Por Saul Leblon, no site Carta Maior:
Da usina de pós-verdades na qual se transformou o noticiário político e econômico salta o aviso de que o senhor Michel Temer se considera o grande credor da obra de Transposição do São Francisco, planejada, viabilizada e realizada desde 2005 pelos governos Lula e Dilma, sob os protestos costumeiros da secessão paulista.
Em uma pauta expressiva destes novos tempos, o jornal Valor (02/03/2018) ouviu de Temer um estupendo exemplar de pós-verdade e o transcreveu sem obtemperar: 'Temer acha que tirou da oposição mais de uma bandeira na área social. Entre elas, talvez a mais significativa, a bandeira da transposição do São Francisco, que Temer empunhou e promete levar até o fim. O presidente quer inaugurar já no dia 9 o eixo Leste da transposição...'
Os bravos escribas não tugiram, nem mugiram.
E assim, sem grunhir, rechearam uma das páginas mais pós-verdadeiras do jornalismo despejado atualmente sobre a sociedade brasileira.
Nela, o senhor Temer descreve a ‘fulminante’ espiral de retomada do crescimento – estamos falando do Brasil! – em uma economia carregada do maior contingente de desempregados da sua história.
Nada. Nenhuma linha de apego ao país real.
Treze milhões de zumbis econômicos (24 milhões, incluídos os que sobrevivem de ‘bicos’) ficaram fora do cardápio de um almoço que os jornalistas classificaram, talvez por isso, como ‘frugal’, descrevendo-o com a atenção minuciosa da qual se dispensaram na arguição do interlocutor.
Assim: ‘com uma agenda leve, pós-carnavalesca, Temer aproveitou para almoçar em sala contígua ao seu gabinete. Uma refeição frugal: salada, frango grelhado, carne, arroz - branco e integral - e feijão. De sobremesa, frutas e um pavê de creme e chocolate, de que se serviu duas vezes, com indisfarçável prazer’ (Valor, 02-03-2017)
Entre colheradas de pavê e descolamento do real, cometeu-se uma página inteira com a descrição desse país de vento em popa, ademais de tão justo que o teor de açúcar do governo chega a rivalizar com o do creme com chocolate.
‘Temer gaba-se de ter concedido 12,5%, além de ter zerado a fila de espera (do Bolsa Família’), continua o jornalismo pós-verdadeiro do Valor, que avança sem constrangimento para o cafezinho: ‘ 500 mil pessoas que estavam na fila puderam ser abrigadas pelo programa no lugar de outras 500 mil que recebiam o benefício indevidamente’. E a suprema confidencialidade que nasce de comensais saciados no ventre e na alma: ‘O presidente surpreende os convidados à mesa contando que foram detectadas pessoas com caminhonetes SUV de cabine dupla...’
Que horror....
Intervalo para engolir – e não é o pavê.
Embriagados com as oportunidades à mesa os profissionais do Valor não cogitaram checar os dados, coisa que até o UOL faria no dia seguinte, com resultados inesperados e nada frugais. (Veja: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/03/02/mesmo-com-crise-bolsa-familia-reduz-485-mil-beneficiarios-em-3-anos.ht)
Ao contrário do informado pelo senhor Temer, a reportagem, esse cacoete pré-pós-verdade, verificou que de 2016 para 2017 o número de inscritos no Bolsa Família sofreu uma redução inédita de quase 409 mil famílias .
Ou seja, cerca de um milhão de pessoas a menos gravitavam em torno do programa em um cenário improvável, observa o próprio UOL, em que o desemprego despeja um recorde histórico de 13 milhões de pessoas na soleira do limbo social.
O conjunto soa ainda mais intrigante diante da explicação oficial para a queda: a ‘purga’ na qual foram detectados ‘donos de caminhonetes SUV’.
‘De cabine dupla’, atalharia Temer.
Será o caso da alagoana Jéssica da Silva, 23, que vive com três filhos menores em uma pequena casa feita com pedaços de madeira e lona, na favela do Dique Estrada, periferia de Maceió?
Jéssica foi ouvida –esse cacoete ...-- pela reportagem do UOL .
O que contou guarda certa disparidade com a versão edulcorada saboreada gulosamente pelo Valor no almocinho frugal da Quarta-feira de Cinza, no Planalto.
‘No começo de 2016’, diz o UOL, ‘a desempregada teve sua então única fonte de renda --o Bolsa Família-- cortada e, hoje, diz passar por dificuldades de sustento’.
Não é a única.
A investigação (epa!) levada a cabo pelo UOL constatou a abrangência preocupante desse drama: ‘Ela é uma das integrantes do 1,1 milhão de famílias que tiveram o benefício suspenso pelo governo federal no ano passado. No mesmo período, outras 700 mil famílias entraram, ainda assim deixando um déficit superior a 400 mil beneficiários...’
É a turma da cabine dupla?
Quem se empanturrou do pavê de loroto açucarada no caso do Bolsa Família poderia redimir-se, ao menos, investigando agora qual é a cota real do senhor Temer na obra do São Francisco, que ele exibe como o caneco de ouro ‘tirado da oposição’.
Com um agravante neste caso
Não se trata apenas de um rapto material.
Os jornalistas do Valor sabem, ou deveriam saber. O ideário por trás da transposição do São Francisco colide com o cardápio de arrocho e demonização do papel indutor do Estado no desenvolvimento, contra o qual se fez o assalto ao poder de Agosto de 2016.
A obra do São Francisco deita raízes longas e profundas na outra margem do rio.
Lá estão as gerações que criaram a Petrobrás, que lutaram pelo seu monopólio, que foram às ruas pela Sudene e a reforma agrária, que brigaram pela soberania, pela industrialização, que resistiram ao golpe de 64, que fizeram as greves de 70/80 pelo salário digno, que elegeram um operário, fizeram a sua sucessora e nunca aceitaram o subdesenvolvimento e a miséria como uma etapa ‘natural’ do desenvolvimento.
Por ser tributária desse gigantesco caudal histórico a obra do São Francisco carrega em seus canais um jorro de identidade que o então Presidente Lula quis demarcar claramente.
Se os bravos jornalistas do Valor pesquisarem um pouco nos arquivos do próprio jornal encontrarão ali um artigo de dezembro de 2004 –‘Um Mestre em Brasil’.
Assinado pelo então Presidente Lula, o verdadeiro capitão da obra agora usurpada, homenageia um sertanejo da gema e intelectual ilustre que havia falecido há menos de um mês, em 20 de novembro.
A homenagem, reproduzida em vários veículos do país, diz que ‘a morte não representa a derradeira etapa na trajetória de um ser humano quando ele deixa ideias que podem inspirar um povo e mover uma nação’ .
Em seguida, o texto fixa um compromisso.
Uma profissão de fé associada à obra do São Francisco, que seria iniciada no ano seguinte.
Assim:
‘ (a transposição) levará água para matar a sede do Nordeste setentrional e irrigará 47 mil hectares de terras férteis, criando milhares de empregos diretos. Não vamos tirar água de quem já tem, mas estender a correnteza solidária desse rio republicano, que une o País úmido ao seco, para beneficiar milhões de vidas ressequidas de pão e cidadania. Serão dois canais, e o maior deles, com cerca de 400 quilômetros, cortará o Sertão com o nome de "Celso Furtado" (...) mais que nunca, somos herdeiros e responsáveis pela retomada de uma construção interrompida, cujo nome é Brasil, e cujo mestre inspirador (foi) Celso Monteiro Furtado’, concluía o artigo.
Qual será o destino desse compromisso histórico agora, num Brasil onde um pavê com chocolate lubrifica a digestão de pós-verdades em bocas adestradas a não mugir, nem tugir?
Leia, a seguir, o texto de Lula na íntegra:
*****
Mestre em Brasil
"A morte não representa a derradeira etapa na trajetória de um ser humano quando ele deixa idéias que podem inspirar um povo e mover uma nação. Esse, creio, é o caso do companheiro, mestre e amigo Celso Furtado. Não há homenagem maior a um intelectual do que reafirmar a atualidade de sua obra e o exemplo de sua postura pública.
Furtado gostava de apresentar-se como um servidor público e isso traduz bem o seu caráter, a sua visão de mundo e as suas escolhas - bem como os riscos, diante dos quais jamais recuou. Caso raro de sintonia entre a vida e a obra, sua integridade era incompatível com vetos políticos ou intelectuais a uma convicção histórica: a possibilidade de construir um Brasil próspero, justo e soberano.
Dito por muitos, esse triplo adjetivo ganha a opacidade das palavras órfãs de sentido e história. Aí reside a diferença de Furtado. Autonomia decisória para ele era um requisito indispensável à ampliação do bem-estar e à elevação humana de uma sociedade. Era, por assim dizer, um instrumento divisor na história das nações.
Essa marca forte do seu pensamento é que o diferencia - ontem, hoje e sempre - da ligeireza contábil de algumas escolas econômicas, cujos expoentes apressam-se em subestimar a atualidade de idéias distribuídas em 30 livros traduzidos em 15 idiomas. Celso Furtado não se subordinava a modelos prontos. Sua vasta cultura, seu conhecimento histórico, seu olhar profundo e sertanejo, voltavam-se sempre, e em primeiro lugar, para a realidade do País e a vida do seu povo.
Dessa imersão intelectual e humana, decantava as singularidades nacionais, localizava os gargalos seculares, as armadilhas da desigualdade. Extraía daí com serenidade e rigor as ferramentas e políticas para superá-las. Foi assim que se projetou sobre a nação, ainda em vida, como símbolo de um Brasil que não renuncia ao desenvolvimento e não abdica de um espaço no cenário mundial.
Quando ensina que o subdesenvolvimento não é uma etapa necessária e incontornável do desenvolvimento, mas uma engrenagem regressiva, assentada na aliança perversa entre estruturas injustas e assimetrias internacionais, ele resume cinco séculos de história e projeta uma agenda para o futuro. Mantidas essas relações, dizia o mestre nascido em Pombal, na Paraíba, em 1920, o acelerador da riqueza aciona o freio da distribuição e aprofunda a desigualdade, perpetuando a injustiça.
Desarmar essa engrenagem é a própria agenda do desenvolvimento. Requer paciência, sabedoria e responsabilidade. Em uma época de transição como a nossa, uma das prioridades que apontava era a urgente ampliação da margem de autonomia do País. Conversamos algumas vezes sobre isso, de forma sempre franca, gentil e serena, como era próprio do seu estilo. Posso dizer, portanto, que nossa política bem-sucedida de comércio exterior já permitiu ao Brasil romper um torniquete gigantesco trazido dos anos 90, quando o País especializou-se em consumir bens e serviços financiados com dinheiro externo, acumulando assim um déficit em contas correntes da ordem de US$ 200 bilhões em oito anos.
Na ótica de Celso Furtado, uma nação não é um milagre contábil, mas uma soma intencional de criatividade política para reverter circunstâncias, e coordenação estratégica para não desperdiçar recursos e oportunidades. E foi por acreditar que uma nação não é outra coisa senão a prevalência de consensos políticos capazes de superar a rigidez econômica, que ele rejeitou a lógica estreita dos que viam o Brasil como uma vocação essencialmente agrícola.
A industrialização brasileira teve em Furtado um planejador ousado e atuante, que mostrou na prática, durante os governos de Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart, que vantagens comparativas não são apenas um legado da natureza, mas uma construção histórica de cada povo.
Agora, meu governo vai estender o sonho de Furtado para os sertões do semi-árido mais distante. A obra de revitalização do São Francisco, que iniciaremos em 2005, levará água para
matar a sede do Nordeste setentrional e irrigará 47 mil hectares de terras férteis, criando milhares de empregos diretos. Não vamos prejudicar o velho Chico, mas investir em sua regeneração. Não vamos tirar água de quem já tem, mas estender a correnteza solidária desse rio republicano, que une o País úmido ao seco, para beneficiar milhões de vidas ressequidas de pão e cidadania. Serão dois canais, e o maior deles, com cerca de 400 quilômetros, cortará o Sertão com o nome de "Celso Furtado", simbolizando o fio de continuidade entre os ideais de duas gerações.
Essa mesma perspectiva inspirou-nos a lançar durante a XI Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento, a Unctad, realizada em junho, em São Paulo - e então dirigida pelo grande brasileiro Rubens Ricupero - o projeto de construção do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento. Cada ciclo histórico tem seu centro de formulação intelectual de referência estratégica. Nosso objetivo é criar um pólo de reflexão multilateral envolvendo intelectuais e governos de diferentes países, para aprofundar ideias e formular projetos inovadores de combate à fome, à pobreza e aos gargalos do desenvolvimento.
De novo, não se trata de uma homenagem póstuma, porque está em curso há meses e recebeu o apoio encorajador do próprio Celso Furtado. Trata-se, sim, de reafirmar o compromisso com uma obra de indiscutível atualidade. Agora, mais que nunca, somos herdeiros e responsáveis pela retomada de uma construção interrompida, cujo nome é Brasil, e cujo mestre inspirador chama-se Celso Monteiro Furtado."
Luiz Inácio Lula da Silva
Presidente da República
(dezembro de 2004)
Da usina de pós-verdades na qual se transformou o noticiário político e econômico salta o aviso de que o senhor Michel Temer se considera o grande credor da obra de Transposição do São Francisco, planejada, viabilizada e realizada desde 2005 pelos governos Lula e Dilma, sob os protestos costumeiros da secessão paulista.
Em uma pauta expressiva destes novos tempos, o jornal Valor (02/03/2018) ouviu de Temer um estupendo exemplar de pós-verdade e o transcreveu sem obtemperar: 'Temer acha que tirou da oposição mais de uma bandeira na área social. Entre elas, talvez a mais significativa, a bandeira da transposição do São Francisco, que Temer empunhou e promete levar até o fim. O presidente quer inaugurar já no dia 9 o eixo Leste da transposição...'
Os bravos escribas não tugiram, nem mugiram.
E assim, sem grunhir, rechearam uma das páginas mais pós-verdadeiras do jornalismo despejado atualmente sobre a sociedade brasileira.
Nela, o senhor Temer descreve a ‘fulminante’ espiral de retomada do crescimento – estamos falando do Brasil! – em uma economia carregada do maior contingente de desempregados da sua história.
Nada. Nenhuma linha de apego ao país real.
Treze milhões de zumbis econômicos (24 milhões, incluídos os que sobrevivem de ‘bicos’) ficaram fora do cardápio de um almoço que os jornalistas classificaram, talvez por isso, como ‘frugal’, descrevendo-o com a atenção minuciosa da qual se dispensaram na arguição do interlocutor.
Assim: ‘com uma agenda leve, pós-carnavalesca, Temer aproveitou para almoçar em sala contígua ao seu gabinete. Uma refeição frugal: salada, frango grelhado, carne, arroz - branco e integral - e feijão. De sobremesa, frutas e um pavê de creme e chocolate, de que se serviu duas vezes, com indisfarçável prazer’ (Valor, 02-03-2017)
Entre colheradas de pavê e descolamento do real, cometeu-se uma página inteira com a descrição desse país de vento em popa, ademais de tão justo que o teor de açúcar do governo chega a rivalizar com o do creme com chocolate.
‘Temer gaba-se de ter concedido 12,5%, além de ter zerado a fila de espera (do Bolsa Família’), continua o jornalismo pós-verdadeiro do Valor, que avança sem constrangimento para o cafezinho: ‘ 500 mil pessoas que estavam na fila puderam ser abrigadas pelo programa no lugar de outras 500 mil que recebiam o benefício indevidamente’. E a suprema confidencialidade que nasce de comensais saciados no ventre e na alma: ‘O presidente surpreende os convidados à mesa contando que foram detectadas pessoas com caminhonetes SUV de cabine dupla...’
Que horror....
Intervalo para engolir – e não é o pavê.
Embriagados com as oportunidades à mesa os profissionais do Valor não cogitaram checar os dados, coisa que até o UOL faria no dia seguinte, com resultados inesperados e nada frugais. (Veja: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/03/02/mesmo-com-crise-bolsa-familia-reduz-485-mil-beneficiarios-em-3-anos.ht)
Ao contrário do informado pelo senhor Temer, a reportagem, esse cacoete pré-pós-verdade, verificou que de 2016 para 2017 o número de inscritos no Bolsa Família sofreu uma redução inédita de quase 409 mil famílias .
Ou seja, cerca de um milhão de pessoas a menos gravitavam em torno do programa em um cenário improvável, observa o próprio UOL, em que o desemprego despeja um recorde histórico de 13 milhões de pessoas na soleira do limbo social.
O conjunto soa ainda mais intrigante diante da explicação oficial para a queda: a ‘purga’ na qual foram detectados ‘donos de caminhonetes SUV’.
‘De cabine dupla’, atalharia Temer.
Será o caso da alagoana Jéssica da Silva, 23, que vive com três filhos menores em uma pequena casa feita com pedaços de madeira e lona, na favela do Dique Estrada, periferia de Maceió?
Jéssica foi ouvida –esse cacoete ...-- pela reportagem do UOL .
O que contou guarda certa disparidade com a versão edulcorada saboreada gulosamente pelo Valor no almocinho frugal da Quarta-feira de Cinza, no Planalto.
‘No começo de 2016’, diz o UOL, ‘a desempregada teve sua então única fonte de renda --o Bolsa Família-- cortada e, hoje, diz passar por dificuldades de sustento’.
Não é a única.
A investigação (epa!) levada a cabo pelo UOL constatou a abrangência preocupante desse drama: ‘Ela é uma das integrantes do 1,1 milhão de famílias que tiveram o benefício suspenso pelo governo federal no ano passado. No mesmo período, outras 700 mil famílias entraram, ainda assim deixando um déficit superior a 400 mil beneficiários...’
É a turma da cabine dupla?
Quem se empanturrou do pavê de loroto açucarada no caso do Bolsa Família poderia redimir-se, ao menos, investigando agora qual é a cota real do senhor Temer na obra do São Francisco, que ele exibe como o caneco de ouro ‘tirado da oposição’.
Com um agravante neste caso
Não se trata apenas de um rapto material.
Os jornalistas do Valor sabem, ou deveriam saber. O ideário por trás da transposição do São Francisco colide com o cardápio de arrocho e demonização do papel indutor do Estado no desenvolvimento, contra o qual se fez o assalto ao poder de Agosto de 2016.
A obra do São Francisco deita raízes longas e profundas na outra margem do rio.
Lá estão as gerações que criaram a Petrobrás, que lutaram pelo seu monopólio, que foram às ruas pela Sudene e a reforma agrária, que brigaram pela soberania, pela industrialização, que resistiram ao golpe de 64, que fizeram as greves de 70/80 pelo salário digno, que elegeram um operário, fizeram a sua sucessora e nunca aceitaram o subdesenvolvimento e a miséria como uma etapa ‘natural’ do desenvolvimento.
Por ser tributária desse gigantesco caudal histórico a obra do São Francisco carrega em seus canais um jorro de identidade que o então Presidente Lula quis demarcar claramente.
Se os bravos jornalistas do Valor pesquisarem um pouco nos arquivos do próprio jornal encontrarão ali um artigo de dezembro de 2004 –‘Um Mestre em Brasil’.
Assinado pelo então Presidente Lula, o verdadeiro capitão da obra agora usurpada, homenageia um sertanejo da gema e intelectual ilustre que havia falecido há menos de um mês, em 20 de novembro.
A homenagem, reproduzida em vários veículos do país, diz que ‘a morte não representa a derradeira etapa na trajetória de um ser humano quando ele deixa ideias que podem inspirar um povo e mover uma nação’ .
Em seguida, o texto fixa um compromisso.
Uma profissão de fé associada à obra do São Francisco, que seria iniciada no ano seguinte.
Assim:
‘ (a transposição) levará água para matar a sede do Nordeste setentrional e irrigará 47 mil hectares de terras férteis, criando milhares de empregos diretos. Não vamos tirar água de quem já tem, mas estender a correnteza solidária desse rio republicano, que une o País úmido ao seco, para beneficiar milhões de vidas ressequidas de pão e cidadania. Serão dois canais, e o maior deles, com cerca de 400 quilômetros, cortará o Sertão com o nome de "Celso Furtado" (...) mais que nunca, somos herdeiros e responsáveis pela retomada de uma construção interrompida, cujo nome é Brasil, e cujo mestre inspirador (foi) Celso Monteiro Furtado’, concluía o artigo.
Qual será o destino desse compromisso histórico agora, num Brasil onde um pavê com chocolate lubrifica a digestão de pós-verdades em bocas adestradas a não mugir, nem tugir?
Leia, a seguir, o texto de Lula na íntegra:
*****
Mestre em Brasil
"A morte não representa a derradeira etapa na trajetória de um ser humano quando ele deixa idéias que podem inspirar um povo e mover uma nação. Esse, creio, é o caso do companheiro, mestre e amigo Celso Furtado. Não há homenagem maior a um intelectual do que reafirmar a atualidade de sua obra e o exemplo de sua postura pública.
Furtado gostava de apresentar-se como um servidor público e isso traduz bem o seu caráter, a sua visão de mundo e as suas escolhas - bem como os riscos, diante dos quais jamais recuou. Caso raro de sintonia entre a vida e a obra, sua integridade era incompatível com vetos políticos ou intelectuais a uma convicção histórica: a possibilidade de construir um Brasil próspero, justo e soberano.
Dito por muitos, esse triplo adjetivo ganha a opacidade das palavras órfãs de sentido e história. Aí reside a diferença de Furtado. Autonomia decisória para ele era um requisito indispensável à ampliação do bem-estar e à elevação humana de uma sociedade. Era, por assim dizer, um instrumento divisor na história das nações.
Essa marca forte do seu pensamento é que o diferencia - ontem, hoje e sempre - da ligeireza contábil de algumas escolas econômicas, cujos expoentes apressam-se em subestimar a atualidade de idéias distribuídas em 30 livros traduzidos em 15 idiomas. Celso Furtado não se subordinava a modelos prontos. Sua vasta cultura, seu conhecimento histórico, seu olhar profundo e sertanejo, voltavam-se sempre, e em primeiro lugar, para a realidade do País e a vida do seu povo.
Dessa imersão intelectual e humana, decantava as singularidades nacionais, localizava os gargalos seculares, as armadilhas da desigualdade. Extraía daí com serenidade e rigor as ferramentas e políticas para superá-las. Foi assim que se projetou sobre a nação, ainda em vida, como símbolo de um Brasil que não renuncia ao desenvolvimento e não abdica de um espaço no cenário mundial.
Quando ensina que o subdesenvolvimento não é uma etapa necessária e incontornável do desenvolvimento, mas uma engrenagem regressiva, assentada na aliança perversa entre estruturas injustas e assimetrias internacionais, ele resume cinco séculos de história e projeta uma agenda para o futuro. Mantidas essas relações, dizia o mestre nascido em Pombal, na Paraíba, em 1920, o acelerador da riqueza aciona o freio da distribuição e aprofunda a desigualdade, perpetuando a injustiça.
Desarmar essa engrenagem é a própria agenda do desenvolvimento. Requer paciência, sabedoria e responsabilidade. Em uma época de transição como a nossa, uma das prioridades que apontava era a urgente ampliação da margem de autonomia do País. Conversamos algumas vezes sobre isso, de forma sempre franca, gentil e serena, como era próprio do seu estilo. Posso dizer, portanto, que nossa política bem-sucedida de comércio exterior já permitiu ao Brasil romper um torniquete gigantesco trazido dos anos 90, quando o País especializou-se em consumir bens e serviços financiados com dinheiro externo, acumulando assim um déficit em contas correntes da ordem de US$ 200 bilhões em oito anos.
Na ótica de Celso Furtado, uma nação não é um milagre contábil, mas uma soma intencional de criatividade política para reverter circunstâncias, e coordenação estratégica para não desperdiçar recursos e oportunidades. E foi por acreditar que uma nação não é outra coisa senão a prevalência de consensos políticos capazes de superar a rigidez econômica, que ele rejeitou a lógica estreita dos que viam o Brasil como uma vocação essencialmente agrícola.
A industrialização brasileira teve em Furtado um planejador ousado e atuante, que mostrou na prática, durante os governos de Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart, que vantagens comparativas não são apenas um legado da natureza, mas uma construção histórica de cada povo.
Agora, meu governo vai estender o sonho de Furtado para os sertões do semi-árido mais distante. A obra de revitalização do São Francisco, que iniciaremos em 2005, levará água para
matar a sede do Nordeste setentrional e irrigará 47 mil hectares de terras férteis, criando milhares de empregos diretos. Não vamos prejudicar o velho Chico, mas investir em sua regeneração. Não vamos tirar água de quem já tem, mas estender a correnteza solidária desse rio republicano, que une o País úmido ao seco, para beneficiar milhões de vidas ressequidas de pão e cidadania. Serão dois canais, e o maior deles, com cerca de 400 quilômetros, cortará o Sertão com o nome de "Celso Furtado", simbolizando o fio de continuidade entre os ideais de duas gerações.
Essa mesma perspectiva inspirou-nos a lançar durante a XI Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento, a Unctad, realizada em junho, em São Paulo - e então dirigida pelo grande brasileiro Rubens Ricupero - o projeto de construção do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento. Cada ciclo histórico tem seu centro de formulação intelectual de referência estratégica. Nosso objetivo é criar um pólo de reflexão multilateral envolvendo intelectuais e governos de diferentes países, para aprofundar ideias e formular projetos inovadores de combate à fome, à pobreza e aos gargalos do desenvolvimento.
De novo, não se trata de uma homenagem póstuma, porque está em curso há meses e recebeu o apoio encorajador do próprio Celso Furtado. Trata-se, sim, de reafirmar o compromisso com uma obra de indiscutível atualidade. Agora, mais que nunca, somos herdeiros e responsáveis pela retomada de uma construção interrompida, cujo nome é Brasil, e cujo mestre inspirador chama-se Celso Monteiro Furtado."
Luiz Inácio Lula da Silva
Presidente da República
(dezembro de 2004)
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