Por Mônica Mourão, na revista CartaCapital:
Desculpem. Apoiamos o golpe de 1964. Apoiamos o regime instalado a partir dele. Fomos além do acatamento à censura: publicamos matérias e editoriais que deram suporte ideológico aos governos que prenderam, torturaram, mataram e não devolveram os corpos para que fossem velados e enterrados. Desculpem, deixamos que matassem seus filhos e irmãos.
Esse poderia ser o texto do editorial da Folha de S. Paulo e d'O Estado de S. Paulo nos últimos dias 30 e 31 de março. Poderia ser também do jornal O Globo de 31 de agosto de 2013, apenas para ficar como exemplo veículos que fizeram algum mea culpa recentemente por terem apoiado a ditadura militar (1964-1985). O que fizeram, no entanto, não foi um verdadeiro pedido de desculpas ou uma radical revisão do seu posicionamento durante os anos de exceção. Em resposta a uma demanda pública, sem ter como esconder o que tanto foi gritado nas ruas em 2013 (“A verdade é dura! A Rede Globo apoiou a ditadura – ainda apoia!”), resolveram assumir a responsabilidade de forma a minimizá-la.
Os três casos aqui colocados apresentam suas diferenças. A Globo, única citada mais diretamente nas palavras de ordem das manifestações do ano passado, assumiu o que chamou de “erro” ainda em agosto. Já a Folha e o Estadão não pedem desculpa, nem pedem perdão. Aproveitam o cinquentenário do golpe para fazer uma avaliação histórica que justifica sua posição. Em linhas gerais (e deixando de lado aqui as especificidades), lançam um olhar para o passado que coloca o golpe como a única solução possível para salvar o país do caos janguista e amenizam a violência do fim da democracia com a crença corrente em setores da época de que seria uma intervenção breve e cirúrgica. Buscam, assim, afastar-se do período de recrudescimento pós AI-5, a partir de dezembro de 1968, a aproximar-se do clamor das parcelas conservadoras da sociedade civil no pré-64.
E por que então essa necessidade de tomar posição? As mobilizações de 2013 e a capacidade de difusão – via internet – de ideias e contrapontos colocaram os veículos tradicionais numa situação de impossibilidade de calar diante dos argumentos que os contestam. Por outro lado, as respostas não significam uma verdadeira consideração do outro, um colocar-se no lugar dele, ou uma revisitação profunda de posicionamentos políticos de outrora. Até porque tais posicionamentos políticos continuam os mesmos, apenas atualizados pelo jogo democrático. Tais respostas constituem mais uma estratégia de cuidado com a própria imagem. Os trechos que fazem contraponto à ideia de que “não tínhamos como ter outra posição naquele momento” são apenas isso: contrapontos. Contrapontos que visam a “equilibrar” o texto e dar o aspecto de neutralidade, isenção e interesse público em que o jornalismo se autorreferencia.
O tom geral dos textos é o de “erramos, mas precisamos ver o passado com os olhos do passado; não se pode julgar nossa atitude com o conhecimento histórico posterior”. Sim, uma das maiores dificuldades de se analisar o passado é justamente porque compreendê-lo exige mais do que conhecê-lo; exige que se esqueça o que se soube a posteriori. Talvez não fosse mesmo possível prever que o golpe levaria a tenebrosas duas décadas de restrição de liberdade. Mas certamente já se sabia que a derrubada, pela força, de um governo democraticamente eleito não poderia ser a única alternativa possível para o país.
A restrição de liberdade atingiu, inclusive, os veículos de comunicação. Muitos jornalistas que resistiram foram torturados e desapareceram. Mas, hoje, nos olhares da imprensa tradicional para o passado – e no olhar também de parte da historiografia do jornalismo brasileiro –, valoriza-se a censura e se suaviza o colaboracionismo. Quem nunca ouviu as histórias das receitas de bolo e dos poemas de Camões no lugar das matérias censuradas? O que se opta por esquecer é que havia dois tipos de censura. A censura prévia, mais dura, significava que todo o material era passado em revista por censores antes da impressão do material. Apenas sete veículos, de acordo com a historiadora Annie Marie Smith, sofreram essa restrição (entre eles, o alternativo Pasquim; o jornal católico O São Paulo; a Tribuna da Imprensa e – mostrando que a ditadura não era monolítica e havia eventuais rusgas mesmo com apoiadores – O Estado de S. Paulo). A outra, equivocadamente chamada de autocensura, atingiu toda a imprensa, e consistia no acatamento das proibições enviadas pelo regime por telefone ou bilhetinho. Não falamos aqui da responsabilidade de cada jornalista, muitas vezes acossados pelas determinações da chefia e temerosos com a violência sofrida por colegas. Não queremos afirmar que a censura foi suave, até porque se apenas um veículo fosse posto sob censura prévia já seria suficiente para que esse tipo de restrição estivesse no horizonte de possibilidades de todos os demais. Contudo, é preciso avaliar com cuidado o quanto de combatividade e de colaboracionismo (ou, pelo menos, falta de enfrentamento) permeou nossa imprensa durante os anos de chumbo.
Um exercício simples, porém significativo, para que se entenda a postura dos veículos conservadores no Brasil de ontem e de hoje é observar quais sobreviveram ao regima militar. Os grandes jornais que, desde o início ou logo após o golpe, foram críticos à ditadura não chegaram aos dias atuais, como Última Hora e Correio da Manhã. A imprensa alternativa também não sobreviveu à redemocratização. As razões para os processos históricos nunca são simples, mas é inegável que foi estratégico para a ditadura sufocar seus opositores mais ferrenhos – inclusive com estratégias de estrangulamento econômico, em oposição à ajuda financeira para os aliados – antes de realizar a abertura política.
A imprensa conservadora que existe hoje no Brasil é, sem dúvida, um dos entulhos da ditadura, assim como se identifica facilmente na polícia militar uma continuidade desse regime. O pedido de desculpas honesto, verdadeiro, que assuma a culpa por criar um ambiente de medo que deu legitimidade ao golpe, por circular ideias que levaram à condenação sem julgamento, à tortura e à morte de brasileiras e brasileiros cujo único crime foi discordar da ideologia reacionária, não veio no aniversário de cinquenta anos. O melhor pedido de desculpas – uma cobertura que desconfie da “paz” imposta aos moradores das favelas “pacificadas” no Rio de Janeiro, que dê voz a manifestantes que denunciam a violência policial, que mostre a diversidade humana com respeito – ainda não conseguiu subir no bonde da história.
* Mônica Mourão é pesquisadora e integrante do Intervozes.
Desculpem. Apoiamos o golpe de 1964. Apoiamos o regime instalado a partir dele. Fomos além do acatamento à censura: publicamos matérias e editoriais que deram suporte ideológico aos governos que prenderam, torturaram, mataram e não devolveram os corpos para que fossem velados e enterrados. Desculpem, deixamos que matassem seus filhos e irmãos.
Esse poderia ser o texto do editorial da Folha de S. Paulo e d'O Estado de S. Paulo nos últimos dias 30 e 31 de março. Poderia ser também do jornal O Globo de 31 de agosto de 2013, apenas para ficar como exemplo veículos que fizeram algum mea culpa recentemente por terem apoiado a ditadura militar (1964-1985). O que fizeram, no entanto, não foi um verdadeiro pedido de desculpas ou uma radical revisão do seu posicionamento durante os anos de exceção. Em resposta a uma demanda pública, sem ter como esconder o que tanto foi gritado nas ruas em 2013 (“A verdade é dura! A Rede Globo apoiou a ditadura – ainda apoia!”), resolveram assumir a responsabilidade de forma a minimizá-la.
Os três casos aqui colocados apresentam suas diferenças. A Globo, única citada mais diretamente nas palavras de ordem das manifestações do ano passado, assumiu o que chamou de “erro” ainda em agosto. Já a Folha e o Estadão não pedem desculpa, nem pedem perdão. Aproveitam o cinquentenário do golpe para fazer uma avaliação histórica que justifica sua posição. Em linhas gerais (e deixando de lado aqui as especificidades), lançam um olhar para o passado que coloca o golpe como a única solução possível para salvar o país do caos janguista e amenizam a violência do fim da democracia com a crença corrente em setores da época de que seria uma intervenção breve e cirúrgica. Buscam, assim, afastar-se do período de recrudescimento pós AI-5, a partir de dezembro de 1968, a aproximar-se do clamor das parcelas conservadoras da sociedade civil no pré-64.
E por que então essa necessidade de tomar posição? As mobilizações de 2013 e a capacidade de difusão – via internet – de ideias e contrapontos colocaram os veículos tradicionais numa situação de impossibilidade de calar diante dos argumentos que os contestam. Por outro lado, as respostas não significam uma verdadeira consideração do outro, um colocar-se no lugar dele, ou uma revisitação profunda de posicionamentos políticos de outrora. Até porque tais posicionamentos políticos continuam os mesmos, apenas atualizados pelo jogo democrático. Tais respostas constituem mais uma estratégia de cuidado com a própria imagem. Os trechos que fazem contraponto à ideia de que “não tínhamos como ter outra posição naquele momento” são apenas isso: contrapontos. Contrapontos que visam a “equilibrar” o texto e dar o aspecto de neutralidade, isenção e interesse público em que o jornalismo se autorreferencia.
O tom geral dos textos é o de “erramos, mas precisamos ver o passado com os olhos do passado; não se pode julgar nossa atitude com o conhecimento histórico posterior”. Sim, uma das maiores dificuldades de se analisar o passado é justamente porque compreendê-lo exige mais do que conhecê-lo; exige que se esqueça o que se soube a posteriori. Talvez não fosse mesmo possível prever que o golpe levaria a tenebrosas duas décadas de restrição de liberdade. Mas certamente já se sabia que a derrubada, pela força, de um governo democraticamente eleito não poderia ser a única alternativa possível para o país.
A restrição de liberdade atingiu, inclusive, os veículos de comunicação. Muitos jornalistas que resistiram foram torturados e desapareceram. Mas, hoje, nos olhares da imprensa tradicional para o passado – e no olhar também de parte da historiografia do jornalismo brasileiro –, valoriza-se a censura e se suaviza o colaboracionismo. Quem nunca ouviu as histórias das receitas de bolo e dos poemas de Camões no lugar das matérias censuradas? O que se opta por esquecer é que havia dois tipos de censura. A censura prévia, mais dura, significava que todo o material era passado em revista por censores antes da impressão do material. Apenas sete veículos, de acordo com a historiadora Annie Marie Smith, sofreram essa restrição (entre eles, o alternativo Pasquim; o jornal católico O São Paulo; a Tribuna da Imprensa e – mostrando que a ditadura não era monolítica e havia eventuais rusgas mesmo com apoiadores – O Estado de S. Paulo). A outra, equivocadamente chamada de autocensura, atingiu toda a imprensa, e consistia no acatamento das proibições enviadas pelo regime por telefone ou bilhetinho. Não falamos aqui da responsabilidade de cada jornalista, muitas vezes acossados pelas determinações da chefia e temerosos com a violência sofrida por colegas. Não queremos afirmar que a censura foi suave, até porque se apenas um veículo fosse posto sob censura prévia já seria suficiente para que esse tipo de restrição estivesse no horizonte de possibilidades de todos os demais. Contudo, é preciso avaliar com cuidado o quanto de combatividade e de colaboracionismo (ou, pelo menos, falta de enfrentamento) permeou nossa imprensa durante os anos de chumbo.
Um exercício simples, porém significativo, para que se entenda a postura dos veículos conservadores no Brasil de ontem e de hoje é observar quais sobreviveram ao regima militar. Os grandes jornais que, desde o início ou logo após o golpe, foram críticos à ditadura não chegaram aos dias atuais, como Última Hora e Correio da Manhã. A imprensa alternativa também não sobreviveu à redemocratização. As razões para os processos históricos nunca são simples, mas é inegável que foi estratégico para a ditadura sufocar seus opositores mais ferrenhos – inclusive com estratégias de estrangulamento econômico, em oposição à ajuda financeira para os aliados – antes de realizar a abertura política.
A imprensa conservadora que existe hoje no Brasil é, sem dúvida, um dos entulhos da ditadura, assim como se identifica facilmente na polícia militar uma continuidade desse regime. O pedido de desculpas honesto, verdadeiro, que assuma a culpa por criar um ambiente de medo que deu legitimidade ao golpe, por circular ideias que levaram à condenação sem julgamento, à tortura e à morte de brasileiras e brasileiros cujo único crime foi discordar da ideologia reacionária, não veio no aniversário de cinquenta anos. O melhor pedido de desculpas – uma cobertura que desconfie da “paz” imposta aos moradores das favelas “pacificadas” no Rio de Janeiro, que dê voz a manifestantes que denunciam a violência policial, que mostre a diversidade humana com respeito – ainda não conseguiu subir no bonde da história.
* Mônica Mourão é pesquisadora e integrante do Intervozes.
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