Por Eduardo Nunomora e Jotabê Medeiros, na revista CartaCapital:
Empenhado em retaliar o setor que, historicamente, mais oferece resistência aos regimes autoritários, o governo Bolsonaro iniciou sua gestão aniquilando o Ministério da Cultura e embutindo a pasta em um abstrato Ministério da Cidadania. Em seguida, passou a desautorizar os entes culturais, inibindo a ação cotidiana de organismos de fomento e estímulo.
A primeira ação efetiva deste governo será conhecida em breve. Deve ser publicada nos próximos dias uma Instrução Normativa do governo Bolsonaro modificando a Lei Rouanet. Dependendo do conteúdo, o processo de aniquilamento cultural em curso pode se intensificar. Um indicativo disso foi a composição da nova Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), que tomou posse na segunda-feira 18. À CNIC cabe analisar os pedidos de candidatos aos recursos incentivados da Lei Rouanet, é a comissão de seleção de projetos (aprovaria 227 já na terça-feira 19).
A nova CNIC tem quatro integrantes nomeados pelo próprio ministro da Cidadania, Osmar Terra, incluindo todos os da área de música, agora formada por consultores. Na área de audiovisual, todos os representantes pertencem ao ramo de jogos eletrônicos. Há uma pulverização geral. Por seu turno, a nova redação da Lei Rouanet vai centrar-se na mudança dos limites, os tetos de autorização para o produtor captar, coisa que já foi feita no primeiro ano da gestão de Michel Temer, quando o ministro era Roberto Freire, e logo restabelecida pelo seu sucessor, Sergio Sá Leitão.
A mudança que o ministro Terra vem alardeando é a seguinte: o teto máximo cai de 60 milhões de reais para 10 milhões e o porcentual obrigatório de ingressos gratuitos de projetos incentivados vai de 10% a 20% e 40%. A mudança, na verdade, atende a diagnóstico defeituoso do presidente da República, que pretende atingir críticos do seu governo – chegou a se referir veladamente, no Carnaval, a Caetano Veloso e Daniela Mercury. A cantora propôs a Bolsonaro dar-lhe uma aula de como funciona o incentivo e o motivo dos seus equívocos: primeiro, a legislação fixa o pagamento máximo de 30 mil reais por artista a título de cachê; segundo, quem mais utiliza a lei são instituições financeiras, grandes produtores e institutos privados.
Já a paralisia é uma realidade presente. Uma simples consulta ao Orçamento da União evidencia as cifras da penosa lentidão da área cultural. Até 17 de março, o Fundo Nacional de Cultura (FNC) havia pago 8,1 milhões de reais (que inclui a rubrica “restos a pagar”), uma fração ínfima perto do que foi aprovado na lei orçamentária, um total de 1,4 bilhão de reais. O valor executado é ainda menor, 67,3 mil reais. Nem o mais otimista dos otimistas acredita que o governo Bolsonaro possa alcançar minimamente a média de 662,6 milhões de reais que o FNC liberou nos últimos cincos anos. Principal mecanismo de financiamento de programas, projetos e ações culturais, o FNC chegou a ser ameaçado por Temer perto do fim do mandato. Diante dos protestos da classe artística, o ex-presidente sancionou a MP nº 846, com status de lei, que restabelecia a destinação de recursos das loterias para esse fundo.
Embora a Cultura tenha sido fagocitada pelo Ministério da Cidadania, numa fusão com as pastas do Esporte e do Desenvolvimento Social, os antigos órgãos do MinC continuam a receber dotações com as mesmas rubricas. Nenhuma delas chegou a executar mais de 15% do previsto na lei orçamentária. A Fundação Biblioteca Nacional (15,2 milhões de reais ante o orçamento de 104,8 milhões) e a Fundação Casa de Rui Barbosa (6,9 milhões de reais) têm se empenhado mais em utilizar seus recursos. Já o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que tem um orçamento previsto de 517 milhões de reais, executou apenas 39,3 milhões.
Devagar, quase parando
As consequências dessa quase paralisia já começam a ser sentidas. O cinema, por exemplo, começa a esboçar seu drama particular. Pela primeira vez desde a extinção da Embrafilme, também nos anos Collor, o cinema brasileiro vive um impasse produtivo inusitado. Embora tenha recursos garantidos, a Ancine encontra-se em ritmo de “devagar, quase parando”. A agência executou até agora 17,7 milhões de reais, pouco mais de 10% do que poderá gastar até o fim deste ano. Editais em compasso de espera, produções engavetadas, mercado em estado de suspensão, cadeia produtiva ociosa.
No dia 13 de março, foi divulgada no Diário Oficial da União a agenda da Ancine para o biênio 2018-2020, com o intuito de “aperfeiçoar o processo regulatório” do órgão. Entre as definições, boa parte direcionada para mostrar simetria com os interesses do novo governo (como a destinação de recursos públicos para a produção de jogos eletrônicos), está a “revisão das definições normativas e legais envolvendo orçamento de obras audiovisuais”. A intenção de criar “novas regras” está expressa em todo o documento, mas não se diz a que se destinam essas novas regras.
Mas, se o leitor for a uma resolução da Ancine publicada um dia antes, em 12 de março, vai descobrir que a agência determinou uma maciça análise de mercado de forma a relacionar o fomento à expectativa econômica dos filmes. Voltada para análises econômicas e de negócios, a resolução também fala em “desenvolver modelos de apoio aos processos de tomada de decisão nas áreas de fomento e regulação da Ancine”. À paralisia momentânea da Ancine soma-se a decisão da Petrobras de retirar patrocínio do cinema e outras áreas artísticas, condenando boa parte dos festivais de cinema do País.
Respondendo à demanda da reportagem de CartaCapital, o Ministério da Cidadania afirmou que “está trabalhando em ajustes para que os recursos públicos destinados à área cultural, em especial aqueles advindos de renúncia fiscal por meio da Lei de Incentivo à Cultura, sejam destinados a projetos culturais médios e pequenos de diferentes regiões do país”. O ministério parece ignorar que os projetos captam recursos na iniciativa privada, e não basta querer que os recursos sejam direcionados para este ou aquele tipo de produção. Em geral, os pequenos nunca tiveram chance em face da capacidade de captação dos grandes produtores, e esse é o impasse histórico da Lei Rouanet (foram apenas 63 milhões de reais captados em 2019, e isso se deve a processos já em andamento do ano passado).
Tudo se torna mais preocupante se se considerar o fato de que o governo anunciou o cancelamento de apoios tradicionais também das principais estatais, além da Petrobras, BNDES, Caixa Econômica Federal, Correios e Banco do Brasil, entre outras, que têm contribuído decisivamente para o desenvolvimento e manutenção do aparato de companhias artísticas e a produção cultural (festivais de cinema, teatro, dança). Estimados em mais de 130 milhões de reais, esses recursos estão sendo direcionados para outras áreas. Há companhias que enfrentarão sérias dificuldades, outras fecharão (a CEF não investiu um centavo até agora, por incentivo fiscal; o mesmo acontece com os Correios e o BNDES).
Com receio de sofrerem perseguição política, alguns grupos e companhias que recebem patrocínios estatais alegaram agenda lotadas ou que ainda não gostariam de se manifestar publicamente sobre o assunto.
A nota da Assessoria de Comunicação sugere que o Ministério da Cidadania poderá interceder para pedir às estatais que usem a Lei Rouanet, embora isso não fique explicitado. “Nesse esforço, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, já realizou conversas com o Banco do Brasil, BNDES, Petrobras, Caixa Econômica Federal e Eletrobras para estabelecer parcerias com as estatais com foco em editais voltados para o incentivo à cultura regional”, afirma a assessoria.
Ao mesmo tempo que se equilibra nesse pêndulo de desinteresses nacionais, a Secretaria Especial da Cultura (que gere o que sobrou do MinC) também se vê às voltas com as contradições típicas do discurso esquizofrênico de Bolsonaro. Ironicamente, é a instituição a quem foi confiada a tarefa de preparar os eventos culturais da reunião do bloco dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), em setembro e novembro. O secretário, Henrique Pires, anunciou um festival de cinema multinacional. A 11ª Cúpula dos Chefes de Estado dos BRICS acontece no Brasil e coloca em cena as recentes diatribes da loucademia diplomática do Brasil, cujo ranço ideológico a levou a atacar seu maior parceiro comercial, a China. É quando o impulso de destruição tem de conviver com a própria expressão da civilidade, que é a cultura.
Parcialmente paralisada em todo o País, a produção cultural brasileira pode terminar este ano emparelhando um recorde histórico: tem grande chance de superar em inanição o pior momento desde a redemocratização do País, após a ditadura civil-militar: os anos Collor, no início da década de 1990.
Empenhado em retaliar o setor que, historicamente, mais oferece resistência aos regimes autoritários, o governo Bolsonaro iniciou sua gestão aniquilando o Ministério da Cultura e embutindo a pasta em um abstrato Ministério da Cidadania. Em seguida, passou a desautorizar os entes culturais, inibindo a ação cotidiana de organismos de fomento e estímulo.
A primeira ação efetiva deste governo será conhecida em breve. Deve ser publicada nos próximos dias uma Instrução Normativa do governo Bolsonaro modificando a Lei Rouanet. Dependendo do conteúdo, o processo de aniquilamento cultural em curso pode se intensificar. Um indicativo disso foi a composição da nova Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), que tomou posse na segunda-feira 18. À CNIC cabe analisar os pedidos de candidatos aos recursos incentivados da Lei Rouanet, é a comissão de seleção de projetos (aprovaria 227 já na terça-feira 19).
A nova CNIC tem quatro integrantes nomeados pelo próprio ministro da Cidadania, Osmar Terra, incluindo todos os da área de música, agora formada por consultores. Na área de audiovisual, todos os representantes pertencem ao ramo de jogos eletrônicos. Há uma pulverização geral. Por seu turno, a nova redação da Lei Rouanet vai centrar-se na mudança dos limites, os tetos de autorização para o produtor captar, coisa que já foi feita no primeiro ano da gestão de Michel Temer, quando o ministro era Roberto Freire, e logo restabelecida pelo seu sucessor, Sergio Sá Leitão.
A mudança que o ministro Terra vem alardeando é a seguinte: o teto máximo cai de 60 milhões de reais para 10 milhões e o porcentual obrigatório de ingressos gratuitos de projetos incentivados vai de 10% a 20% e 40%. A mudança, na verdade, atende a diagnóstico defeituoso do presidente da República, que pretende atingir críticos do seu governo – chegou a se referir veladamente, no Carnaval, a Caetano Veloso e Daniela Mercury. A cantora propôs a Bolsonaro dar-lhe uma aula de como funciona o incentivo e o motivo dos seus equívocos: primeiro, a legislação fixa o pagamento máximo de 30 mil reais por artista a título de cachê; segundo, quem mais utiliza a lei são instituições financeiras, grandes produtores e institutos privados.
Já a paralisia é uma realidade presente. Uma simples consulta ao Orçamento da União evidencia as cifras da penosa lentidão da área cultural. Até 17 de março, o Fundo Nacional de Cultura (FNC) havia pago 8,1 milhões de reais (que inclui a rubrica “restos a pagar”), uma fração ínfima perto do que foi aprovado na lei orçamentária, um total de 1,4 bilhão de reais. O valor executado é ainda menor, 67,3 mil reais. Nem o mais otimista dos otimistas acredita que o governo Bolsonaro possa alcançar minimamente a média de 662,6 milhões de reais que o FNC liberou nos últimos cincos anos. Principal mecanismo de financiamento de programas, projetos e ações culturais, o FNC chegou a ser ameaçado por Temer perto do fim do mandato. Diante dos protestos da classe artística, o ex-presidente sancionou a MP nº 846, com status de lei, que restabelecia a destinação de recursos das loterias para esse fundo.
Embora a Cultura tenha sido fagocitada pelo Ministério da Cidadania, numa fusão com as pastas do Esporte e do Desenvolvimento Social, os antigos órgãos do MinC continuam a receber dotações com as mesmas rubricas. Nenhuma delas chegou a executar mais de 15% do previsto na lei orçamentária. A Fundação Biblioteca Nacional (15,2 milhões de reais ante o orçamento de 104,8 milhões) e a Fundação Casa de Rui Barbosa (6,9 milhões de reais) têm se empenhado mais em utilizar seus recursos. Já o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que tem um orçamento previsto de 517 milhões de reais, executou apenas 39,3 milhões.
Devagar, quase parando
As consequências dessa quase paralisia já começam a ser sentidas. O cinema, por exemplo, começa a esboçar seu drama particular. Pela primeira vez desde a extinção da Embrafilme, também nos anos Collor, o cinema brasileiro vive um impasse produtivo inusitado. Embora tenha recursos garantidos, a Ancine encontra-se em ritmo de “devagar, quase parando”. A agência executou até agora 17,7 milhões de reais, pouco mais de 10% do que poderá gastar até o fim deste ano. Editais em compasso de espera, produções engavetadas, mercado em estado de suspensão, cadeia produtiva ociosa.
No dia 13 de março, foi divulgada no Diário Oficial da União a agenda da Ancine para o biênio 2018-2020, com o intuito de “aperfeiçoar o processo regulatório” do órgão. Entre as definições, boa parte direcionada para mostrar simetria com os interesses do novo governo (como a destinação de recursos públicos para a produção de jogos eletrônicos), está a “revisão das definições normativas e legais envolvendo orçamento de obras audiovisuais”. A intenção de criar “novas regras” está expressa em todo o documento, mas não se diz a que se destinam essas novas regras.
Mas, se o leitor for a uma resolução da Ancine publicada um dia antes, em 12 de março, vai descobrir que a agência determinou uma maciça análise de mercado de forma a relacionar o fomento à expectativa econômica dos filmes. Voltada para análises econômicas e de negócios, a resolução também fala em “desenvolver modelos de apoio aos processos de tomada de decisão nas áreas de fomento e regulação da Ancine”. À paralisia momentânea da Ancine soma-se a decisão da Petrobras de retirar patrocínio do cinema e outras áreas artísticas, condenando boa parte dos festivais de cinema do País.
Respondendo à demanda da reportagem de CartaCapital, o Ministério da Cidadania afirmou que “está trabalhando em ajustes para que os recursos públicos destinados à área cultural, em especial aqueles advindos de renúncia fiscal por meio da Lei de Incentivo à Cultura, sejam destinados a projetos culturais médios e pequenos de diferentes regiões do país”. O ministério parece ignorar que os projetos captam recursos na iniciativa privada, e não basta querer que os recursos sejam direcionados para este ou aquele tipo de produção. Em geral, os pequenos nunca tiveram chance em face da capacidade de captação dos grandes produtores, e esse é o impasse histórico da Lei Rouanet (foram apenas 63 milhões de reais captados em 2019, e isso se deve a processos já em andamento do ano passado).
Tudo se torna mais preocupante se se considerar o fato de que o governo anunciou o cancelamento de apoios tradicionais também das principais estatais, além da Petrobras, BNDES, Caixa Econômica Federal, Correios e Banco do Brasil, entre outras, que têm contribuído decisivamente para o desenvolvimento e manutenção do aparato de companhias artísticas e a produção cultural (festivais de cinema, teatro, dança). Estimados em mais de 130 milhões de reais, esses recursos estão sendo direcionados para outras áreas. Há companhias que enfrentarão sérias dificuldades, outras fecharão (a CEF não investiu um centavo até agora, por incentivo fiscal; o mesmo acontece com os Correios e o BNDES).
Com receio de sofrerem perseguição política, alguns grupos e companhias que recebem patrocínios estatais alegaram agenda lotadas ou que ainda não gostariam de se manifestar publicamente sobre o assunto.
A nota da Assessoria de Comunicação sugere que o Ministério da Cidadania poderá interceder para pedir às estatais que usem a Lei Rouanet, embora isso não fique explicitado. “Nesse esforço, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, já realizou conversas com o Banco do Brasil, BNDES, Petrobras, Caixa Econômica Federal e Eletrobras para estabelecer parcerias com as estatais com foco em editais voltados para o incentivo à cultura regional”, afirma a assessoria.
Ao mesmo tempo que se equilibra nesse pêndulo de desinteresses nacionais, a Secretaria Especial da Cultura (que gere o que sobrou do MinC) também se vê às voltas com as contradições típicas do discurso esquizofrênico de Bolsonaro. Ironicamente, é a instituição a quem foi confiada a tarefa de preparar os eventos culturais da reunião do bloco dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), em setembro e novembro. O secretário, Henrique Pires, anunciou um festival de cinema multinacional. A 11ª Cúpula dos Chefes de Estado dos BRICS acontece no Brasil e coloca em cena as recentes diatribes da loucademia diplomática do Brasil, cujo ranço ideológico a levou a atacar seu maior parceiro comercial, a China. É quando o impulso de destruição tem de conviver com a própria expressão da civilidade, que é a cultura.
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