Foto: Simon Dawson, Bloomberg |
Frio e neve nos Alpes Suíços, sol e calor no Caribe. Bastaria o clima para opor os dois cenários, mas é na política que residem as diferenças marcantes às quais Dilma Rousseff se entregará no fim do mês. Pela primeira vez desde que assumiu, ela participará em Davos, na Suíça, da reunião anual do Fórum Econômico Mundial, reduto de banqueiros, empresários graúdos, neoliberais e endinheirados. Na volta para casa, terá uma escala em Cuba, sede da II Cúpula da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), anfitrião e organismo a simbolizar o avesso de Davos. Uma vela presidencial para o diabo, outra para o santo, o leitor escolhe quem merece qual.
A ida de Dilma ao Fórum, que se reúne de 22 a 25 de janeiro, foi planejada para defender o governo e o Brasil em um ano singular, de eleições e Copa por aqui. Graças à máquina de propaganda do sistema financeiro internacional, que se rebelou contra a queda dos lucros financeiros patrocinada por Dilma, o Brasil perdeu o status de “queridinho”. Passou a ser visto com pessimismo e mau humor, sentimentos a contagiar setores no País. Em cadeia de rádio e tevê no Natal, a presidenta falou em “guerra psicológica”. Em Davos, tentará mostrar que o Brasil vai bem, tem futuro, apresenta oportunidades de negócios e conta com investimentos estrangeiros. Dará o recado, por exemplo, a dezenas de empresários com os quais quer se encontrar a portas fechadas.
Dilma participará do Fórum nos dias 23 e 24. No primeiro deles, a programação organizou um painel que oferece uma tribuna apropriada aos propósitos presidenciais. Haverá uma mesa-redonda sobre os Brics, pois os ideólogos do Fórum veem sinais de exaustão do modelo de desenvolvimento de China, Brasil, Rússia e Índia. O repasse de obras e bens públicos ao setor privado no fim de 2013 marca uma inflexão no modelo brasileiro. Depois de anos impulsionado pelo consumo popular, o Produto Interno Bruto (PIB) será puxado daqui para a frente, segundo a equipe econômica, pelos investimentos.
Outro fantasma que a ida de Dilma a Davos ajudará a enfrentar é o da desconfiança do “mercado” sobre a capacidade de o Brasil pagar o que deve aos rentistas. A consequência dessa desconfiança pode ser o rebaixamento da nota brasileira pelas agências internacionais que classificam os países e, com tal carimbo, influenciam o capital estrangeiro. O rebaixamento é uma hipótese que preocupa o governo, mas é considerada improvável. Nas análises da equipe econômica, em 2014 o Brasil vai acelerar um pouco o crescimento, voltar a colher certos impostos e abandonar alguns gastos, como a capitalização de bancos estatais. Tudo somado, o peso da dívida no PIB não aumentaria.
A própria divergência entre as agências anima o governo. A troika não se entende. Na segunda-feira 6 de janeiro, a Moody’s disse em relatório que a tendência é manter a nota em 2014. No dia seguinte, a Fitch informava à Agência Estado que poderia até melhorá-la, enquanto a Standard & Poor’s declarava nos EUA que poderia cortá-la.
Há dois meses, a S&P rebaixou a nota da França, decisão que o colunista de CartaCapital Paul Krugman chamou de “ideológica” contra um governo (do Partido Socialista) que não segue a cartilha financeira e liberal. No caso do Brasil, não se pode descartar o caráter ideológico por trás de posições do “mercado”. De fato, diz o economista-chefe da LCA Consultores, Bráulio Borges, há motivos para olhar com cuidado a dívida do País e para criticar certos métodos fiscais do governo. Por isso, é grande a expectativa sobre o corte de gastos a ser anunciado em fevereiro. Se não separar cerca de 2% do PIB para pagar juros da dívida, Brasília se arriscará a rebaixamentos e ataques, pois a predisposição para tanto já existe. “As críticas têm fundamento, mas foram exacerbadas, pois há muito analista com preferência partidária. O ‘mercado’ não gosta de um governo desenvolvimentista, prefere um liberal. Então, há um confronto ideológico”, diz Borges.
Embate que ficará explícito quando Dilma deixar os Alpes. Entre os dias 28 e 29, ela participará de uma reunião de chefes de governo e de Estado da Celac. O organismo congrega todos os países das Américas, exceto Estados Unidos e Canadá. Nasceu em 2010 por iniciativa do então presidente da Venezuela, Hugo Chávez. O palco do encontro será a socialista ilha de Cuba, onde, de quebra, Dilma deverá inaugurar o bilionário Porto de Mariel, construído com 70% de verba brasileira.
A escolha do cenário da reunião é significativa da disposição integradora na América Latina. Em 2012, os líderes das Américas Central, do Sul e do Norte realizaram a VI Cúpula das Américas sem a presença de Cuba, excluída por imposição da Casa Branca. Em reação ao veto, o conclave terminou sem acordo e com alguns países dizendo que só voltam a participar se Cuba estiver também. Um dos documentos preparados para a reunião da Celac condena o embargo econômico dos EUA contra os cubanos, outro defende a Argentina na antiga disputa com a Inglaterra pelas Ilhas Malvinas.
O tema principal da cúpula será a luta contra a fome, a pobreza e as desigualdades. Um assunto em que a América Latina tem o que mostrar. Desde 2002, a pobreza na região caiu de 42% para 27% e a miséria, de 19% para 11%, segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). O resultado só não é melhor por culpa do México, que em PIB e população perde apenas para o Brasil e que tradicionalmente se guia pelos ventos da fronteira norte. De 2006 a 2012, o número de mexicanos pobres subiu de 42% para 51%, voltando praticamente ao mesmo nível visto em 1994, quando começou o acordo de livre-comércio com EUA e Canadá, o Nafta.
Entre diplomatas brasileiros, a cúpula é considerada mais um passo na consolidação da Celac e na transformação do organismo em uma referência cada vez maior na região. Depois de três anos, acredita-se que a Celac conseguiu promover maior cooperação dos países-membros entre si e mais afinidade entre eles em negociações na ONU e com alguns emergentes, como China e Rússia.
No emaranhado de organismos na América Latina, a Celac desponta como o embrião do que um dia pode virar o principal, o equivalente talvez à União Europeia. E, nesse sentido, é uma aposta correta, na avaliação do professor de Relações Internacionais Leonardo Valente, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A Celac é expressão de um mundo multipolar, em que não há um cérebro global (leia-se EUA) a irradiar verdades e caminhos. Para que tal multipolaridade se concretize, diz Valente, é preciso que mesmo a América Latina se una, pois do contrário “não consegue falar de igual para igual com os EUA”, ainda portadores da “visão ultrapassada” de que a região “é sua área de direta influência”.
A Celac é também expressão de unidade latino-americana, algo cada vez mais necessário para o desenvolvimento econômico da região conforme os interesses próprios de seus países e habitantes. “Os EUA estão em via de celebrar um acordo comercial com a União Europeia. A Ásia está em franca integração. A América Latina é a área mais isolada geográfica e economicamente do globo. O caminho do desenvolvimento é o da união”, diz Valente.
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