Por Patrícia Benvenuti, no jornal Brasil de Fato:
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) anunciou, em 10 de julho, a suspensão de 268 planos de saúde comercializados por 37 operadoras. O motivo foi o desrespeito aos prazos máximos de atendimento aos usuários, conforme a Resolução Normativa 259 da ANS.
As empresas terão até setembro para se adequarem aos prazos que variam conforme a especialidade médica. Para as consultas básicas, o cliente deve esperar no máximo por sete dias úteis para conseguir o atendimento. Para outras especialidades o prazo é 14 dias e para procedimentos de alta complexidade, 21 dias.
A suspensão foi motivada, segundo a ANS, pelo número de reclamações de usuários que chegaram ao órgão. De 19 de março a 18 de junho, foram 4.682 queixas por causa do não cumprimento dos prazos.
O crescimento do setor privado de saúde e, sobretudo, sua má qualidade, são preocupações de especialistas e defensores da saúde pública. Para a médica e presidenta do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), Ana Maria Costa, não se pode mais falar em apenas um sistema único hoje. “A sociedade brasileira não pode mais fingir que nós temos um sistema único. O sistema já não é único. O sistema privado hoje cobre uma parcela de acima de 30% da população”, afirma.
O crescimento dos planos de saúde privados avança. Segundo o último Caderno de Informação da Saúde Suplementar da ANS, o primeiro trimestre de 2012 encerrou-se com o registro de 47,9 milhões de vínculos de beneficiários a planos de assistência médica. Em dezembro de 2000, esse número era de 30,7 milhões.
Em 2011, o mercado dos planos de saúde teve um faturamento de R$ 83,4 bilhões, o que representa um crescimento de 11,7% quando comparado a 2010. Na avaliação de Ana Maria, é preciso frear, com urgência, o crescimento da saúde privada, principal responsável pela fragilização do Sistema Único de Saúde. Ao mesmo tempo, ela reforça a necessidade de voltar as atenções à saúde pública, por meio de mais investimentos.
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) anunciou, em 10 de julho, a suspensão de 268 planos de saúde comercializados por 37 operadoras. O motivo foi o desrespeito aos prazos máximos de atendimento aos usuários, conforme a Resolução Normativa 259 da ANS.
As empresas terão até setembro para se adequarem aos prazos que variam conforme a especialidade médica. Para as consultas básicas, o cliente deve esperar no máximo por sete dias úteis para conseguir o atendimento. Para outras especialidades o prazo é 14 dias e para procedimentos de alta complexidade, 21 dias.
A suspensão foi motivada, segundo a ANS, pelo número de reclamações de usuários que chegaram ao órgão. De 19 de março a 18 de junho, foram 4.682 queixas por causa do não cumprimento dos prazos.
O crescimento do setor privado de saúde e, sobretudo, sua má qualidade, são preocupações de especialistas e defensores da saúde pública. Para a médica e presidenta do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), Ana Maria Costa, não se pode mais falar em apenas um sistema único hoje. “A sociedade brasileira não pode mais fingir que nós temos um sistema único. O sistema já não é único. O sistema privado hoje cobre uma parcela de acima de 30% da população”, afirma.
O crescimento dos planos de saúde privados avança. Segundo o último Caderno de Informação da Saúde Suplementar da ANS, o primeiro trimestre de 2012 encerrou-se com o registro de 47,9 milhões de vínculos de beneficiários a planos de assistência médica. Em dezembro de 2000, esse número era de 30,7 milhões.
Em 2011, o mercado dos planos de saúde teve um faturamento de R$ 83,4 bilhões, o que representa um crescimento de 11,7% quando comparado a 2010. Na avaliação de Ana Maria, é preciso frear, com urgência, o crescimento da saúde privada, principal responsável pela fragilização do Sistema Único de Saúde. Ao mesmo tempo, ela reforça a necessidade de voltar as atenções à saúde pública, por meio de mais investimentos.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Ana Maria fala sobre a mercantilização da saúde e seus riscos para a sociedade. A presidenta do Cebes faz ainda uma crítica aos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff: “Do ponto de vista da saúde não andamos para frente. Em alguns aspectos, andamos para trás”.
Como você analisa a questão da saúde pública no Brasil hoje?
De uma forma geral, nós andamos em um terreno muito preocupante atualmente porque o Sistema Único de Saúde, que foi concebido para ser universal, de qualidade e único, hoje não é nem universal, nem de qualidade e nem único. Tivemos um grande crescimento do setor privado de saúde, da mercadorização da medicina, e uma transformação do nosso sistema único em um sistema que tem baixa qualidade, destinado para uma população que não pode pagar plano privado. Nesses 24 anos de implantação do SUS, houve um recuo grande do Estado em relação ao financiamento do SUS e uma ausência na regulação efetiva dessa relação público-privado. É muito preocupante nossa situação hoje, e não é por conta do SUS, que é uma proposta que surge em um contexto muito positivo, fruto de uma grande mobilização popular.
É uma pena que a grande imprensa contribua tanto para destruir, no imaginário da população, o valor real e simbólico do Sistema Único de Saúde. Prevalece toda uma lógica de mostrar o lado perverso e ruim do sistema. Não que deva ser escondido, mas esquecemos de valorizar o que há de positivo. Nós precisamos tratar a coisa pública como coisa de nós todos, como direito universal. Nós temos esse grande problema, na cultura política brasileira, de desprezo à coisa pública. E o SUS tem suas excelências, como procedimentos de alta complexidade, tratamento de câncer na rede Inca (do Instituto Nacional do Câncer), tratamento de aparelho locomotor na rede Into (do Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia), grande volume de transplantes, de pesquisa. Todas essas excelências não são valorizadas.
O SUS está sendo sangrado também por judicializações, em que pessoas ou famílias ganham o direito de ter acesso a medicamentos e tecnologias que são caríssimos e que nem sempre são ainda registrados no país. Normalmente as pessoas que têm acesso a esses processos judiciais são pessoas que não têm dependência única do Sistema Único de Saúde, mas ao invés de pedir e reclamar para os seus respectivos planos de saúde reclamam o acesso a essas drogas pelo SUS.
Quais os principais problemas do Sistema Único de Saúde?
O principal problema hoje é o Estado brasileiro definir qual é a relação real que a saúde pública tem com a saúde de mercado. A sociedade brasileira não pode mais fingir que nós temos um sistema único. O sistema já não é único. O sistema privado hoje cobre uma parcela de acima de 30% da população. A nova classe média tem uma aspiração imediata e é estimulada, pela baixa qualidade do sistema único, a ingressar no sistema privado. O sistema privado, cuja lógica é a mercadorização da saúde, é um sistema perverso porque caminha autônomo. Agora tivemos um primeiro lampejo da regulação com essa punição a planos de saúde, que desobedeceram normas de tempo de acesso a determinados procedimentos de saúde, mas ninguém mexe no coração da ferida.
Essa luta pelo direito à saúde, que configurou a criação do SUS, precisa ser introjetada na sociedade brasileira. E esse é um grande problema porque nós não temos hoje uma força e uma pressão social que ampliem a simpatia pelo SUS, ao contrário. E a qualidade do sistema privado não é diferente do sistema único. Quando um paciente chega em um hospital e é atendido pelo plano de saúde, para qualquer procedimento, a primeira coisa que o hospital faz é saber se tem garantia de quem vai pagar aquilo. Se o paciente chega em um hospital do SUS, o procedimento que vai ser feito é o necessário, o que a doença e o estado de saúde requerem naquele momento. Esse exemplo é a expressão do que é a medicina mercadorizada e do que é a medicina como um direito humano. Nós temos, por exemplo, uma das maiores mortandades maternas do mundo. Ocorre muita morte materna no Brasil por negligência, por falta de qualidade na assistência, e não é no Sistema Único de Saúde, é no sistema privado. Por que não se fala sobre isso?
Outro problema gravíssimo é que nós não temos nenhum partido político hoje no Brasil, nem de esquerda, nem de centro, nem de direita, que tenha uma proposta clara e objetiva e que lute por ela no Congresso Nacional. Nós temos uma ausência de compromissos com a saúde absoluta no campo político brasileiro. A saúde é uma demanda popular que aparece nas grandes pesquisas de opinião pública e que não está nos programas eleitorais. A saúde não vai pra pauta. E eu não falaria sobre atraso. Nós temos hoje uma força política, muito grande dentro do Congresso Nacional, que defende e que está lá para defender os planos privados de saúde e que são contra o sistema único de saúde. Precisamos começar a mostrar essa irresponsabilidade das autoridades com a questão da saúde.
A que se deve o esforço desses parlamentares em defender os interesses dos planos privados?
Tem um número expressivo de deputados federais e de senadores que tiveram suas campanhas financiadas por planos privados de saúde. Isso fala por si. Como é que um plano me financia e eu vou falar daquele plano? O que nós queríamos, com a regulamentação da Emenda 29, era melhorar um pouco o financiamento da saúde, que estaria longe ainda do ideal. Perdemos porque interessa, a esse setor, que o SUS se mantenha nesse estágio, sendo cozinhado para ser um sistema de baixa qualidade. E nós caminhamos para isso.
Como avalia a atuação do governo Dilma em relação à saúde?
Primeiro eu gostaria de me identificar como uma pessoa que votou na Dilma e também no Lula. Mas quero dizer que, na saúde, não tivemos grandes avanços. Houve avanços importantes na assistência social, políticas sociais que realmente foram objeto da atenção desses últimos três governos, de Lula e Dilma. Todo esse conjunto das políticas compensatórias sem dúvida teve um grande benefício para o Brasil, a despeito dessa mobilidade social ter sido direcionada para o consumo, o que nos preocupa muito, especialmente porque nesse bolo também está o consumo por planos privados de saúde. Entretanto, do ponto de vista da saúde não andamos para frente. Em alguns aspectos, andamos para trás.
Em termos de financiamento, o veto que ocorreu à aprovação da regulamentação da Emenda 29 expressa claramente isso. Houve toda uma manobra de governo, junto a sua base política, para que não atingíssemos um percentual de investimento público mais adequado em saúde.
Do ponto de vista programático, nós estamos tendo uma gestão, atualmente, que usa a saúde como objeto de marketing político. Nós já não temos mais políticas para grupos sociais, como o caso das mulheres. Temos o programa Rede Cegonha [programa do Ministério da Saúde voltado para o atendimento de gestantes] que, além de infantilizar e colocar as mulheres em uma situação bastante inferior, porque nos faz acreditar em cegonhas, nos reduz a uma demanda em saúde que é pontual. Precisamos encarar, nesse aspecto de uma saúde voltada à gestação e ao parto, a importância da sociedade brasileira debater a legalização do aborto, que mata um volume cada vez maior de mulheres no nosso país. Mas nós temos ainda um governo completamente atolado de compromissos políticos, com suas bases, que não permite avançar nesse debate. Isso é também uma perda para a saúde.
O grande problema que traduz a falta da prioridade política do governo é a questão do financiamento. Ora, nós temos um sistema de saúde feito para 200 milhões de habitantes com o menor gasto per capita do mundo. Não tem nenhum outro sistema, mesmo não sendo universal, que tenha um gasto per capita tão baixo. Comparativamente entre os gastos público e privado com saúde em geral, o público é de menos de 40%. E os 60% restantes as famílias é que estão despendendo, que vão às farmácias comprar medicamentos e que pagam um plano privado.
Agora estamos, mais de 50 entidades, reunidas em um movimento nacional em defesa da saúde pública, colhendo assinaturas por um projeto de lei de iniciativa popular, para que o Estado invista 10% da renda bruta da União em saúde. Isso mostra que a avaliação não é exclusiva do Cebes; a Associação Médica Brasileira, a Ordem dos Advogados do Brasil, a Abrasco, o Conselho Nacional de Saúde, vários sindicatos, várias entidades do campo dos direitos sociais. Estamos todos envolvidos na busca de maior financiamento. Usuários de planos de saúde fazem inúmeras queixas contra os planos de saúde, mas parece que nem as resoluções da ANS têm efetividade.
O que garante essa blindagem às empresas?
Primeiro, nós temos uma cultura de regulação muito fraca no nosso país. O setor privado sempre mandou e desmandou aqui. E a ANS sempre foi muito ambígua em relação à sua função. É muito recente a vocalização da insatisfação dos usuários dos planos de saúde e, como isso, começou a ter muita presença na imprensa, pressionando a ANS para uma resposta. Tem tido algumas respostas tímidas ainda, mas antes tem que mexer no eixo principal, que é essa relação público-privado. Eu queria uma relação que não fosse mediada por esse grande desfalque, que é feito no SUS, com a renúncia fiscal. Tudo que você gasta com saúde hoje é abatido integralmente no seu imposto de renda. Essa renúncia fiscal é uma sangria para o SUS. Já pensou o impacto que seria se esse dinheiro fosse todo investido no Sistema Único de Saúde? Nós teríamos um financiamento muito maior, que poderia qualificar muito mais esses serviços. Nós também não podemos deixar de pensar o fluxo de recursos públicos que vão para o setor privado sob a forma de pagamento de planos de saúde para o funcionalismo público.
Na sua avaliação, o que é mais grave hoje, a falta investimento para o SUS ou melhor aplicação dos recursos já existentes?
Essa é uma pegadinha em que não podemos cair. Houve um discurso muito grande de que nós investimos mal, gastamos mal, gerenciamos mal. Eu não descarto isso. Mas eu acho que esse discurso é falacioso para esconder o verdadeiro problema do Sistema Único de Saúde. Quando eu vejo o gasto público per capita hoje no Brasil para construção do SUS [estimado em cerca de 317 dólares por habitante, segundo a OMS], eu diria que o SUS faz milagre com o dinheiro que tem – milagre de gestão, aplicação, funcionamento. A questão fundamental hoje é pensar em um investimento per capita maior para a saúde no nosso país.
No caso das mulheres, quais as questões mais urgentes a se resolver hoje?
Nós, mulheres, não somos sujeitos tão simples. Somos sujeitos complexos porque somos adolescentes, adultas, velhas, temos cor diferente, escolhas sexuais, condições sociais, econômicas, diferentes entre nós. Essa nossa complexidade não pode ser resolvida com simplificação. Temos que observar todas as doenças crônicas que estão hoje relacionadas às mulheres, doenças cardiovasculares, doenças sexualmente transmissíveis, saúde mental. As mulheres são grandes usuárias de antidepressivos e nem sempre bem indicados. Mulheres negras têm mais risco em relação a determinados problemas de saúde, indígenas têm outros riscos, lésbicas outros. Temos que refinar esse olhar para tentar ampliar e dar conta de todas essas demandas e não afunilar como vem sendo feito com esse programa de Rede Cegonha que se destina claramente a uma ação que interessa a marketing político e não realmente às necessidades de saúde das mulheres brasileiras.
Especialistas costumam ressaltar sempre a importância da atenção primária dentro do sistema de saúde. Como está o Programa Saúde da Família, atualmente?
Esse é outro desvio complicado. É claro que quando nós pensamos em um Sistema Único de Saúde integral, esse integral significa que a saúde deve ser oferecida a todas as necessidades de todas as pessoas em todos os momentos da sua vida. Isso significa dar força, sim, ao atendimento primário, mas a assistência primária não daria conta de resolver o problema que o SUS se propôs a resolver. O SUS precisa ser integral, então vai sempre prescindir de uma retaguarda de clínicas especializadas, hospitais e de toda uma rede que dê conta desse princípio da integralidade.
A atenção primária deve ser a garantia da porta de entrada das pessoas, mas não é viável que a gente tenha um sistema de atenção primária divorciado do resto. O Brasil, nos anos 1990, criou isso, uma rede de atenção primária que é absolutamente apartada do resto do processo de atendimento. Com todo o mérito que a gente tem hoje de ter Programa Saúde da Família em todo o território brasileiro, nós estamos ainda longe de resolver o problema da saúde brasileira. Um indivíduo que tem só um médico da Saúde da Família não tem nada. Ele tem que ter um médico de Saúde da Família, tem que ter a retaguarda de um otorrinolaringologista quando ele precisa, de um cancerologista, oftalmologista, de um exame laboratorial, os recursos que ele irá precisar ou que precisa para ter realmente uma atenção integral.
Agora, a saúde depende de outros fatores para além do setor. Uma sociedade ou uma comunidade expressa, no seu nível de saúde, o conjunto das políticas sociais às quais ela tem acesso – política de emprego, de renda, de moradia, porque todas essas políticas sociais geram qualidade de vida e, portanto, saúde.
O governo federal costuma alegar que faltam médicos no Brasil. Essa afirmação é verdadeira?
Há falta de médicos no Brasil, sem dúvida, mas há uma má distribuição enorme. Há uma política que não fortalece e não favorece uma melhor distribuição. A ausência de planos de cargos e salários, a ausência de políticas efetivas de fixação de profissionais no interior. Há uma necessidade de se criar, no âmbito nacional, diretrizes gerais para políticas locais que deem conta de fixação não só de médicos como de enfermeiros, para garantir o acesso universal.
Quais os avanços mais imediatos para melhorar a saúde pública no Brasil?
Imediatamente nós precisamos de um maior investimento público, de ampliação do investimento e do gasto per capita em saúde. Precisamos de compromisso político. Temos que mobilizar, nas próximas eleições, uma consciência e um compromisso popular de cobrança, dos respectivos prefeitos, pela implementação do Sistema Único de saúde. Um sistema público, de qualidade e que respeite os princípios da Constituição.
Como você analisa a questão da saúde pública no Brasil hoje?
De uma forma geral, nós andamos em um terreno muito preocupante atualmente porque o Sistema Único de Saúde, que foi concebido para ser universal, de qualidade e único, hoje não é nem universal, nem de qualidade e nem único. Tivemos um grande crescimento do setor privado de saúde, da mercadorização da medicina, e uma transformação do nosso sistema único em um sistema que tem baixa qualidade, destinado para uma população que não pode pagar plano privado. Nesses 24 anos de implantação do SUS, houve um recuo grande do Estado em relação ao financiamento do SUS e uma ausência na regulação efetiva dessa relação público-privado. É muito preocupante nossa situação hoje, e não é por conta do SUS, que é uma proposta que surge em um contexto muito positivo, fruto de uma grande mobilização popular.
É uma pena que a grande imprensa contribua tanto para destruir, no imaginário da população, o valor real e simbólico do Sistema Único de Saúde. Prevalece toda uma lógica de mostrar o lado perverso e ruim do sistema. Não que deva ser escondido, mas esquecemos de valorizar o que há de positivo. Nós precisamos tratar a coisa pública como coisa de nós todos, como direito universal. Nós temos esse grande problema, na cultura política brasileira, de desprezo à coisa pública. E o SUS tem suas excelências, como procedimentos de alta complexidade, tratamento de câncer na rede Inca (do Instituto Nacional do Câncer), tratamento de aparelho locomotor na rede Into (do Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia), grande volume de transplantes, de pesquisa. Todas essas excelências não são valorizadas.
O SUS está sendo sangrado também por judicializações, em que pessoas ou famílias ganham o direito de ter acesso a medicamentos e tecnologias que são caríssimos e que nem sempre são ainda registrados no país. Normalmente as pessoas que têm acesso a esses processos judiciais são pessoas que não têm dependência única do Sistema Único de Saúde, mas ao invés de pedir e reclamar para os seus respectivos planos de saúde reclamam o acesso a essas drogas pelo SUS.
Quais os principais problemas do Sistema Único de Saúde?
O principal problema hoje é o Estado brasileiro definir qual é a relação real que a saúde pública tem com a saúde de mercado. A sociedade brasileira não pode mais fingir que nós temos um sistema único. O sistema já não é único. O sistema privado hoje cobre uma parcela de acima de 30% da população. A nova classe média tem uma aspiração imediata e é estimulada, pela baixa qualidade do sistema único, a ingressar no sistema privado. O sistema privado, cuja lógica é a mercadorização da saúde, é um sistema perverso porque caminha autônomo. Agora tivemos um primeiro lampejo da regulação com essa punição a planos de saúde, que desobedeceram normas de tempo de acesso a determinados procedimentos de saúde, mas ninguém mexe no coração da ferida.
Essa luta pelo direito à saúde, que configurou a criação do SUS, precisa ser introjetada na sociedade brasileira. E esse é um grande problema porque nós não temos hoje uma força e uma pressão social que ampliem a simpatia pelo SUS, ao contrário. E a qualidade do sistema privado não é diferente do sistema único. Quando um paciente chega em um hospital e é atendido pelo plano de saúde, para qualquer procedimento, a primeira coisa que o hospital faz é saber se tem garantia de quem vai pagar aquilo. Se o paciente chega em um hospital do SUS, o procedimento que vai ser feito é o necessário, o que a doença e o estado de saúde requerem naquele momento. Esse exemplo é a expressão do que é a medicina mercadorizada e do que é a medicina como um direito humano. Nós temos, por exemplo, uma das maiores mortandades maternas do mundo. Ocorre muita morte materna no Brasil por negligência, por falta de qualidade na assistência, e não é no Sistema Único de Saúde, é no sistema privado. Por que não se fala sobre isso?
Outro problema gravíssimo é que nós não temos nenhum partido político hoje no Brasil, nem de esquerda, nem de centro, nem de direita, que tenha uma proposta clara e objetiva e que lute por ela no Congresso Nacional. Nós temos uma ausência de compromissos com a saúde absoluta no campo político brasileiro. A saúde é uma demanda popular que aparece nas grandes pesquisas de opinião pública e que não está nos programas eleitorais. A saúde não vai pra pauta. E eu não falaria sobre atraso. Nós temos hoje uma força política, muito grande dentro do Congresso Nacional, que defende e que está lá para defender os planos privados de saúde e que são contra o sistema único de saúde. Precisamos começar a mostrar essa irresponsabilidade das autoridades com a questão da saúde.
A que se deve o esforço desses parlamentares em defender os interesses dos planos privados?
Tem um número expressivo de deputados federais e de senadores que tiveram suas campanhas financiadas por planos privados de saúde. Isso fala por si. Como é que um plano me financia e eu vou falar daquele plano? O que nós queríamos, com a regulamentação da Emenda 29, era melhorar um pouco o financiamento da saúde, que estaria longe ainda do ideal. Perdemos porque interessa, a esse setor, que o SUS se mantenha nesse estágio, sendo cozinhado para ser um sistema de baixa qualidade. E nós caminhamos para isso.
Como avalia a atuação do governo Dilma em relação à saúde?
Primeiro eu gostaria de me identificar como uma pessoa que votou na Dilma e também no Lula. Mas quero dizer que, na saúde, não tivemos grandes avanços. Houve avanços importantes na assistência social, políticas sociais que realmente foram objeto da atenção desses últimos três governos, de Lula e Dilma. Todo esse conjunto das políticas compensatórias sem dúvida teve um grande benefício para o Brasil, a despeito dessa mobilidade social ter sido direcionada para o consumo, o que nos preocupa muito, especialmente porque nesse bolo também está o consumo por planos privados de saúde. Entretanto, do ponto de vista da saúde não andamos para frente. Em alguns aspectos, andamos para trás.
Em termos de financiamento, o veto que ocorreu à aprovação da regulamentação da Emenda 29 expressa claramente isso. Houve toda uma manobra de governo, junto a sua base política, para que não atingíssemos um percentual de investimento público mais adequado em saúde.
Do ponto de vista programático, nós estamos tendo uma gestão, atualmente, que usa a saúde como objeto de marketing político. Nós já não temos mais políticas para grupos sociais, como o caso das mulheres. Temos o programa Rede Cegonha [programa do Ministério da Saúde voltado para o atendimento de gestantes] que, além de infantilizar e colocar as mulheres em uma situação bastante inferior, porque nos faz acreditar em cegonhas, nos reduz a uma demanda em saúde que é pontual. Precisamos encarar, nesse aspecto de uma saúde voltada à gestação e ao parto, a importância da sociedade brasileira debater a legalização do aborto, que mata um volume cada vez maior de mulheres no nosso país. Mas nós temos ainda um governo completamente atolado de compromissos políticos, com suas bases, que não permite avançar nesse debate. Isso é também uma perda para a saúde.
O grande problema que traduz a falta da prioridade política do governo é a questão do financiamento. Ora, nós temos um sistema de saúde feito para 200 milhões de habitantes com o menor gasto per capita do mundo. Não tem nenhum outro sistema, mesmo não sendo universal, que tenha um gasto per capita tão baixo. Comparativamente entre os gastos público e privado com saúde em geral, o público é de menos de 40%. E os 60% restantes as famílias é que estão despendendo, que vão às farmácias comprar medicamentos e que pagam um plano privado.
Agora estamos, mais de 50 entidades, reunidas em um movimento nacional em defesa da saúde pública, colhendo assinaturas por um projeto de lei de iniciativa popular, para que o Estado invista 10% da renda bruta da União em saúde. Isso mostra que a avaliação não é exclusiva do Cebes; a Associação Médica Brasileira, a Ordem dos Advogados do Brasil, a Abrasco, o Conselho Nacional de Saúde, vários sindicatos, várias entidades do campo dos direitos sociais. Estamos todos envolvidos na busca de maior financiamento. Usuários de planos de saúde fazem inúmeras queixas contra os planos de saúde, mas parece que nem as resoluções da ANS têm efetividade.
O que garante essa blindagem às empresas?
Primeiro, nós temos uma cultura de regulação muito fraca no nosso país. O setor privado sempre mandou e desmandou aqui. E a ANS sempre foi muito ambígua em relação à sua função. É muito recente a vocalização da insatisfação dos usuários dos planos de saúde e, como isso, começou a ter muita presença na imprensa, pressionando a ANS para uma resposta. Tem tido algumas respostas tímidas ainda, mas antes tem que mexer no eixo principal, que é essa relação público-privado. Eu queria uma relação que não fosse mediada por esse grande desfalque, que é feito no SUS, com a renúncia fiscal. Tudo que você gasta com saúde hoje é abatido integralmente no seu imposto de renda. Essa renúncia fiscal é uma sangria para o SUS. Já pensou o impacto que seria se esse dinheiro fosse todo investido no Sistema Único de Saúde? Nós teríamos um financiamento muito maior, que poderia qualificar muito mais esses serviços. Nós também não podemos deixar de pensar o fluxo de recursos públicos que vão para o setor privado sob a forma de pagamento de planos de saúde para o funcionalismo público.
Na sua avaliação, o que é mais grave hoje, a falta investimento para o SUS ou melhor aplicação dos recursos já existentes?
Essa é uma pegadinha em que não podemos cair. Houve um discurso muito grande de que nós investimos mal, gastamos mal, gerenciamos mal. Eu não descarto isso. Mas eu acho que esse discurso é falacioso para esconder o verdadeiro problema do Sistema Único de Saúde. Quando eu vejo o gasto público per capita hoje no Brasil para construção do SUS [estimado em cerca de 317 dólares por habitante, segundo a OMS], eu diria que o SUS faz milagre com o dinheiro que tem – milagre de gestão, aplicação, funcionamento. A questão fundamental hoje é pensar em um investimento per capita maior para a saúde no nosso país.
No caso das mulheres, quais as questões mais urgentes a se resolver hoje?
Nós, mulheres, não somos sujeitos tão simples. Somos sujeitos complexos porque somos adolescentes, adultas, velhas, temos cor diferente, escolhas sexuais, condições sociais, econômicas, diferentes entre nós. Essa nossa complexidade não pode ser resolvida com simplificação. Temos que observar todas as doenças crônicas que estão hoje relacionadas às mulheres, doenças cardiovasculares, doenças sexualmente transmissíveis, saúde mental. As mulheres são grandes usuárias de antidepressivos e nem sempre bem indicados. Mulheres negras têm mais risco em relação a determinados problemas de saúde, indígenas têm outros riscos, lésbicas outros. Temos que refinar esse olhar para tentar ampliar e dar conta de todas essas demandas e não afunilar como vem sendo feito com esse programa de Rede Cegonha que se destina claramente a uma ação que interessa a marketing político e não realmente às necessidades de saúde das mulheres brasileiras.
Especialistas costumam ressaltar sempre a importância da atenção primária dentro do sistema de saúde. Como está o Programa Saúde da Família, atualmente?
Esse é outro desvio complicado. É claro que quando nós pensamos em um Sistema Único de Saúde integral, esse integral significa que a saúde deve ser oferecida a todas as necessidades de todas as pessoas em todos os momentos da sua vida. Isso significa dar força, sim, ao atendimento primário, mas a assistência primária não daria conta de resolver o problema que o SUS se propôs a resolver. O SUS precisa ser integral, então vai sempre prescindir de uma retaguarda de clínicas especializadas, hospitais e de toda uma rede que dê conta desse princípio da integralidade.
A atenção primária deve ser a garantia da porta de entrada das pessoas, mas não é viável que a gente tenha um sistema de atenção primária divorciado do resto. O Brasil, nos anos 1990, criou isso, uma rede de atenção primária que é absolutamente apartada do resto do processo de atendimento. Com todo o mérito que a gente tem hoje de ter Programa Saúde da Família em todo o território brasileiro, nós estamos ainda longe de resolver o problema da saúde brasileira. Um indivíduo que tem só um médico da Saúde da Família não tem nada. Ele tem que ter um médico de Saúde da Família, tem que ter a retaguarda de um otorrinolaringologista quando ele precisa, de um cancerologista, oftalmologista, de um exame laboratorial, os recursos que ele irá precisar ou que precisa para ter realmente uma atenção integral.
Agora, a saúde depende de outros fatores para além do setor. Uma sociedade ou uma comunidade expressa, no seu nível de saúde, o conjunto das políticas sociais às quais ela tem acesso – política de emprego, de renda, de moradia, porque todas essas políticas sociais geram qualidade de vida e, portanto, saúde.
O governo federal costuma alegar que faltam médicos no Brasil. Essa afirmação é verdadeira?
Há falta de médicos no Brasil, sem dúvida, mas há uma má distribuição enorme. Há uma política que não fortalece e não favorece uma melhor distribuição. A ausência de planos de cargos e salários, a ausência de políticas efetivas de fixação de profissionais no interior. Há uma necessidade de se criar, no âmbito nacional, diretrizes gerais para políticas locais que deem conta de fixação não só de médicos como de enfermeiros, para garantir o acesso universal.
Quais os avanços mais imediatos para melhorar a saúde pública no Brasil?
Imediatamente nós precisamos de um maior investimento público, de ampliação do investimento e do gasto per capita em saúde. Precisamos de compromisso político. Temos que mobilizar, nas próximas eleições, uma consciência e um compromisso popular de cobrança, dos respectivos prefeitos, pela implementação do Sistema Único de saúde. Um sistema público, de qualidade e que respeite os princípios da Constituição.
1 comentários:
Têm médicos que atendem na saúde públcia a privada? Se sim, acho que dá para fazer uma comparação entre ambos. O que se deu para observar, cidades do interior, longe dos grandes centros, a saúde pública é melhor do que nos grandes centros onde há saúde privada também. Parece que os médicos, em acordo com as corporações privadas, dão um geito de tornar a saúde pública ruim para que haja busca de saúde privada, que é onde eles ganham dinheiro com o "caus" na saúde pública.
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