Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Vinte anos antes de Marcelo Odebrecht ser conduzido à carceragem da Polícia Federal em Curitiba, onde é mantido há sete meses em regime de prisão preventiva, Fernando Henrique Cardoso alinhavou suas opiniões a respeito de seu pai, Emílio Odebrecht, que hoje é presidente do Conselho de Administração da empresa.
As palavras estão registradas no Diário da Presidência, cujo primeiro volume está disponível nas livrarias. Na época, Emílio exercia, no organograma das empresas, as funções e responsabilidades que foram assumidas por seu filho, diretor-presidente no momento da prisão.
Em 1995 e 1996, período coberto pelo primeiro volume, o grupo Odebrecht estava com a imagem lanhada pelas descobertas da CPI dos Anões do Orçamento, onde chegou a ser apontado como uma espécie de cérebro das ações de rapinagem das verbas do Estado. Em várias passagens, Fernando Henrique assume outra visão de Emílio Odebrecht e não economiza referências elogiosas. Chega a mostrar-se inconformado com a visão negativa que perseguia o empresário. Também se mostra empolgado com a possibilidade de a empreiteira sair-se bem numa disputa internacional. Chega a dizer: "parece que vamos ganhar."
FHC ainda relata a participação de Emílio Odebrecht numa missão acessível apenas a quem tinha acesso fácil a seu gabinete: encaminhar um projeto de "organização do capitalismo brasileiro" com auxílio de recursos públicos a serem fornecidos pelo hoje tão mal falado BNDES.
Para quem tem interesse em entender a complexidade das relações entre empresários e governantes no país, determinados trechos têm uma utilidade óbvia. Na página 563, o presidente relata um jantar em companhia do ministro Luiz Felipe Lampréia, das Relações Exteriores. Comenta a notícia de que a Odebrecht está em vias de vencer uma concorrência internacional:
"(...) Ele (Lampréia) falou de sua viagem, parece que vamos ganhar a construção de uma geradora de energia na Malásia, isso é muito importante. Lampréia me disse que a Odebrecht tem tido um desempenho associado aos mexicanos e a Brown Boveri, que é de suiços, enfim, se ganhamos é uma coisa importante para o Brasil penetrar na Asia."
Dezoito páginas adiante, FHC volta à empreiteira e a Emílio Odebrecht. Repetindo uma observação que fizera numa passagem anterior, o então presidente da República avalia:
(...) Curioso. A firma Odebrecht ficou tão marcada pela CPI dos Anões do Orçamento, com o negócio da corrupção (o grifo é meu), e no entanto Emílio é um dos homens mais competentes do Brasil, em termos empresariais."
Essa visão de competência permitiu que o Odebrecht amigo de FHC fosse chamado a participar de um projeto ambicioso de mudança estrutural do setor privado brasileiro:
"Ele veio discutir comigo uma espécie de radiografia dos grupos empresariais brasileiros. Eu queria conversar sobre isso com ele, acho que temos que organizar o capitalismo brasileiro e o BNDES é o grande instrumento para isso."
Depois de descrever observações de Emílio Odebrecht a respeito de grupos empresariais de que poderiam ser incluídos nessa "organização do capitalismo", o presidente conclui:
"Temos de ter uma ideia mais clara de quais vão ser os esteios dessa nova fase do Brasil,"escreve FHC, que dois anos antes, no discurso de posse, anunciara o fim da Era Vargas.
"E o Emílio deu informações preciosas."
Na página 838, em visita a Luanda, Angola, Fernando Henrique relata uma "festa simpática com os brasileiros que vivem no país". Eles participam de uma obra que foi um marco nos investimentos internacionais da Odebrecht: a construção da usina de Capanda, iniciada em 1984, concluída em 2007, numa sociedade entre a empreiteira brasileira e uma empresa russa. Foi o primeiro investimento da Odebrecht na África.
Na página 862, Emílio Odebrecht faz a última aparição registrada pelo livro. Procura Fernando Henrique para "trazer uma proposta muito interessante de utilização da base aérea de Alcantara. Sobre isso tenho de que falar com o brigadeiro Lobo (ministro da Aeronáutica) mais adiante, é um acordo com a Boeing."
Qual a conclusão que se pode tirar daí?
Não acho que as palavras generosas de FHC em relação ao principal dirigente da Odebrecht durante seu governo possuam qualquer conteúdo suspeito. Nenhum.
Apenas demonstram, na intimidade, uma situação que, em 2016, é tratada em tom de escândalo -- quando envolvem a mesma empresa, os mesmos interesses, mas outro presidente.
A comparação é útil do ponto de vista da educação política, portanto.
Toda vez que se denuncia a seletividade de investigações judiciais que envolvem alvos políticos, é comum ouvir uma observação sob encomenda: um segundo erro não justifica o primeiro, diz-se.
É verdade - como ensinava dona Nair, minha professora do primeiro ano primário.
O problema é que o estudo da seletividade é o único recurso para se compreender o real significado de uma investigação que possui consequências políticas óbvias. Um erro não justifica o outro mas ajuda a entender o que se passa no país real.
Ajuda a entender o que importa do ponto de vista da democracia e do Estado Democrático de Direitos: fatos idênticos podem receber um tratamento diverso, conforme o político a ser acusado.
Aquilo que é natural para uns, torna-se criminoso para outros. O "vamos ganhar" de Fernando Henrique, referindo-se a uma concorrência internacional, parece normal - e é - em se tratando de um presidente do Brasil, falando de uma empresa brasileira. Mas o esforço de Lula para ampliar os mercados internacionais?
Um caso não desperta interesse nem é investigado. No outro, faz-se um escândalo que, na hipótese mais benigna, destina-se a eliminar uma liderança indesejada da vida pública.
É o que se aprende pela leitura combinada dos jornais do dia e do primeiro volume dos Diários da Presidência, de Fernando Henrique Cardoso.
Vinte anos antes de Marcelo Odebrecht ser conduzido à carceragem da Polícia Federal em Curitiba, onde é mantido há sete meses em regime de prisão preventiva, Fernando Henrique Cardoso alinhavou suas opiniões a respeito de seu pai, Emílio Odebrecht, que hoje é presidente do Conselho de Administração da empresa.
As palavras estão registradas no Diário da Presidência, cujo primeiro volume está disponível nas livrarias. Na época, Emílio exercia, no organograma das empresas, as funções e responsabilidades que foram assumidas por seu filho, diretor-presidente no momento da prisão.
Em 1995 e 1996, período coberto pelo primeiro volume, o grupo Odebrecht estava com a imagem lanhada pelas descobertas da CPI dos Anões do Orçamento, onde chegou a ser apontado como uma espécie de cérebro das ações de rapinagem das verbas do Estado. Em várias passagens, Fernando Henrique assume outra visão de Emílio Odebrecht e não economiza referências elogiosas. Chega a mostrar-se inconformado com a visão negativa que perseguia o empresário. Também se mostra empolgado com a possibilidade de a empreiteira sair-se bem numa disputa internacional. Chega a dizer: "parece que vamos ganhar."
FHC ainda relata a participação de Emílio Odebrecht numa missão acessível apenas a quem tinha acesso fácil a seu gabinete: encaminhar um projeto de "organização do capitalismo brasileiro" com auxílio de recursos públicos a serem fornecidos pelo hoje tão mal falado BNDES.
Para quem tem interesse em entender a complexidade das relações entre empresários e governantes no país, determinados trechos têm uma utilidade óbvia. Na página 563, o presidente relata um jantar em companhia do ministro Luiz Felipe Lampréia, das Relações Exteriores. Comenta a notícia de que a Odebrecht está em vias de vencer uma concorrência internacional:
"(...) Ele (Lampréia) falou de sua viagem, parece que vamos ganhar a construção de uma geradora de energia na Malásia, isso é muito importante. Lampréia me disse que a Odebrecht tem tido um desempenho associado aos mexicanos e a Brown Boveri, que é de suiços, enfim, se ganhamos é uma coisa importante para o Brasil penetrar na Asia."
Dezoito páginas adiante, FHC volta à empreiteira e a Emílio Odebrecht. Repetindo uma observação que fizera numa passagem anterior, o então presidente da República avalia:
(...) Curioso. A firma Odebrecht ficou tão marcada pela CPI dos Anões do Orçamento, com o negócio da corrupção (o grifo é meu), e no entanto Emílio é um dos homens mais competentes do Brasil, em termos empresariais."
Essa visão de competência permitiu que o Odebrecht amigo de FHC fosse chamado a participar de um projeto ambicioso de mudança estrutural do setor privado brasileiro:
"Ele veio discutir comigo uma espécie de radiografia dos grupos empresariais brasileiros. Eu queria conversar sobre isso com ele, acho que temos que organizar o capitalismo brasileiro e o BNDES é o grande instrumento para isso."
Depois de descrever observações de Emílio Odebrecht a respeito de grupos empresariais de que poderiam ser incluídos nessa "organização do capitalismo", o presidente conclui:
"Temos de ter uma ideia mais clara de quais vão ser os esteios dessa nova fase do Brasil,"escreve FHC, que dois anos antes, no discurso de posse, anunciara o fim da Era Vargas.
"E o Emílio deu informações preciosas."
Na página 838, em visita a Luanda, Angola, Fernando Henrique relata uma "festa simpática com os brasileiros que vivem no país". Eles participam de uma obra que foi um marco nos investimentos internacionais da Odebrecht: a construção da usina de Capanda, iniciada em 1984, concluída em 2007, numa sociedade entre a empreiteira brasileira e uma empresa russa. Foi o primeiro investimento da Odebrecht na África.
Na página 862, Emílio Odebrecht faz a última aparição registrada pelo livro. Procura Fernando Henrique para "trazer uma proposta muito interessante de utilização da base aérea de Alcantara. Sobre isso tenho de que falar com o brigadeiro Lobo (ministro da Aeronáutica) mais adiante, é um acordo com a Boeing."
Qual a conclusão que se pode tirar daí?
Não acho que as palavras generosas de FHC em relação ao principal dirigente da Odebrecht durante seu governo possuam qualquer conteúdo suspeito. Nenhum.
Apenas demonstram, na intimidade, uma situação que, em 2016, é tratada em tom de escândalo -- quando envolvem a mesma empresa, os mesmos interesses, mas outro presidente.
A comparação é útil do ponto de vista da educação política, portanto.
Toda vez que se denuncia a seletividade de investigações judiciais que envolvem alvos políticos, é comum ouvir uma observação sob encomenda: um segundo erro não justifica o primeiro, diz-se.
É verdade - como ensinava dona Nair, minha professora do primeiro ano primário.
O problema é que o estudo da seletividade é o único recurso para se compreender o real significado de uma investigação que possui consequências políticas óbvias. Um erro não justifica o outro mas ajuda a entender o que se passa no país real.
Ajuda a entender o que importa do ponto de vista da democracia e do Estado Democrático de Direitos: fatos idênticos podem receber um tratamento diverso, conforme o político a ser acusado.
Aquilo que é natural para uns, torna-se criminoso para outros. O "vamos ganhar" de Fernando Henrique, referindo-se a uma concorrência internacional, parece normal - e é - em se tratando de um presidente do Brasil, falando de uma empresa brasileira. Mas o esforço de Lula para ampliar os mercados internacionais?
Um caso não desperta interesse nem é investigado. No outro, faz-se um escândalo que, na hipótese mais benigna, destina-se a eliminar uma liderança indesejada da vida pública.
É o que se aprende pela leitura combinada dos jornais do dia e do primeiro volume dos Diários da Presidência, de Fernando Henrique Cardoso.
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