Logo nas primeiras linhas de Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada, a catadora de lixo Carolina Maria de Jesus (1914-1977) conta como foi o aniversário de 2 anos da filha, Vera Eunice. “Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos”, escreve. “Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar.”
Quarto de Despejo, um dos livros brasileiros mais seminais do século 20, foi lançado em 1960. A cena vivida por Carolina na Favela do Canindé, na zona norte de São Paulo, é um pouco anterior – de 1955. Ainda que passadas mais de seis décadas, o relato seco e amargo que emerge de suas páginas não parece datado nem envelhecido. Ao contrário: é dramaticamente familiar num Brasil que, para além da carestia, enfrenta os flagelos da pandemia de Covid-19 e do governo genocida de Jair Bolsonaro.
Veja-se a pesquisa “Bem-Estar Trabalhista, Felicidade e Pandemia”, coordenada pelo economista Marcelo Neri, do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV Social). O estudo, divulgado nesta segunda-feira (14), expõe traços do atraso de um país que, nos idos de 2021, vive penúrias como aquelas da década de 1950. Em apenas um ano – do primeiro trimestre de 2020 para o primeiro trimestre deste ano –, a renda média dos brasileiros despencou 11,3%, chegando a R$ 995, o menor patamar da série histórica, iniciada em 2012. É a primeira vez em dez anos que esse valor médio fica abaixo de R$ 1.000.
É também o pico da desigualdade de renda no País, conforme o Índice de Gini (IG), que varia de 0 (igualdade total de renda) a 1 (desigualdade extrema). O Brasil já registrava uma queda sensível no IG, da ordem de três centésimos, ao longo de cinco anos – de 0,610 em 2015 para 0,642 no primeiro trimestre de 2020. Porém, houve nova queda de mais de três centésimos em apenas 12 meses – de 2020 a 2021.
Segundo Marcelo Neri, há vários fatores por trás do empobrecimento da população brasileira – mas o desemprego “foi o principal responsável pela queda de poder de compra médio dos brasileiros”. Números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) indicam que, do primeiro trimestre do ano passado para os primeiros três meses de 2021, quase 2 milhões de trabalhadores ficaram desempregados, totalizando um recorde de 14,8, milhões de pessoas sem ocupação. A taxa de desemprego é maior entre as mulheres (17,9%) do que entre os homens (12,2%) – as Carolinas Marias de hoje que o digam.
Embora o novo coronavírus tenha desestabilizado a economia de todas as regiões do Planeta e provocado uma recessão global, a capacidade de resposta dos governos tem sido fundamental para estancar a crise. A China só garantiu um crescimento de 2,3% do PIB em plena pandemia porque o governo dirigido pelo Partido Comunista agiu à altura e com celeridade, apoiando-se em medidas restritivas de grande eficácia. Nos Estados Unidos, os dois pacotes de investimentos estatais, para proteger empregadores e trabalhadores, somaram nada menos que US$ 4,3 trilhões (cerca de R$ 22 trilhões).
Já no Brasil, além de Bolsonaro sabotar o combate à pandemia – conforme comprova a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 no Senado –, a economia segue vulnerável. A indústria está sem políticas específicas que protejam a produção e os empregos. Falta apoio sólido às micro e pequenas empresas. O Bolsa Família não dá conta de tantas agruras, ainda mais depois que a política de valorização do salário mínimo, já renegada no governo Michel Temer (2016-2018), foi definitivamente abandonada pelo bolsonarismo. O auxílio emergencial, reduzido a R$ 175, “mal dá para comprar um botijão de gás”, como lembra Adilson Araújo, presidente da CTB (Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil).
Na realidade, afora o desemprego em alta e a renda média em baixa, estamos às voltas, ainda, com a inflação. Em maio, o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) disparou 0,83% – a maior alta para esse mês em 25 anos. No acumulado de 12 meses, a inflação é de 8,06%. Se a elevação no preço dos alimentos e dos combustíveis detonou inicialmente a carestia, agora quem puxa a alta é a conta de luz. O “apagão de Bolsonaro” já avança no bolso dos brasileiros.
No momento em que o País está prestes a alcançar a marca de 500 mil vítimas da Covid-19 e do bolsonarismo, sobram dores além do luto para as famílias brasileiras, como se elas estivessem fadadas a reviverem a saga de Quarto de Despejo. “Pensei: já não bastam as amarguras da vida?”, registrou Carolina Maria de Jesus em seu diário, depois de mais um dia tentando vencer a fome, mas sentindo “só ar dentro do estômago”.
No desespero, a catadora conclui que “o Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora”. No entanto, o que sobressai no Brasil hoje, 61 anos depois de Quarto de Despejo, é um governo que impõe a morte, o desemprego, a miséria e também a fome como marcas de um período sombrio.
Ao travar as batalhas cotidianas e registrá-las em seu Diário, Carolina deixou exemplos da persistência, da fortaleza de ânimo, da força de vontade dos brasileiros – em especial as mães de família. Sua história há de inspirar a frente ampla contra Bolsonaro, o desemprego e a fome – que, afinal, não visa apenas à vacina já, ao auxílio emergencial de R$ 600, ao emprego e à democracia. Acima de tudo, a luta é por um Brasil onde a resistência e a esperança de tantas Carolinas Marias sejam transformadas num futuro de mais justiça social e menos desigualdades, sem “escravos do custo de vida” e de um presidente genocida.
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