Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Embora a maioria dos jornais publique artigos e reportagens condenando obras produzidas sob encomenda, cabe lembrar que seus patrões estão entre grandes clientes de biografias autorizadas.
Procure conhecer a vida dos fundadores e patronos dos principais grupos de comunicação do país.
Numa prova de que não têm confiança suficiente em nossos biógrafos -- em sua maioria, jornalistas que assumiram uma segunda carreira -- para lhes dar liberdade absoluta de investigação sobre o passado, todos tiveram direito a uma biografia amiga – seja autorizada, encomendada, ou os dois.
Foi assim com Roberto Marinho. Idem para Octavio Frias. A família Mesquita encomendou uma biografia a um profissional da área. Recebeu o trabalho, pagou pelo serviço e decidiu não publicar.
Por que isso acontece?
Porque a vida humana é delicada, fugidia. Uma biografia pode enaltecer e também pode machucar. Pode virar uma maldição para herdeiros, por várias gerações. Ninguém quer correr o risco.
A pergunta íntima, difícil é: você entregaria a narrativa de sua vida, mais duradoura do que sua própria existência, à visão, talento e defeitos de um estranho?
Eu acho o comportamento dos empresários de comunicação sintomático, concorda?
Sou contra a exigência de que as biografias devam receber autorização de publicação de seus protagonistas e familiares. É censura. É uma ameaça à cultura.
Mas essa diferença de tratamento chama a atenção.
Sem pudores para apresentar um Zoo humano chamado BBB, onde a privacidade – inclusive através de atos sexuais verídicos ou simulados -- de cidadãos comuns é parte da luta pelo premio em dinheiro no ultimo dia, a Globo aliou-se a editores brasileiros para defender uma postura agressiva contra a resistência de artistas a abrir a porta de casa, do gabinete de trabalho – e do quarto, especialmente.
O autor da biografia chapa branca de Roberto Marinho é o mesmo Pedro Bial que se tornou apresentador do BBB e seu desfile biografias instantâneas e obrigatoriamente despudoradas.
Engraçado, né?
O ponto é este. Não adianta embelezar o debate alegando que se pretende descrever a vida de quem ajudou a “construir a ideia de nação,” como faz Roberto Feith em artigo no Globo. O artigo lembra corretamente a importância das biografias para a compreensão de nossa formação e nossa história. Mas é bom reconhecer que seria muito bonito se a discussão fosse apenas esta.
O problema é que não há conflitos entre projetos culturais, nem teses antropológicas ou concepções psicanalíticas. O problema, como lembra Hanna Arendt, não está nas opiniões. O que incomoda são os fatos.
O que se debate é o direito de chegar à conta bancária e especialmente à cama dos protagonistas. Ali estão os fatos espinhudos, difíceis, que podem ser escandalosos.
De perto ninguém é normal, ensina o psicanalista Luís Tenório, através de um verso famoso de Caetano. E é normal que a maioria das pessoas – famosas ou não – queira manter suas “anormalidades “ em segredo.
Senão, não precisariam ir ao analista, certo?
Foi a força do monopólio da Globo, presente no rádio e na TV, na edição de livros e no cinema, sem falar em dezenas de revistas e emissoras de TV a cabo, que produziu o recuo das estrelas.
Convencidos de que poderiam ser prejudicados em sua popularidade, eles baixaram a guarda e mudaram o tom de suas entrevistas.
A atitude diferenciada permitiu a Chico Buarque demonstrar a independência através do silêncio. Disse sua opinião e aguarda o debate.
Acho admirável, embora não esteja de acordo com sua visão.
Também acho curioso o que acontece com Xuxa Meneghel. Ela está reescrevendo a própria biografia com auxílio de medidas judiciais. Depois recolher cópias de Amor Estranho Amor e impedir sua exibição no cinema ela obteve poderes de ditadura chinesa para atuar na internet para impedir a circulação de arquivos de um filme liberado, exibido e até premiado após o lançamento, em 1982 -- quando o país ainda vivia sob o regime militar. O fato é que Xuxa jamais foi criticada no mesmo tom por sua atitude.
Será que os ganhos permitidos por sua audiência explicam tamanha proteção? Ninguém acha que é uma medida antidemocrática?
Sei que todo mundo gostaria de ser personagem de Ruy Castro, João Máximo, Fernando Morais e outros talentos gigantescos e raros, capazes de reconstruir os piores momentos de uma existência com a sabedoria de quem não perdeu a referencia humanista nem o olhar ético.
O resto é insegurança, temor.
Vale a pena, por isso mesmo, registrar a biografia de quem, em 2002, aprovou o Código Civil, adormecido por quase 30 anos no Congresso, onde se encontram os dois artigos que colocaram, na forma da lei, o jogo bruto da autorização prévia.
Não vou fazer nenhuma dedução indevida nem quero insinuar coisa alguma. Mas se você examinar a linha de comando da decisão, antes e depois da votação no Congresso, irá encontrar nomes que, na época, tinham todo interesse em proteger a própria privacidade.
Em 2002, último ano de seu mandato, Fernando Henrique Cardoso, que sancionou a lei em vez de vetar os dois artigos, ainda era alvo de rumores – desmentidos por DNA, muitos anos depois – de que possuía um filho fora do casamento.
A votação do Código Civil foi conduzida por Aécio Neves, então presidente da Câmara de Deputados, político que sempre foi capaz de manter a curiosidade de jornalistas longe de sua vida pessoal.
Na década de 1970, o avô de Aécio, o deputado Tancredo Neves, foi o político que levou, ao congresso, o jurista que introduziu o debate sobre privacidade no Código Civil. Elaborados na fase inicial dos debates, os dois artigos se mantiveram intactos até o final. O país inteiro soube, após a morte de Tancredo, que sua vida em Brasília seria um banquete para revistas de fofocas.
Quem tinha idade para ler jornais três décadas atrás recorda-se que o serviço secreto do regime militar tinha um apetite especial para desmoralizar adversários pela divulgação de fatos da vida privada.
Um bispo ligado a Teologia da Libertação foi fotografado com uma companhia feminina num cinema do Rio de Janeiro.
Um deputado de oposição foi flagrado num motel de estrada em companhia da mulher de um de seus amigos – do mesmo partido.
As duas informações eram verdadeiras mas o debate sobre privacidade leva a essas perguntas difíceis. O fato de serem verdadeiras poderia justificar que se tornassem públicas?
Ao longo dos anos os dois artigos se mantiveram por uma década no Código Civil, sem que ninguém se mostrasse incomodado com eles.
Se houve alguma mudança, foi no grau de promiscuidade da indústria cultural, que piorou bastante.
Se a sociedade tornou-se infinitamente mais tolerante nos costumes, os meios de comunicação evoluíram no mesmo grau em matéria de ousadia e agressividade. A atração pelos aspectos privados de uma existência tornou-se compensadora comercialmente, em função de grandes índices de audiência e leitura – como se verifica em tantos livros de história, bons ou ruins, com obrigatórios capítulos Caras e/ou Contigo!
Partindo de um ponto de vista conveniente para a causa da indústria, um número crescente de advogados, autores e mesmo políticos alega que uma personalidade pública não tem direito a privacidade. É um argumento bom para o mercado de celebridades. Mas é um absurdo cultural e político.
Nenhuma sociedade democrática pode diminuir os direitos fundamentais de um cidadão – inclusive o direito a privacidade – em função de sua condição social. Direitos humanos são universais ou são privilégios desumanos.
A Constituição garante a liberdade de expressão em termos absolutos e também protege a imagem e a privacidade de todos.
Não diz que o cidadão cuja vida pode virar um best-seller tem menos direitos do que os demais.
Além disso não há nenhum critério científico para se definir de forma precisa o que é uma “personalidade pública” e o que é um “cidadão privado.” Basta fazer uma ponta numa novela para ser personalidade publica? Ou a certidão de “personalidade pública” só vale para quem é político, ou fez o papel principal?
A pessoa que namora uma celebridade também é pessoa pública?
E a amante?
E o filho fora do casamento?
Quem vai ser exposto numa fraqueza como, por exemplo, ser dependente de álcool ou outro tipo de drogas?
Quem terá amigos influentes junto ao autor para garantir que será poupado? O editor nunca fará nada, irá resistir igualmente a todas as pressões e pedidos?
Você acha que a mão pesada que seleciona a divulgação momentos escabrosos da existência humana não tem amizades nem preferências?
Vivemos num país onde a liberdade de imprensa eliminou até o direito de resposta. Vamos mandar as vítimas de maus biógrafos bater às portas da Justiça com seus prazos proporcionais aos honorários dos advogados? Estamos falando a verdade ou queremos enganar?
Este é o debate real.
Embora a maioria dos jornais publique artigos e reportagens condenando obras produzidas sob encomenda, cabe lembrar que seus patrões estão entre grandes clientes de biografias autorizadas.
Procure conhecer a vida dos fundadores e patronos dos principais grupos de comunicação do país.
Numa prova de que não têm confiança suficiente em nossos biógrafos -- em sua maioria, jornalistas que assumiram uma segunda carreira -- para lhes dar liberdade absoluta de investigação sobre o passado, todos tiveram direito a uma biografia amiga – seja autorizada, encomendada, ou os dois.
Foi assim com Roberto Marinho. Idem para Octavio Frias. A família Mesquita encomendou uma biografia a um profissional da área. Recebeu o trabalho, pagou pelo serviço e decidiu não publicar.
Por que isso acontece?
Porque a vida humana é delicada, fugidia. Uma biografia pode enaltecer e também pode machucar. Pode virar uma maldição para herdeiros, por várias gerações. Ninguém quer correr o risco.
A pergunta íntima, difícil é: você entregaria a narrativa de sua vida, mais duradoura do que sua própria existência, à visão, talento e defeitos de um estranho?
Eu acho o comportamento dos empresários de comunicação sintomático, concorda?
Sou contra a exigência de que as biografias devam receber autorização de publicação de seus protagonistas e familiares. É censura. É uma ameaça à cultura.
Mas essa diferença de tratamento chama a atenção.
Sem pudores para apresentar um Zoo humano chamado BBB, onde a privacidade – inclusive através de atos sexuais verídicos ou simulados -- de cidadãos comuns é parte da luta pelo premio em dinheiro no ultimo dia, a Globo aliou-se a editores brasileiros para defender uma postura agressiva contra a resistência de artistas a abrir a porta de casa, do gabinete de trabalho – e do quarto, especialmente.
O autor da biografia chapa branca de Roberto Marinho é o mesmo Pedro Bial que se tornou apresentador do BBB e seu desfile biografias instantâneas e obrigatoriamente despudoradas.
Engraçado, né?
O ponto é este. Não adianta embelezar o debate alegando que se pretende descrever a vida de quem ajudou a “construir a ideia de nação,” como faz Roberto Feith em artigo no Globo. O artigo lembra corretamente a importância das biografias para a compreensão de nossa formação e nossa história. Mas é bom reconhecer que seria muito bonito se a discussão fosse apenas esta.
O problema é que não há conflitos entre projetos culturais, nem teses antropológicas ou concepções psicanalíticas. O problema, como lembra Hanna Arendt, não está nas opiniões. O que incomoda são os fatos.
O que se debate é o direito de chegar à conta bancária e especialmente à cama dos protagonistas. Ali estão os fatos espinhudos, difíceis, que podem ser escandalosos.
De perto ninguém é normal, ensina o psicanalista Luís Tenório, através de um verso famoso de Caetano. E é normal que a maioria das pessoas – famosas ou não – queira manter suas “anormalidades “ em segredo.
Senão, não precisariam ir ao analista, certo?
Foi a força do monopólio da Globo, presente no rádio e na TV, na edição de livros e no cinema, sem falar em dezenas de revistas e emissoras de TV a cabo, que produziu o recuo das estrelas.
Convencidos de que poderiam ser prejudicados em sua popularidade, eles baixaram a guarda e mudaram o tom de suas entrevistas.
A atitude diferenciada permitiu a Chico Buarque demonstrar a independência através do silêncio. Disse sua opinião e aguarda o debate.
Acho admirável, embora não esteja de acordo com sua visão.
Também acho curioso o que acontece com Xuxa Meneghel. Ela está reescrevendo a própria biografia com auxílio de medidas judiciais. Depois recolher cópias de Amor Estranho Amor e impedir sua exibição no cinema ela obteve poderes de ditadura chinesa para atuar na internet para impedir a circulação de arquivos de um filme liberado, exibido e até premiado após o lançamento, em 1982 -- quando o país ainda vivia sob o regime militar. O fato é que Xuxa jamais foi criticada no mesmo tom por sua atitude.
Será que os ganhos permitidos por sua audiência explicam tamanha proteção? Ninguém acha que é uma medida antidemocrática?
Sei que todo mundo gostaria de ser personagem de Ruy Castro, João Máximo, Fernando Morais e outros talentos gigantescos e raros, capazes de reconstruir os piores momentos de uma existência com a sabedoria de quem não perdeu a referencia humanista nem o olhar ético.
O resto é insegurança, temor.
Vale a pena, por isso mesmo, registrar a biografia de quem, em 2002, aprovou o Código Civil, adormecido por quase 30 anos no Congresso, onde se encontram os dois artigos que colocaram, na forma da lei, o jogo bruto da autorização prévia.
Não vou fazer nenhuma dedução indevida nem quero insinuar coisa alguma. Mas se você examinar a linha de comando da decisão, antes e depois da votação no Congresso, irá encontrar nomes que, na época, tinham todo interesse em proteger a própria privacidade.
Em 2002, último ano de seu mandato, Fernando Henrique Cardoso, que sancionou a lei em vez de vetar os dois artigos, ainda era alvo de rumores – desmentidos por DNA, muitos anos depois – de que possuía um filho fora do casamento.
A votação do Código Civil foi conduzida por Aécio Neves, então presidente da Câmara de Deputados, político que sempre foi capaz de manter a curiosidade de jornalistas longe de sua vida pessoal.
Na década de 1970, o avô de Aécio, o deputado Tancredo Neves, foi o político que levou, ao congresso, o jurista que introduziu o debate sobre privacidade no Código Civil. Elaborados na fase inicial dos debates, os dois artigos se mantiveram intactos até o final. O país inteiro soube, após a morte de Tancredo, que sua vida em Brasília seria um banquete para revistas de fofocas.
Quem tinha idade para ler jornais três décadas atrás recorda-se que o serviço secreto do regime militar tinha um apetite especial para desmoralizar adversários pela divulgação de fatos da vida privada.
Um bispo ligado a Teologia da Libertação foi fotografado com uma companhia feminina num cinema do Rio de Janeiro.
Um deputado de oposição foi flagrado num motel de estrada em companhia da mulher de um de seus amigos – do mesmo partido.
As duas informações eram verdadeiras mas o debate sobre privacidade leva a essas perguntas difíceis. O fato de serem verdadeiras poderia justificar que se tornassem públicas?
Ao longo dos anos os dois artigos se mantiveram por uma década no Código Civil, sem que ninguém se mostrasse incomodado com eles.
Se houve alguma mudança, foi no grau de promiscuidade da indústria cultural, que piorou bastante.
Se a sociedade tornou-se infinitamente mais tolerante nos costumes, os meios de comunicação evoluíram no mesmo grau em matéria de ousadia e agressividade. A atração pelos aspectos privados de uma existência tornou-se compensadora comercialmente, em função de grandes índices de audiência e leitura – como se verifica em tantos livros de história, bons ou ruins, com obrigatórios capítulos Caras e/ou Contigo!
Partindo de um ponto de vista conveniente para a causa da indústria, um número crescente de advogados, autores e mesmo políticos alega que uma personalidade pública não tem direito a privacidade. É um argumento bom para o mercado de celebridades. Mas é um absurdo cultural e político.
Nenhuma sociedade democrática pode diminuir os direitos fundamentais de um cidadão – inclusive o direito a privacidade – em função de sua condição social. Direitos humanos são universais ou são privilégios desumanos.
A Constituição garante a liberdade de expressão em termos absolutos e também protege a imagem e a privacidade de todos.
Não diz que o cidadão cuja vida pode virar um best-seller tem menos direitos do que os demais.
Além disso não há nenhum critério científico para se definir de forma precisa o que é uma “personalidade pública” e o que é um “cidadão privado.” Basta fazer uma ponta numa novela para ser personalidade publica? Ou a certidão de “personalidade pública” só vale para quem é político, ou fez o papel principal?
A pessoa que namora uma celebridade também é pessoa pública?
E a amante?
E o filho fora do casamento?
Quem vai ser exposto numa fraqueza como, por exemplo, ser dependente de álcool ou outro tipo de drogas?
Quem terá amigos influentes junto ao autor para garantir que será poupado? O editor nunca fará nada, irá resistir igualmente a todas as pressões e pedidos?
Você acha que a mão pesada que seleciona a divulgação momentos escabrosos da existência humana não tem amizades nem preferências?
Vivemos num país onde a liberdade de imprensa eliminou até o direito de resposta. Vamos mandar as vítimas de maus biógrafos bater às portas da Justiça com seus prazos proporcionais aos honorários dos advogados? Estamos falando a verdade ou queremos enganar?
Este é o debate real.
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