Por Tarso Genro, no site Sul-21:
Luhmann, ao estudar o funcionamento da democracia nas sociedades complexas, opta pela recusa de novas formas de participação democrática na gestão pública, porque, sendo característico destas sociedades certo distanciamento entre o “poder social” e o “poder político”, a introdução de mais interessados na “produção de decisões” –sustenta– acaba por bloquear o funcionamento do Estado e assim esvaziar a legitimidade do sistema político. Vejam a ironia: hoje, o esvaziamento das funções públicas do Estado vem precisamente da ausência de “poder social” sobre o Estado e da fraqueza, deste, perante a força normativa do capital financeiro, que subjuga a legalidade do Estado e subordina-o aos seus ajustes universais.
O fato de um Chefe de Executivo buscar assessoramento em estruturas coletivas e plurais, para tomar suas decisões vem, precisamente, do reconhecimento desta complexidade. Ela não é desculpa para tornar o Estado ainda mais autoritário e separado da ação política que verte na sociedade. Ali, no “espaço público não estatal” de um Conselho desta natureza, as demandas das corporações, das representações de classe, da academia – venha de onde vieram – são contrastadas abertamente e, se legitimadas, o são na cena pública, não nos escaninhos reservados da burocracia estatal.
Depois que a Fundação Getúlio Vargas publicou um estudo revelador sobre a interferência do Conselhão no período Lula, que adotou em torno de 65% das suas indicações consensuais, tive a ingênua esperança que se ele retornasse, no Governo da Presidenta Dilma, seria melhor compreendido e acolhido pela nossa imprensa tradicional. Em momentos de crise política, pensei eu, organismos desta natureza podem compor algumas bases de consenso para, no mínimo, fazer o país funcionar melhor e transitar, até as próximas eleições, de forma mais estável. Ledo engano.
Como fui, por mandato do Presidente Lula, organizador e depois gestor político do Conselhão por largo tempo, posso depor sem margem de erro que o nosso Conselhão tem inspiração nas experiências similares da Espanha, Portugal e França, guardadas as nossas peculiaridades políticas. E que ele carrega, por outro lado, avanços importantes, sobre os quais a nossa democracia tem escassa experiência: a responsabilidade política do Presidente, que deve participar ativamente das suas plenárias, de um lado, e, de outro, uma metodologia de funcionamento que o orienta para que ele se incline em busca de “consensos”.
Um Conselhão, portanto, não é um lugar apropriado para discussões doutrinárias -que de resto podem ser feitas sem problema, mas com pouca eficácia- sobre as estratégias políticas dos partidos, das classes ou setores de classe. É um espaço de concertação política para a produção de políticas públicas de interesse universal, que reforcem a democracia social, gerem emprego e renda. Quem acha que isso não é possível no capitalismo, tal qual ele está constituído hoje, tem um bom espaço no Conselhão para, por exemplo, discutir as funções do Banco Central, que normalmente é o centro de articulação das políticas recessivas e dos ajustes conservadores.
A metodologia da produção de consensos, dentro da democracia, ao contrário do que pensam alguns teóricos do esquerdismo, não só não ignora a existência da luta de classes, mas parte do seu reconhecimento, para que ele, consenso, possa ser institucionalizado em determinados temas. Por quê? Porque o consenso é, precisamente, a busca, em temas possíveis, da supressão das diferenças nos interesses de classe, para obter um acordo mínimo, útil para as partes em conflito, cujas diferenças de fundo vão ser resolvidas no terreno das eleições, dos dissídios coletivos, dos acordos coletivos de trabalho ou na negociação e medição de forças dos movimentos sociais com o Estado ou com quem de direito.
Por exemplo: no nosso Conselhão, aqui no Estado, foi possível obter um consenso entre agronegócio, agricultura familiar, Via Campesina e MST, sobre a necessidade de um Projeto de irrigação que atingisse todo o campo gaúcho, para aumentar a sua renda e produtividade, pois isso seria de interesse de todo o povo. Principalmente das médias pequenas cidades do interior, pautadas na sua economia predominantemente pelas atividades agrícolas. A partir desse acordo, em quatro anos, a área irrigada foi duplicada no Estado. Já em relação aos mecanismos permanentes de revisão do Salário Mínimo Regional, esse consenso não foi possível, o que obrigou o Governo a arbitrar, em cada ano, as suas correções, de acordo com aquilo que entendia ser melhor para o desenvolvimento econômico e social do Estado.
Está sendo noticiado que o setor industrial de máquinas e equipamentos está solicitando, no Conselhão Nacional, consenso para obter subsídios visando retomar e ampliar a produção de máquinas e equipamentos no país, para que se encete um vasto programa de “reindustrialização”. Uma reivindicação empresarial que eu, se integrasse aquele organismo, defenderia com unhas e dentes. E o faria porque uma sinalização desta natureza implicaria numa mudança de rumo do Governo atual, que pouco se moveu para enfrentar a crise mundial, contrapondo-se às políticas recessivas, vigentes até agora, que tem combinado cortes nos investimentos, redução da oferta de emprego e retomada da inflação.
Um aspecto, porém, deve ser registrado, em relação às boas possibilidades de funcionamento de um Conselho desta natureza: a sua eficácia depende do compromisso político do Chefe de Governo, em ouvir, analisar e processar as suas propostas. Este Chefe do Governo deve enquadrar, a partir disso, os seus Ministros e Secretários, conforme o caso, nos compromissos assumidos perante aquele órgão. Ele é um órgão colegiado de consultoria e assessoramento do Presidente ou de Governadores, que produz propostas para que a chefia do Executivo as encaminhe à estrutura do Executivo ou ao Poder Legislativo, conforme matéria debatida. Sem esse compromisso, não é um Conselhão que não funciona. É o próprio Governo. Qualquer Governo.
* Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
Luhmann, ao estudar o funcionamento da democracia nas sociedades complexas, opta pela recusa de novas formas de participação democrática na gestão pública, porque, sendo característico destas sociedades certo distanciamento entre o “poder social” e o “poder político”, a introdução de mais interessados na “produção de decisões” –sustenta– acaba por bloquear o funcionamento do Estado e assim esvaziar a legitimidade do sistema político. Vejam a ironia: hoje, o esvaziamento das funções públicas do Estado vem precisamente da ausência de “poder social” sobre o Estado e da fraqueza, deste, perante a força normativa do capital financeiro, que subjuga a legalidade do Estado e subordina-o aos seus ajustes universais.
O fato de um Chefe de Executivo buscar assessoramento em estruturas coletivas e plurais, para tomar suas decisões vem, precisamente, do reconhecimento desta complexidade. Ela não é desculpa para tornar o Estado ainda mais autoritário e separado da ação política que verte na sociedade. Ali, no “espaço público não estatal” de um Conselho desta natureza, as demandas das corporações, das representações de classe, da academia – venha de onde vieram – são contrastadas abertamente e, se legitimadas, o são na cena pública, não nos escaninhos reservados da burocracia estatal.
Depois que a Fundação Getúlio Vargas publicou um estudo revelador sobre a interferência do Conselhão no período Lula, que adotou em torno de 65% das suas indicações consensuais, tive a ingênua esperança que se ele retornasse, no Governo da Presidenta Dilma, seria melhor compreendido e acolhido pela nossa imprensa tradicional. Em momentos de crise política, pensei eu, organismos desta natureza podem compor algumas bases de consenso para, no mínimo, fazer o país funcionar melhor e transitar, até as próximas eleições, de forma mais estável. Ledo engano.
Como fui, por mandato do Presidente Lula, organizador e depois gestor político do Conselhão por largo tempo, posso depor sem margem de erro que o nosso Conselhão tem inspiração nas experiências similares da Espanha, Portugal e França, guardadas as nossas peculiaridades políticas. E que ele carrega, por outro lado, avanços importantes, sobre os quais a nossa democracia tem escassa experiência: a responsabilidade política do Presidente, que deve participar ativamente das suas plenárias, de um lado, e, de outro, uma metodologia de funcionamento que o orienta para que ele se incline em busca de “consensos”.
Um Conselhão, portanto, não é um lugar apropriado para discussões doutrinárias -que de resto podem ser feitas sem problema, mas com pouca eficácia- sobre as estratégias políticas dos partidos, das classes ou setores de classe. É um espaço de concertação política para a produção de políticas públicas de interesse universal, que reforcem a democracia social, gerem emprego e renda. Quem acha que isso não é possível no capitalismo, tal qual ele está constituído hoje, tem um bom espaço no Conselhão para, por exemplo, discutir as funções do Banco Central, que normalmente é o centro de articulação das políticas recessivas e dos ajustes conservadores.
A metodologia da produção de consensos, dentro da democracia, ao contrário do que pensam alguns teóricos do esquerdismo, não só não ignora a existência da luta de classes, mas parte do seu reconhecimento, para que ele, consenso, possa ser institucionalizado em determinados temas. Por quê? Porque o consenso é, precisamente, a busca, em temas possíveis, da supressão das diferenças nos interesses de classe, para obter um acordo mínimo, útil para as partes em conflito, cujas diferenças de fundo vão ser resolvidas no terreno das eleições, dos dissídios coletivos, dos acordos coletivos de trabalho ou na negociação e medição de forças dos movimentos sociais com o Estado ou com quem de direito.
Por exemplo: no nosso Conselhão, aqui no Estado, foi possível obter um consenso entre agronegócio, agricultura familiar, Via Campesina e MST, sobre a necessidade de um Projeto de irrigação que atingisse todo o campo gaúcho, para aumentar a sua renda e produtividade, pois isso seria de interesse de todo o povo. Principalmente das médias pequenas cidades do interior, pautadas na sua economia predominantemente pelas atividades agrícolas. A partir desse acordo, em quatro anos, a área irrigada foi duplicada no Estado. Já em relação aos mecanismos permanentes de revisão do Salário Mínimo Regional, esse consenso não foi possível, o que obrigou o Governo a arbitrar, em cada ano, as suas correções, de acordo com aquilo que entendia ser melhor para o desenvolvimento econômico e social do Estado.
Está sendo noticiado que o setor industrial de máquinas e equipamentos está solicitando, no Conselhão Nacional, consenso para obter subsídios visando retomar e ampliar a produção de máquinas e equipamentos no país, para que se encete um vasto programa de “reindustrialização”. Uma reivindicação empresarial que eu, se integrasse aquele organismo, defenderia com unhas e dentes. E o faria porque uma sinalização desta natureza implicaria numa mudança de rumo do Governo atual, que pouco se moveu para enfrentar a crise mundial, contrapondo-se às políticas recessivas, vigentes até agora, que tem combinado cortes nos investimentos, redução da oferta de emprego e retomada da inflação.
Um aspecto, porém, deve ser registrado, em relação às boas possibilidades de funcionamento de um Conselho desta natureza: a sua eficácia depende do compromisso político do Chefe de Governo, em ouvir, analisar e processar as suas propostas. Este Chefe do Governo deve enquadrar, a partir disso, os seus Ministros e Secretários, conforme o caso, nos compromissos assumidos perante aquele órgão. Ele é um órgão colegiado de consultoria e assessoramento do Presidente ou de Governadores, que produz propostas para que a chefia do Executivo as encaminhe à estrutura do Executivo ou ao Poder Legislativo, conforme matéria debatida. Sem esse compromisso, não é um Conselhão que não funciona. É o próprio Governo. Qualquer Governo.
* Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
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