Mas esse é um viés do Plano Diretor e tem causado histeria nas redes sociais. Os principais partidos de oposição nas redes (PSDB e PPS) não discutem o tema: simplesmente o interditam. A guerra que travam se dá num ambiente no qual o conteúdo e o cronograma da proposta se tornaram invisíveis. Observemos a estratégia.
Primeiro, acusa-se Haddad de jogar os sem-teto contra os vereadores; de usá-los como massa para aprovar o Plano Diretor. Não são poucos os que usam seus perfis nas redes para exibir sua visão de democracia. “Meu voto vale mais que esses sem tetos” (sic), escreveu um internauta. Gera-se uma confusão tão grande, que a Prefeitura, que elaborou uma proposta – inevitavelmente polêmica – e a submeteu ao debate público, é acusada de tentar “acuar”, “coagir” e “sitiar” a Câmara de Vereadores. Observemos que o Plano Diretor da cidade de São Paulo deveria ter sido revisto em 2006, na gestão de José Serra. Mas, como isso não havia sido feito, a prefeitura o retomou em 2013, com debates nas subprefeituras e, agora, na Câmara.
Mas, partir do momento em que as acusações e distorções passaram a gritar alto, o Plano Diretor parece não importar mais e é tido como ilegítimo. Assim, sem nenhuma discussão ou aprofundamento, aqueles que são contra o que se está propondo induzem um ambiente de desqualificação da proposta.
Paralelamente, a mídia tradicional – que também não explica nada – tenta indispor o prefeito e a Prefeitura com o MTST. Guilherme Boulos só falta ganhar uma capa vermelha, aos moldes do que já foi feito com João Pedro Stedile, na Veja. Ele é o líder que incita os sem-teto contra os acuados vereadores. Boulos também é apontado por Reinaldo Azevedo como “interlocutor” de Dilma e Haddad. Mas Reinaldo sabe que ninguém “controla” o Guilherme Boulos. Sua força é resultado do desprezo da elite patrimonialista, vocalizada por Azevedo, e da mobilização social da qual ele participa.
O terceiro ato é ainda mais patético. Acusa-se a Prefeitura de “incentivar” invasões e de criar uma lei (o Plano Diretor) que iria fazer com que assentamentos se multiplicassem em terrenos privados, induzindo a grande “expropriação”. Essa teoria vem da mesma seara dos que veem no logo da Copa um anúncio subliminar do golpe comunista. Como a política é, sobretudo, uma disputa de narrativas, o que se vê é uma guerra de visões de mundo. É por isso que a elite brasileira defende tanto seu direito (supremo?) a duas propriedades ao menos: ela exige que se mantenha dona de todos os microfones possíveis – e por isso dificulta tanto que se cumpra a constituição federal que preconiza a democratização da comunicação no país – e, por óbvio, quer que seja intocável sua propriedade imobiliária.
Assim, toda essa oposição articulada contra a proposta de revisão do Plano Diretor talvez apareça ao paulistano médio como não-violenta. Na narrativa que tenta se impor, o que figura como violência é a ação dos sem-teto que, para se fazerem ver e ouvir, incomodam muito e acampam na frente da Câmara para defender a cidade como direito de todos e a moradia como um princípio democrático. Mas, o que se vende é que sua forma de protesto é uma tentativa autoritária de ameaçar e subjugar o trabalho do legislativo. Para os que não querem que pobres morem em bairros diferenciados, violência é quando um Estado “ineficiente” e “incapaz” tenta regulamentar o uso da cidade, impondo limites construtivos e desapropriando terrenos particulares para destinar à habitação.
Nessa guerra de narrativas, a tradicional classe média paulistana se impõe como um problema político. Como ela não é a grande agente do capital, nem tem a capacidade de organização dos trabalhadores e, além disso, não hegemoniza o poder político, ela se coloca nessa disputa com outras armas. A classe média se junta a quem efetivamente tem grana em São Paulo e, juntos, detêm a hegemonia do que é dito pela imprensa - que compartilha e potencializa essa visão conservadora de classe média que se pretende elite e, por isso, tem medo de empobrecer financeira e simbolicamente – e fazem do ideal da ordem e da assepsia urbana seus principais motes no frágil debate do Plano Diretor.
Essa articulação contra a proposta da prefeitura expõe os conflitos em torno da redefinição do que será a cidade nos próximos cinquenta anos. É isso que está em disputa. Afinal, qual é a São Paulo que se quer? A dos carros enfileirados ou da mobilidade mais rápida entre a casa e o trabalho? A da segregação que define os espaços do luxo e os da pobreza, ou a cidade do convívio democrático nos parques, na vizinhança e no shopping center?
O Plano Diretor, para uns, seria uma ameaça à sua condição socioeconômica. Para outros, é a condição de assumir a cidade como sua. Embora as perguntas acima sugiram isso, não achemos que a proposta de Plano Diretor separa os bons dos maus. O problema do momento é que o debate em torno da proposta não está acontecendo, simplesmente porque diariamente é construída uma barreira que impede que o debate se dê em termos plenos. Assim, os cinzas entre o branco e o preto não aparecem e não conseguimos encontrar os necessários pontos de equilíbrio. E daí surgem as demonizações.
O mais grave, porém, é o fato de que os que preferem que a cidade caminhe no seu elitismo dos automóveis, luxos privados e mansões muradas, recusam a democratização dos espaços de moradia e de convivência e apelam à violência. Estes, não acampam em frente à câmara, mas sitiam a possibilidade de São Paulo ter uma nova cara. E a estratégia é evidente. Considerando que impor limites à desigualdade é uma função do Estado e essa elite não tem força de organização social, o único meio de ir contra o inferno da participação social é recorrer à violência e criminalizar a política e os movimentos por moradia. Se der certo suas pretensões, a estratégia se repetirá em outros projetos do poder executivo. Já, se for aprovada proposta de novo Plano Diretor, a questão já estará criminalizada, pronta para a judicialização, retirando despudoradamente do Estado seu dever de regular o espaço na cidade.
* Glauber Piva é sociólogo e consultor em comunicação e cultura. Foi diretor da Agência Nacional do Cinema (Ancine) entre 2009 e 2013.
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