sexta-feira, 22 de abril de 2011

Fraude, falsificação e os bancos nos EUA

Reproduzo artigo de Argemiro Ferreira, publicado em sua blog:

Já se teme até um novo choque imobiliário. Nos diferentes estados dos EUA, cada vez mais famílias norte-americanos enfrentam o risco de retomada de suas casas pelos bancos (entre eles, os gigantes Bank of America, Citibank, HSBC, Wells Fargo, Deutsche Bank, US Bank) por falta de pagamento de hipotecas. No domingo passado o jornalista Scott Pelley expôs no “60 Minutes” da rede CBS a questão crucial que passou a retardar a onda de retomadas em massa de casas.



Para comprá-las as pessoas tinham sido obrigadas pelos bancos a apresentar papelada rigorosamente em dia. Os bancos, no entanto, não cuidaram de sua própria papelada. Por causa do descuido são agora dezenas de milhares os casos de bancos e financeiras incapazes de localizar os documentos que provem estarem legalmente habilatados a retomar imóveis dos inadimplentes.

Ficou difícil saber quem é de fato dono de cada casa. A culpa pelo pesadelo, segundo Pelley, é a invenção em Wall Street, ainda sob a fúria desregulamentadora, dos investimentos garantidos por hipotecas – ou, na língua deles, mortgage-backed securities. Os mesmos “investimentos exóticos” que desencadearam o colapso financeiro nos EUA e continuam a criar problemas.

Também ouvida domingo passado, no final de “60 Minutes”, a própria presidente da reguladora bancária FDIC (Federal Deposit Insurance Corporation), Sheila Bair, foi enfática. Chamou a situação atual de “pervasive” – expressão que qualifica a influência nociva e perversa disseminada largamente pelos bancos.

Já atolados na lambança de fraudes e ilegalidade, os bancos ainda tropeçaram nos detalhes escabrosos devassados na reportagem da CBS. As revelações devem-se a personagem singular, Lynn E. Szymoniak. Enquanto tentava salvar a própria casa, ela fez descobertas. Wall Street usava computadores modernos para produzir a desastrosa securitização garantida por hipotecas, segundo Szymoniac, mas esqueceu de preservar documentos em papel, talvez temendo que retardassem o ritmo frenético de seus lucros.

Ao levar Szymoniac (foto acima) ao tribunal como inadimplente, o banco credor dela teve de alegar perda dos papéis. Mais de um ano depois, misteriosamente, disse tê-los reencontrado. Não sabia que a moça, além de advogada, era investigadora de fraudes e especialista em documentos forjados (até treinara agentes do FBI). No exame dos papéis afinal apresentados pelo banco, Szymoniak achou primeiro uma discrepância de data: a compra da hipoteca pelo banco (17/10/2008) era posterior ao início do processo de retomada pelo banco (julho de 2008). Ou seja, quando o banco começou a ação de retomada não era dono da hipoteca.

Parecia sem sentido mas o que veio depois foi ainda mais estranho. Numa pesquisa online em 10 mil hipotecas, Szymoniak passou a devassar a orgia de fraudes bancárias. Havia milhares de documentos forjados. Grande número deles levava a assinatura de uma certa Linda Green como vice-presidente do banco. Green, que nunca na vida trabalhara em banco, assinava ao mesmo tempo como vice-presidente de 20 bancos.

Para Szymoniak as fraudes só podiam ser intencionais: na prática, ao encurtar caminhos e empacotar hipotecas em securities, Wall Street recorria a atalhos. Securities eram negociados e passavam de mão em mão, de investidor a investidor. E com a inadimplência de compradores, os bancos precisavam, para retomar os imóveis, exibir documentos que provassem a propriedade. “Mostre a prova de que é dono” passou a ser a resposta automática ao ataque dos bancos.

A dificuldade tornou-se então impossibilidade. Incapazes de provar a condição de donos das hipotecas, o que passaram a fazer bancos e financeiras? Optaram pela fraude múltipla e explícita. Um conjunto de procedimentos ilegais destinados a “fabricar” provas foi criado em seguida para, com elas, fundamentar-se a retomada de casas.

A pesquisa de Szymoniak aprofundou-se num caso específico – o da singular Linda Green, que assinava como vice-presidente sem saber coisa alguma de banco. Localizada pela equipe da CBS, ela reconheceu: assinara milhares daqueles papéis. Admitiu ainda que muitas outras pessoas também contratadas assinavam o nome dela. E que qualidades especiais tinha para ter sido escolhida? Morava na Georgia e tinha um nome curto, fácil e rápido para soletrar e escrever.

O empregador dela era a companhia DOCX, da Georgia, subsidiária da LPS, de US$ 2 bilhões, especializada em prestar serviços jurídicos a bancos provedores de hipoteca. Somente em 2009, devido à enxurrada de processos, a LPS resolveria fechar a DOCX, na esperança de assim por fim ao problema. Mas o estrago estava feito. Os bancos acharam ter se livrado do problema, transferindo-o para pessoas singelas e ingênuas como Green, sem consciência do que fizera a serviço deles.

A investigação de Szymoniak comprovou ainda que mais pessoas também assinavam, mesmo com letras bem diferentes, o nome de Green. A CBS chegou a elas. Muitas eram, na época em que tiveram o emprego, meras estudantes de escola secundária. Recebiam para passar horas no escritório forjando a assinatura “Linda Green”.

O jovem Cris Pendly era uma dessas pessoas. Ele explicou à equipe da CBS como fazia: não tinha experiência bancária, só o que se exigia dele era velocidade para assinar o nome de Green o máximo de vezes possível. “Eles me garantiram antes que aquilo era estritamente legal”, disse. “Só teria de pegar a caneta e começar”. Em torno da mesma mesa dele trabalhavam ao todo 20 pessoas, todas dedicadas a igual tarefa da falsificação. Pendly chegava a fazer cinco mil assinaturas num mês.

Havia ainda notários, para atestar a identidade das pessoas e a autoria das assinaturas. Uma das que tinham o papel de notário explicou à CBS: “Antes eu não sabia, hoje sei. Era falso o que eu atestava como verdadeiro”. Mas os documentos resultantes da fraude foram usados. Com base neles tomavam-se imóveis com pagamentos em atraso.

“Foi prática rotineira nos últimos três anos”, contou na TV um especialista familiarizado com os procedimentos. Inundaram-se tribunais com papéis fraudados a serviço dos bancos. Algumas vezes sequer constava o nome de quem perdera a casa. Para o banco, mera irrelevância. Mas nos textos, hoje motivo de chacotas, faziam-se piadas de mau gosto, substituiam-se nomes por zombarias, etc.

Penldey revelou, envergonhado, que sua remuneração não passava de US$ 10 por hora de trabalho. Bem humorado e minucioso no relato franco da ação fraudulenta, contou ainda como certa vez fizera comentário jocoso com os colegas da mesa: “Temo que um dia acabemos todos numa reportagem do ‘60 Minutes’”.

Milhares de famílias que perderam as casas devido a tais fraudes não acham graça. Elas se organizam hoje em associações espalhadas pelos EUA. Nos dias atuais, toda pessoa que se torna alvo de foreclosure (retomada judicial) exige imediatamente do banco que mostre prova de propriedade. Com isso, muitas famílias ainda permanecem em suas casas.

Para a presidente da FDIC, Shirley Bair, a enxurrada de ações judiciais dos compradores contra os bancos pode tornar o processo muito difícil, ao invés de melhorar a situação. E o presidente do FED, Ben Bernanke, acha que os documentos das hipotecas são tão ameaçadores para a economia americana que o governo devia forçar os bancos a pagar com um fundo especial.

O mercado de imóveis continua desestabilizado e os preços cairam nos últimos cinco meses. Sheila Bair também defende um fundo de alguns bilhões de dólares para fazer a “limpeza”. Na proposta dela o fundo pagaria aos compradores para aceitarem a alegação de propriedade dos bancos, desistindo de novas ações judiciais. Seria menos oneroso para os bancos do que tentar recriar documentos legítimos, o que levaria mais tempo, a um custo muito maior.

Nenhum dos grandes bancos envolvidos nas fraudes concorda em falar sobre a questão. Nem a entidade deles, American Bankers Association. Para o jornalista Scott Pelley, eles estão na defensiva. Todos os Procuradores Gerais dos 50 estados planejam puní-los. Querem exigir deles US$ 50 bilhões pelos danos que causaram.

Não se sabe quantas firmas faziam para os bancos o mesmo trabalho sujo da DOCX. O FBI e vários estados investigam e esperam obter respostas. No último ano houve um milhão de retomadas de casas. Espera-se mais um milhão em 2011. E na Justiça tramitam incontáveis ações na tentativa de reverter os efeitos dos mortgage-backed securities que Wall Street manipulou e fraudou na década de 2000. “Estou muito preocupada, temendo que as coisas fiquem fora de controle, devido ao impacto trazido por esses fatos”, disse Bair.

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