particular para garantir sua sobrevivência e consolidação na vida cotidiana. Instalados em postos de responsabilidade no Estado, onde são chamados a tomar decisões relevantes para toda a sociedade, homens e mulheres são estimulados a ignorar os valores da própria sociedade e mesmo suas convicções, a fechar os olhos para o sofrimento e a injustiça que seus atos podem provocar na existência seres humanos com os quais partilham uma identidade de origem e espécie.
Movidos por uma espécie de conformismo maligno, são capazes de lavar as mãos diante de grandes atrocidades, procurando convencer-se de que não possuem nenhuma responsabilidade pelos desastres e tragédias que ocorrem diante de seus olhos, muitas vezes com sua assinatura.
Não há dúvida de que este conformismo maligno, estimulado por um tratamento de circo glorificador oferecido pela mídia do pensamento único, é um dos traços marcantes do país da Lava Jato, operação na qual a força punitiva do Estado é mobilizada como instrumento para se obter resultados políticos declarados. Levado ao STF com apoio explicito do MST e ministros do governo Dilma, o comportamento de Edson Fachin está longe de ser único pela trajetória. Mas sem dúvida é um dos mais típicos.
Ontem, o relator da Lava Jato pediu a manutenção de Dirceu na prisão e, quando sua derrota ficou clara, tentou interromper o julgamento com um pedido de vistas cujo único efeito real seria prolongar a prisão que o plenário da Segunda Turma considerava injusta. A manobra não teve efeito mas confirmou uma marca fácil de reconhecer. Num período em que as críticas a operação ganham volume e consistência, dentro e fora do país, a Lava Jato sobrevive através de truques -- a palavra é essa -- e lances de esperteza para evitar um debate aberto de mérito.
Sujeito oculto e necessário do debate, o destino de Luiz Inácio Lula da Silva continua entregue ao mesmo sistema, a partir de uma condenação em sentença que é contrariada por todas as provas documentais.
As contribuições de Fachin para manter Lula na prisão são conhecidas e não precisam ser lembradas aqui. O mesmo se pode dizer da presidente do STF Carmen Lúcia, que até hoje se nega a colocar em debate as ações diretas de constitucionalidade que permitiriam um debate isento, despersonalizado, sobre o transito em julgado e a presunção da inocência.
A decisão de ontem mostra que a banalidade do mal é uma força real na Justiça brasileira -- mas pode e deve ser enfrentada.
A sentença que libertou José Dirceu - provisoriamente - de uma condenação da Lava Jato pertence à uma família particular das grandes decisões humanas, em particular de homens de Estado.
Não se baseia em nenhuma novidade real, nenhuma mudança espetacular, mas apenas na disposição de autoridades responsáveis em recusar uma postura omissa e cumprir seu dever com o país e sua época.
O voto de Dias Toffoly, apoiado por Gilmar Mendes e Ricardo Lewandovski, teve como norte a necessidade de afirmar a "presunção da inocência", princípio básico do Estado Democrático de Direito e tão antigo como a Revolução Francesa.
Este valor é mencionado diversas vezes na decisão de Toffoly, ocupa um espaço nobre no artigo 5 da Constituição e resume a função da Justiça em qualquer país.
Consiste no esforço para defender os direitos do indivíduo contra o risco permanente de arbítrio do Estado -- ameaça que séculos atrás tinha origem no absolutismo, mais tarde passou a instrumentalizar ditaduras de todo tipo e nos tempos de hoje modernos é um instrumento cirúrgico para a sabotagem o sacrifício da soberania popular.
Por trás da presunção da inocência, encontra-se um raciocínio simples, reconhecido e lógico.
Enquanto não forem dissipadas todas as dúvidas sobre a culpa de uma pessoa, ela não pode ser privada da própria liberdade, este valor da existência que, nas sociedades contemporâneas, só não é mais essencial do que o próprio direito à vida.
Os ministros não disseram, ontem, que Dirceu é inocente das acusações usadas para montar uma condenação de 30 anos e nove meses.
Apenas consideraram que "é plausível" imaginar que as acusações podem vir a ser retiradas pelo exame isento de recursos em tribunais superiores. Dirceu recuperou a liberdade por essa razão.
Em vez de reafirmar o poder de condenar e punir, típico das masmorras e truculências de todas as épocas, Toffoly, Gilmar Mendes e Lewandovski deixaram claro que seria injusto, neste caso, autorizar a supressão de anos de liberdade na existência de um cidadão, ainda mais quando se trata de pessoa que já passou dos 70 anos -- diferenciação que também é reconhecida em lei.
Os três ministros aplicaram um dos princípios caros e sempre atuais do iluminismo, segundo o qual a um culpado livre é preferível a um inocente preso.
A decisão de ontem não envolve, a rigor, nenhuma erudição especialmente profunda sobre o Direito brasileiro ou sobre técnica jurídica. É, acima de tudo, uma demonstração de humildade, esse traço de caráter -- que pode ser natural, ou adquirido -- que leva uma pessoa a conhecer seu lugar na sociedade e seu papel na história, sem procurar se rebaixar, nem tentar se elevar além da conta, contentando-se em cumprir, lealmente, com honestidade, aquilo que, no caso específico, é dever de todo juiz -- seguir a Constituição.
A decisão favorável a Dirceu irá marcar, na história do Supremo de nossa época, como uma derrota da banalização do mal, traço típico de ditaduras contemporâneas, analisado em profundidade pela filósofa Hanna Arendt (1906-1975) para definir o comportamento de Adolf Eichmann, o carrasco nazista que tinha um traço característico. Um dos principais responsáveis pelo envio de milhões de judeus para a morte em câmaras de gás, durante o julgamento em Jerusalém no qual seria condenado a morte Eichmann sempre insistiu que não agia por maldade nem em função de preconceito. Dizia que nada tinha de pessoal contra judeus e até relatou que possuía amigos nesta comunidade.
Apoiada neste traço aparentemente banal, e sem isentar Eichmann de suas responsabilidades pessoais, Arendt demonstra que o totalitarismo é um sistema que constrói uma cultura particular para garantir sua sobrevivência e consolidação na vida cotidiana. Instalados em postos de responsabilidade no Estado, onde são chamados a tomar decisões relevantes para toda a sociedade, homens e mulheres são estimulados a ignorar os valores da própria sociedade e mesmo suas convicções, a fechar os olhos para o sofrimento e a injustiça que seus atos podem provocar na existência seres humanos com os quais partilham uma identidade de origem e espécie.
Movidos por uma espécie de conformismo maligno, são capazes de lavar as mãos diante de grandes atrocidades, procurando convencer-se de que não possuem nenhuma responsabilidade pelos desastres e tragédias que ocorrem diante de seus olhos, muitas vezes com sua assinatura.
Não há dúvida de que este conformismo maligno, estimulado por um tratamento de circo glorificador oferecido pela mídia do pensamento único, é um dos traços marcantes do país da Lava Jato, operação na qual a força punitiva do Estado é mobilizada como instrumento para se obter resultados políticos declarados. Levado ao STF com apoio explicito do MST e ministros do governo Dilma, o comportamento de Edson Fachin está longe de ser único pela trajetória. Mas sem dúvida é um dos mais típicos.
Ontem, o relator da Lava Jato pediu a manutenção de Dirceu na prisão e, quando sua derrota ficou clara, tentou interromper o julgamento com um pedido de vistas cujo único efeito real seria prolongar a prisão que o plenário da Segunda Turma considerava injusta. A manobra não teve efeito mas confirmou uma marca fácil de reconhecer. Num período em que as críticas a operação ganham volume e consistência, dentro e fora do país, a Lava Jato sobrevive através de truques -- a palavra é essa -- e lances de esperteza para evitar um debate aberto de mérito.
Sujeito oculto e necessário do debate, o destino de Luiz Inácio Lula da Silva continua entregue ao mesmo sistema, a partir de uma condenação em sentença que é contrariada por todas as provas documentais.
As contribuições de Fachin para manter Lula na prisão são conhecidas e não precisam ser lembradas aqui. O mesmo se pode dizer da presidente do STF Carmen Lúcia, que até hoje se nega a colocar em debate as ações diretas de constitucionalidade que permitiriam um debate isento, despersonalizado, sobre o transito em julgado e a presunção da inocência.
A decisão de ontem mostra que a banalidade do mal é uma força real na Justiça brasileira -- mas pode e deve ser enfrentada.
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