Por Camila Feix Vidal e Arthur Banzatto, no site Carta Maior:
Que os Estados Unidos têm uma trajetória extensa de ingerências na América Latina não é novidade. Durante boa parte do século XX, essas intervenções eram justificadas como resultado da Guerra Fria na contenção estadunidense à influência soviética na região. Para conter essa ameaça, era permitido utilizar-se de todos os meios, inclusive os militares, para suprimir lideranças e movimentos que, supostamente, alinhavam-se com a ideologia soviética, ainda que, na maioria dos casos, sobrassem “convicções” e faltassem provas desse alinhamento – em alusão à “profunda convicção” de que o governo de Jacobo Arbenz na Guatemala era comunista (NSA).
O que talvez ainda soe como uma novidade para alguns é que, mesmo com o fim da Guerra Fria, os EUA ainda exercem ingerência na América Latina, atuando para a desestabilização de governos não simpáticos aos seus interesses. A forma de atuação é, porém, mais difusa e menos visível que anteriormente. Hoje, são usadas instituições para a criação e a manutenção de consentimento, em uma espécie de imperialismo informal, remontando à abordagem gramsciana (Gramsci, 2007).
Mais do que um processo de intervenção de um “país” sobre o outro, essa abordagem nos fornece ferramentas analíticas para conceber a intervenção estadunidense com base em uma estreita colaboração entre classes dominantes nos Estados Unidos e nos países em que intervêm.
Na estreita colaboração entre classes dominantes, as intervenções estadunidenses atuais prescindem de atuações diretas, militares e claramente identificáveis e se concentram em atuações difusas e mais nebulosas. Nesse sentido, o conceito de “guerra híbrida” apresentado por Andrew Korybko (2018) sintetiza a forma do atual imperialismo estadunidense: em vez do uso da força para a manutenção dos interesses e privilégios da classe dominante estadunidense (e mesmo da classe capitalista transnacional), tem-se, agora, o uso de um modelo de guerra indireta (ou não convencional). Nesse sentido, a estreita colaboração entre as classes dirigentes nos EUA e no Brasil é emblemático.
Desde seu surgimento em 2014, a Operação Lava Jato e seus profundos impactos jurídicos, políticos e econômicos vêm sendo objeto de ampla repercussão midiática. Com o objetivo de investigar práticas de corrupção e lavagem de dinheiro, principalmente no âmbito da Petrobras, a operação se tornou o epicentro da agenda anticorrupção no Brasil, sobretudo, com a prisão de políticos, empreiteiros e diretores da petroleira. Os atores centrais da Força-Tarefa da Lava Jato em Curitiba, núcleo da operação, foram o procurador da República Deltan Dallagnol, do Ministério Público Federal (MPF) no Paraná, e o juiz federal Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal de Curitiba, responsáveis, respectivamente, por oferecer as denúncias e julgar as ações penais.
Impulsionados pelo apoio de grande parte da opinião pública, esses atores atingiram o status de celebridades no combate à corrupção e à impunidade, conquistando prêmios no Brasil e no exterior, além de protagonizarem o debate político nacional, inclusive promovendo campanhas de mudanças legislativas, a exemplo do Projeto de Lei 4850/2016 (Dez Medidas Contra a Corrupção).
A Operação e seus desdobramentos
O imenso apoio midiático e popular fez com que a Operação Lava Jato conseguisse manter, durante anos, a imagem de “maior operação anticorrupção do mundo” (Estrada, 2021), o que abafou importantes críticas feitas em relação ao seu modus operandi e a seus impactos negativos na economia e na política. Na esfera jurídica, destacam-se o uso de práticas como conduções coercitivas e prisões preventivas, utilizadas como instrumentos para a imposição de acordos seletivos de delação premiada, assim como o uso de provas ilícitas vazadas de forma seletiva.
Este foi o caso do grampo telefônico que captou e divulgou conversas sigilosas entre o ex-presidente Lula e a então presidenta Dilma Rousseff, que possuía prerrogativa de foro (Rodas, 2016). Apesar de a prática ter sido repreendida e declarada inconstitucional pelo então ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Teori Zavack (Costa et al, 2016), seus efeitos políticos foram irreversíveis, contribuindo para o impedimento da posse de Lula como ministro da Casa Civil e para o desgaste político do Partido dos Trabalhadores (PT) perante a opinião pública. Como desdobramento da crise política, Dilma sofreu processo de impeachment, concluído em 31 de agosto de 2016, e Lula foi condenado em primeira instância pelo juiz Sérgio Moro, em 12 de julho de 2017.
Na esfera econômica, pesquisas de institutos como o IPEA, o Dieese e a GO Associados apontam que a Operação Lava Jato foi responsável pela queda do PIB, pelo aumento do desemprego, pela crise em setores estratégicos da economia brasileira (exploração de petróleo e construção civil) e pelo avanço da exploração estrangeira do pré-sal e pela venda de ativos da Petrobras (refinarias e oleodutos) em favor dos interesses das grandes empresas petroleiras transnacionais.
Em paralelo, argumenta-se também que a cruzada anticorrupção e a criminalização das relações entre o Estado e o setor privado causaram a descrença na política como forma de solucionar os conflitos sociais, fortalecendo discursos autoritários que contribuíram para a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro (Bergamo, 2021). Tais críticas foram aprofundadas e ganharam maior relevância depois que o então juiz Sérgio Moro aceitou o convite de Bolsonaro para ser o “superministro” da Justiça e Segurança Pública do novo governo eleito. Nesse sentido, setores mais críticos passaram a acusar a Lava Jato de praticar um fenômeno conhecido como lawfare – a manipulação de normas jurídicas e instituições do Estado de Direito para fins de perseguição política, transformando indivíduos, ou partidos, em inimigos a serem combatidos (Streck et al, 2021), ou seja, o uso da lei como arma de guerra (DUNLAP, 2001).
Desde junho de 2019, a partir de conversas privadas envolvendo importantes protagonistas da Operação Lava Jato, que foram reveladas e divulgadas pelo Intercept Brasil e veículos de mídia parceiros, a discussão ganhou novos elementos empíricos. Além de corroborarem algumas das críticas que já vinham sendo apresentadas, essas conversas revelaram uma estreita colaboração entre Poder Judiciário e Ministério Público. O próprio STF também mudou sua postura.
Para além das críticas públicas feitas por ministros como Gilmar Mendes e Ricardo Lewandoski, o Plenário do STF confirmou, em 15 de abril desse ano, a anulação das condenações de Lula, corroborando a decisão monocrática proferida pelo ministro Edson Fachin no dia 8 de março. Em paralelo, a 2ª Turma do STF reconheceu, em 23 de março desse ano, a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro no julgamento que condenou Lula. Alegou-se que o então magistrado agiu com motivações políticas na condução do processo, violando o princípio da imparcialidade. No dia 22 de abril de abril, o Plenário do STF formou maioria para manter a decisão sobre a suspeição do magistrado, não cabendo mais revisão sobre ela.
Contextualizando as Relações Internacionais da Operação Lava Jato: o papel dos EUA
Desde o início da Lava Jato, vozes mais críticas apontaram para a interferência dos Estados Unidos na operação. Nesse sentido, é preciso pontuar que a agenda global anticorrupção está vinculada a uma indústria multimilionária criada a partir dos anos 1990 e com sede nos EUA, que presta assistência técnica e financeira ao redor do mundo através da exportação de modelos estadunidenses de rule of law (Estado de Direito). Com base em relatórios de instituições estadunidenses, como a USAID, organizações internacionais governamentais, como Banco Mundial, FMI, ONU e OCDE, e organizações internacionais não governamentais, como a Transparência Internacional e a Open Society Foundation, é possível identificar um amplo movimento global anticorrupção a partir da década de 1990.
Financiadas por grandes corporações, essas organizações passaram a pressionar por reformas institucionais e legais ao redor do mundo. No âmbito dessa agenda, o conceito de corrupção é utilizado para explicar a pobreza e a desigualdade na periferia do sistema capitalista, além de servir como justificativa para a intervenção externa nas políticas internas dos Estados.
Nesse sentido, o crime organizado e a corrupção na América Latina aparecem como importantes ameaças para os comandantes do Comando Sul (entidade ligada ao Departamento da Defesa) a partir de 2001, mas, em específico, desde a administração de Barack Obama. Assim, “As relações dos EUA com os militares e órgãos de segurança pública são uma fonte de influência, especialmente na promoção de determinados temas como o combate à corrupção e à lavagem de dinheiro” (Milani, p.140, tradução livre).
Com relação ao Brasil, a agenda anticorrupção se torna uma importante preocupação estadunidense. Coincidentemente, essa mesma agenda se alia com a ascensão do PT à Presidência da República. De fato, a política externa ativa e altiva desenvolvida por Celso Amorim e pelo próprio presidente Lula representou um papel mais assertivo e atuante do Brasil no âmbito regional e mesmo internacional. O papel que empresas brasileiras, como a Odebrecht, a Camargo Corrêa e a OAS, desempenharam na América do Sul e na África (para onde começavam a expandir seus negócios) era simbólico dessa atuação.
Para Thomas Shannon, embaixador estadunidense no Brasil entre 2010 e 2013, o projeto brasileiro de integração regional suscita preocupação no Departamento de Estado estadunidense, considerando-se que “o desenvolvimento da Odebrecht parte do projeto de poder do PT e da esquerda latino-americana” (Bourcier e Estrada, 2021). Segundo um antigo membro do Departamento de Justiça (DoJ), “Se acrescentarmos a isso as relações entre Obama e Lula, que se deterioravam, e um aparelho do PT que desconfiava do vizinho norte-americano, podemos dizer que tivemos muito trabalho para endireitar os rumos” (Conjur, 2021).
Inicialmente, é possível identificar uma rede de intercâmbio e de iniciativas de cooperação extraoficial envolvendo os membros da Força-Tarefa da Lava Jato em Curitiba e agentes do FBI (a Polícia Federal americana), do DoJ e do Departamento de Estado dos EUA. Conforme revelado pela reportagem publicada pelo jornal francês Le Monde Diplomatique, essa rede começou a ser construída ainda em 2007. Na ocasião, o magistrado Sérgio Moro era responsável pelo caso Banestado, envolvendo investigações sobre lavagem de dinheiro no banco público, em que houve uma efetiva colaboração com autoridades estadunidenses por meio de um programa de relacionamento financiado pelo Departamento de Estado dos EUA que envolveu viagens, compartilhamento de informações e treinamento.
Na sequência, essa colaboração foi sendo aprofundada e ampliada por meio de uma estratégia promovida pela Embaixada dos EUA no Brasil, que pretendia formar uma rede de juristas brasileiros alinhados às suas orientações. Nesse sentido, foi criado o cargo de assessor jurídico residente, ocupado pela procuradora estadunidense Karine Moreno-Taxman, especialista no combate à lavagem de dinheiro. A procuradora desenvolveu um programa chamado “Projeto Pontes”, organizando cursos de formação, seminários e reuniões com juízes e promotores brasileiros, de modo a compartilhar informações e “ensiná-los” a respeito dos métodos estadunidenses de combate à corrupção e à lavagem de dinheiro. Dentre esses métodos, destacam-se a criação de grupos de trabalho (forças-tarefa), o uso de delações premiadas, a cooperação internacional informal e a estratégia de “perseguir o rei de forma sistemática”, identificando o suposto chefe dos esquemas de corrupção e desgastando sua imagem perante a opinião pública (Bourcier e Estrada, 2021).
No contexto do julgamento do Mensalão pelo STF em 2012, aumentam as pressões externas por parte dos EUA e do Grupo de Trabalho da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre Suborno em Transações Comerciais para que o Brasil reforme sua legislação anticorrupção, tornando-a mais rígida. Um dos principais porta-vozes internos dessas mudanças era Sérgio Moro, que, à época, havia sido nomeado desembargador assistente da ministra Rosa Weber. Publicamente, Moro defendia a importação do modelo estadunidense de delação premiada, até então sem previsão legal na legislação brasileira.
Como consequência prática dessa influência estadunidense, podemos mencionar a aprovação de leis anticorrupção inspiradas em legislações dos EUA, dentre as quais se destacam as Leis 12.846 e 12.850, ambas de 2013. Estas leis importaram o modelo estadunidense de plea bargaining para o ordenamento jurídico brasileiro, sob a forma dos acordos de leniência para pessoas jurídicas e da colaboração premiada para pessoas físicas, no qual réus são beneficiados por acordos com o MPF em troca da revelação de novos fatos e informações. A Operação Lava Jato utilizou-se de forma frequente desses institutos.
Nesse sentido, a Lei 12.846, que incorpora mecanismos da Lei de Práticas de Corrupção no Exterior (Foreign Corrupt Practices Act, ou FCPA) dos EUA, também permite a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas brasileiras pela prática de atos contra a administração pública estrangeira, previstos de forma bastante abrangente, suscitando críticas. Entre elas, principalmente, o fato de que esses marcos legais ampliam a competência territorial da jurisdição estadunidense e acabam sendo manipulados pelos EUA contra empresas estrangeiras que competem com empresas americanas por grandes contratos internacionais, a exemplo do que ocorreu com as sanções impostas pelo DoJ dos EUA ao grupo francês Alstom.
Argumenta-se aqui que o combate global anticorrupção pode ser utilizado para os fins da política externa estadunidense, e, mais especificamente, em defesa dos interesses da sua classe econômica (e política) dominante. É emblemático o discurso de Leslie Caldwell em 2014, então procuradora-geral adjunta do DoJ afirmando que: “A luta contra a corrupção estrangeira não é um serviço que prestamos à comunidade internacional, mas sim uma ação de fiscalização necessária para proteger nossos próprios interesses de segurança nacional e a capacidade de nossas empresas americanas de competir no futuro”. No âmbito da Lava Jato, a estreita cooperação do Ministério Público Federal com autoridades estadunidenses, principalmente do DoJ, favoreceu a aplicação da FCPA para punir empresas brasileiras que atuam no exterior, como a Petrobras, a Odebrecht e a Embraer. Além de ter rendido valores bilionários em multas para o Tesouro estadunidense, essa prática enfraqueceu a competitividade internacional dessas empresas, favorecendo as empresas estadunidenses que competem pelos mesmos mercados (Conjur, 2020).
A importância da colaboração do MPF para a aplicação de multas às empresas brasileiras nos EUA, através do compartilhamento de informações obtidas em delações premiadas, é reconhecida pelo próprio DoJ. Em 2016, Kenneth Blanco, estão procurador-geral adjunto do DoJ, declarou que: “É difícil imaginar uma cooperação tão intensa na história recente como a que ocorreu entre o DoJ e o Ministério Público brasileiro”. Em 2017, esse mesmo procurador afirmou que os oficiais de Justiça dos EUA tinham “comunicações informais” sobre a remoção de Lula da eleição presidencial brasileira de 2018 (Blanco, 2017 apud Prashad, 2020, p.156). Essa relação entre as elites jurídicas brasileiras e estadunidenses se tornou ainda mais estreita no caso do acordo de não persecução penal envolvendo o DoJ e a Petrobras, intermediado pelo Ministério Público Federal em 2018.
Para não ser processada nos EUA, a petroleira brasileira aceitou pagar uma multa de US$ 853,2 milhões, sendo que 80% desse valor seria depositado em uma conta vinculada à 13ª Vara Federal de Curitiba e administrado por uma fundação controlada pelo MPF, conhecida como a “Fundação da Lava Jato”. Em março de 2019, Alexandre Moraes, ministro do STF, suspendeu a criação da fundação para gerir os recursos advindos das multas pagas pela Petrobras, alegando que a competência para tal seria da União (Brigido, 2019).
Os dois braços da hegemonia
A intervenção de instituições e agentes públicos estadunidenses na Operação Lava Jato pode ser explicada com base em interesses concretos, dentre os quais podemos destacar: a aceleração dos leilões do pré-sal brasileiro (Haidar, 2017) e a venda de ativos da Petrobras (Nogueira e Slattery, 2020), em favor dos interesses das grandes empresas petroleiras transnacionais, como British Petroleum (BP), British Shell, Chevron, Cnooc, ExxonMobil, QPI e Statoil; assim como o recuo da presença das empresas brasileiras de construção civil (Odebrecht, OAS, Camargo e Correia, entre outras) no exterior, abrindo espaço para empresas estrangeiras concorrentes (Carvalho, 2018). Como sintetiza Vijay Prashad, 2020 (p.156), “A investigação da Lava Jato foi uma grande vantagem para as empresas transnacionais”.
Mais do que apresentar as estratégias de domínio estadunidense na América Latina, em específico, no Brasil, é preciso refletir acerca de práticas e conceitos relativamente esquecidos (ou marginalizados) como imperialismo, hegemonia e o papel da formação de consenso. A hegemonia exercida pelos Estados Unidos no âmbito internacional é uma que combina estratégias de coerção e consenso. A primeira nos é bastante familiar enquanto latino-americanos, em especial durante o período da Guerra Fria. A segunda, ainda que menos visível, não é menos sutil. O atual imperialismo não é assegurado unicamente por coerção, mas também (e principalmente) por mecanismos de consenso através de instituições sociais que servem para justificar e legitimar esse mesmo sistema de dominação.
* Camila Feix Vidal é professora no Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), membro do INCT-INEU e do GEPPIC. Contato: camilafeixvidal@gmail.com.
* Arthur Banzatto é doutorando pelo Programa de Pós Graduação em Relações Internacionais da UFSC.
* Publicado originalmente em 'OPEU'
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