Por Beatriz Cerqueira, no jornal Brasil de Fato:
Durante um tempo, encontrávamos com a atendente de lanchonete com a barriga cada vez maior. Estava grávida. O natural seria que parássemos de vê-la por, no mínimo, quatro meses. Mas, logo após o nascimento da criança, ela voltou ao trabalho. Quando foi questionada por uma colega nossa respondeu que não poderia ficar sem o emprego. Não poderia ficar quatro meses "afastada".
Um amigo, ao entrar numa loja que vende eletrodomésticos, descobriu que a vendedora não tinha salário. Sua renda dependia, exclusivamente, da comissão do que ela conseguisse vender, mesmo que as condições de pagamento e o preço cobrado pelo produto não dependessem dela. Em síntese, ela não tem salários mas se não estiver satisfeita, "só pedir para sair".
Em um banheiro de aeroporto, presenciei a conversa entre uma auxiliar de limpeza e uma funcionária do estacionamento. Uma delas contava do revezamento que a família estava fazendo para acompanhar alguém da família que estava doente e internado. Dizia da dificuldade que era quando a sua vez não caía num dia de folga: a empresa não aceitava atestado médico. E ainda dava advertência.
Durante uma fiscalização do Ministério Público do Trabalho, conheci rapazes com 18 anos que eram contratados por empreiteiras no Norte de Minas Gerais. Abandonavam a escola para trabalharem na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Contaram que parte do salário não vinha no contracheque, "era pago por fora". Que cada um fazia sua própria comida, que era consumida, em geral, após as 15 horas, na rua mesmo. E não eram raras as vezes em que a comida já estava azeda. Quando iam completar um ano de trabalho na empresa, a "casa falia" e eram recontratados por outra empresa. A situação se repetia e ficavam anos sem férias e outros direitos.
Na Assembleia Legislativa de Minas Gerais já presenciei trabalhadores que continuavam prestando serviço sem saber quem era o patrão, uma vez que o contrato da terceirizada havia terminado. Atrasos ou mesmo não pagamento de direitos e benefícios também são comuns por lá.
Todos esses exemplos aconteceram na capital mineira.
No dia 26 de abril, deputados federais aprovaram a Reforma Trabalhista alterando mais de 100 artigos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Votaram desconhecendo a realidade do trabalhador e da trabalhadora brasileira! Votaram sem conhecer a vida dessas pessoas que citei e de outros milhares em situações semelhantes ou piores. Criaram um falso discurso de modernidade e de ataque ao movimento sindical, reduzindo a questão à cobrança de imposto sindical.
A ideia de que, agora, os trabalhadores estarão "livres" para negociarem suas condições de trabalho está bem exemplificada em cada uma das vivências que citei. A atendente abre mão da licença maternidade porque sabe que, se sair, não volta. O trabalhador se submete às regras da empreiteira, porque sabe que todas agem livremente dessa forma. É isso ou ficar sem emprego.
Mas, eu ainda cito mais um exemplo mineiro de negociado prevalecendo em relação à legislação. Recentemente um Jornal queria reduzir salários. O sindicato não concordou. O Jornal chamou individualmente cada trabalhador dando a ele duas opções: redução ou demissão. Essa é a liberdade de negociar, num país que beira os 14,2 milhões de desempregados.
Sindicato sério não tem nenhum problema em debater seu financiamento. Mas, reduzir a reforma trabalhista a esse tema, é uma grande manipulação para isolar a resistência, que os sindicatos têm o legítimo direito de fazer, ao que está sendo votado. Aliás, deveríamos debater tudo: financiamento dos sindicatos, financiamento das entidades patronais, recursos públicos para o Sistema “S”. Se compararmos o tempo destinado pelos meios de comunicação à defesa da reforma versus as críticas à mesma, ficaríamos assustados com a ausência de espaço para o contraditório. A campanha pela aprovação da reforma não se resumiu à publicidade do governo, mas a um aparato econômico envolvendo empresários, políticos e seus financiadores e grande parte da mídia. Não houve equidade num debate de tamanha importância. Um país sério debateria tudo, mas esta reforma foi aprovada sem debate com a sociedade, em tempo recorde, destruindo mais de 70 anos de acúmulo no Direito do Trabalhador.
Os reflexos disso serão sentidos nas relações de trabalho, nas quais agora haverá a suposta "liberdade". Tratam de modo igual aqueles que são desiguais. O trabalhador é detentor da sua força de trabalho, o patrão é detentor do poder econômico. Há equilíbrio nesta relação? Fragilizar sindicato não tem nada a ver com imposto sindical, como afirmam comentaristas de rádio e TV muito bem remunerados para dizerem isso. Tem a ver com impedir a capacidade de reação organizada do trabalhador diante da precarização das suas condições de trabalho.
O indivíduo não tem capacidade de pressão, o coletivo tem!
Não foi aleatório que, na reforma trabalhista, o acordo individual passa a ter mais força. Individualmente o trabalhador vai negociar sobre jornada de trabalho (possibilita a compensação das horas extras por meio de redução de jornada, ou seja, por um “banco de horas” individual); a jornada de 12 horas de trabalho por 36 de descanso, que poderá ser realizada em ambientes insalubres sem necessidade de licença de autoridade responsável e poderá ser sem os intervalos para repouso e alimentação, entre outros pontos. A Reforma aprovada ainda estabelece ou fortalece formas de contratação e de demissão de trabalhadores e trabalhadoras (tempo parcial, “teletrabalho”, "trabalho intermitente” sem garantia de remuneração no período de gozo de férias e redução das multas para demissão).
Entendeu o impacto de tudo isso na sua vida? Na vida de todos nós? Liberdade para diminuir salário e aumentar a jornada diária de trabalho, diminuir horário de almoço, trabalhar em local insalubre mesmo que a mulher esteja grávida. Qual o mérito de ter liberdade para isso?
No rompimento da Barragem de Fundão da Samarco/Vale/BHP, em Mariana, não havia nenhum sistema de aviso aos funcionários que trabalhavam na barragem, nem para os moradores da região. A empresa havia reduzido investimentos em segurança. Morreram 13 trabalhadores, além dos sete moradores de Bento Rodrigues e toda a destruição que já conhecemos. Quem vai fiscalizar empresas como a Samarco? Ou as empreiteiras que cometem o crime de trabalho análogo à escravidão? Quem vai interpor entre a trabalhadora grávida e o patrão que não reconhece o seu direito a maternidade?
A Justiça do Trabalho e os sindicatos são essenciais nestas relações! A quem interessa o enfraquecimento deles?
Em 2016, sem nenhum debate com a sociedade, o Congresso Nacional reduziu em 50% o orçamento de custeio da Justiça do Trabalho para que o trabalhador encontrasse menos condições de recorrer na defesa dos seus direitos. Com quem isso foi debatido? A livre negociação pode ser muito boa para o patrão, que "modernizará” as relações de trabalho à exemplo do que a Samarco fez. Mas, alguém perguntou para o trabalhador e para a trabalhadora? Até agora só estou vendo os patrões, os deputados que votaram a favor, os comentaristas de TV e rádio bem remunerados defendendo a reforma. Alguém escutou quem de fato essa reforma vai atingir? Não.
* Beatriz Cerqueira é presidenta da Central Única dos Trabalhadores de Minas Gerais – CUT MG e do SindUTE MG.
Durante um tempo, encontrávamos com a atendente de lanchonete com a barriga cada vez maior. Estava grávida. O natural seria que parássemos de vê-la por, no mínimo, quatro meses. Mas, logo após o nascimento da criança, ela voltou ao trabalho. Quando foi questionada por uma colega nossa respondeu que não poderia ficar sem o emprego. Não poderia ficar quatro meses "afastada".
Um amigo, ao entrar numa loja que vende eletrodomésticos, descobriu que a vendedora não tinha salário. Sua renda dependia, exclusivamente, da comissão do que ela conseguisse vender, mesmo que as condições de pagamento e o preço cobrado pelo produto não dependessem dela. Em síntese, ela não tem salários mas se não estiver satisfeita, "só pedir para sair".
Em um banheiro de aeroporto, presenciei a conversa entre uma auxiliar de limpeza e uma funcionária do estacionamento. Uma delas contava do revezamento que a família estava fazendo para acompanhar alguém da família que estava doente e internado. Dizia da dificuldade que era quando a sua vez não caía num dia de folga: a empresa não aceitava atestado médico. E ainda dava advertência.
Durante uma fiscalização do Ministério Público do Trabalho, conheci rapazes com 18 anos que eram contratados por empreiteiras no Norte de Minas Gerais. Abandonavam a escola para trabalharem na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Contaram que parte do salário não vinha no contracheque, "era pago por fora". Que cada um fazia sua própria comida, que era consumida, em geral, após as 15 horas, na rua mesmo. E não eram raras as vezes em que a comida já estava azeda. Quando iam completar um ano de trabalho na empresa, a "casa falia" e eram recontratados por outra empresa. A situação se repetia e ficavam anos sem férias e outros direitos.
Na Assembleia Legislativa de Minas Gerais já presenciei trabalhadores que continuavam prestando serviço sem saber quem era o patrão, uma vez que o contrato da terceirizada havia terminado. Atrasos ou mesmo não pagamento de direitos e benefícios também são comuns por lá.
Todos esses exemplos aconteceram na capital mineira.
No dia 26 de abril, deputados federais aprovaram a Reforma Trabalhista alterando mais de 100 artigos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Votaram desconhecendo a realidade do trabalhador e da trabalhadora brasileira! Votaram sem conhecer a vida dessas pessoas que citei e de outros milhares em situações semelhantes ou piores. Criaram um falso discurso de modernidade e de ataque ao movimento sindical, reduzindo a questão à cobrança de imposto sindical.
A ideia de que, agora, os trabalhadores estarão "livres" para negociarem suas condições de trabalho está bem exemplificada em cada uma das vivências que citei. A atendente abre mão da licença maternidade porque sabe que, se sair, não volta. O trabalhador se submete às regras da empreiteira, porque sabe que todas agem livremente dessa forma. É isso ou ficar sem emprego.
Mas, eu ainda cito mais um exemplo mineiro de negociado prevalecendo em relação à legislação. Recentemente um Jornal queria reduzir salários. O sindicato não concordou. O Jornal chamou individualmente cada trabalhador dando a ele duas opções: redução ou demissão. Essa é a liberdade de negociar, num país que beira os 14,2 milhões de desempregados.
Sindicato sério não tem nenhum problema em debater seu financiamento. Mas, reduzir a reforma trabalhista a esse tema, é uma grande manipulação para isolar a resistência, que os sindicatos têm o legítimo direito de fazer, ao que está sendo votado. Aliás, deveríamos debater tudo: financiamento dos sindicatos, financiamento das entidades patronais, recursos públicos para o Sistema “S”. Se compararmos o tempo destinado pelos meios de comunicação à defesa da reforma versus as críticas à mesma, ficaríamos assustados com a ausência de espaço para o contraditório. A campanha pela aprovação da reforma não se resumiu à publicidade do governo, mas a um aparato econômico envolvendo empresários, políticos e seus financiadores e grande parte da mídia. Não houve equidade num debate de tamanha importância. Um país sério debateria tudo, mas esta reforma foi aprovada sem debate com a sociedade, em tempo recorde, destruindo mais de 70 anos de acúmulo no Direito do Trabalhador.
Os reflexos disso serão sentidos nas relações de trabalho, nas quais agora haverá a suposta "liberdade". Tratam de modo igual aqueles que são desiguais. O trabalhador é detentor da sua força de trabalho, o patrão é detentor do poder econômico. Há equilíbrio nesta relação? Fragilizar sindicato não tem nada a ver com imposto sindical, como afirmam comentaristas de rádio e TV muito bem remunerados para dizerem isso. Tem a ver com impedir a capacidade de reação organizada do trabalhador diante da precarização das suas condições de trabalho.
O indivíduo não tem capacidade de pressão, o coletivo tem!
Não foi aleatório que, na reforma trabalhista, o acordo individual passa a ter mais força. Individualmente o trabalhador vai negociar sobre jornada de trabalho (possibilita a compensação das horas extras por meio de redução de jornada, ou seja, por um “banco de horas” individual); a jornada de 12 horas de trabalho por 36 de descanso, que poderá ser realizada em ambientes insalubres sem necessidade de licença de autoridade responsável e poderá ser sem os intervalos para repouso e alimentação, entre outros pontos. A Reforma aprovada ainda estabelece ou fortalece formas de contratação e de demissão de trabalhadores e trabalhadoras (tempo parcial, “teletrabalho”, "trabalho intermitente” sem garantia de remuneração no período de gozo de férias e redução das multas para demissão).
Entendeu o impacto de tudo isso na sua vida? Na vida de todos nós? Liberdade para diminuir salário e aumentar a jornada diária de trabalho, diminuir horário de almoço, trabalhar em local insalubre mesmo que a mulher esteja grávida. Qual o mérito de ter liberdade para isso?
No rompimento da Barragem de Fundão da Samarco/Vale/BHP, em Mariana, não havia nenhum sistema de aviso aos funcionários que trabalhavam na barragem, nem para os moradores da região. A empresa havia reduzido investimentos em segurança. Morreram 13 trabalhadores, além dos sete moradores de Bento Rodrigues e toda a destruição que já conhecemos. Quem vai fiscalizar empresas como a Samarco? Ou as empreiteiras que cometem o crime de trabalho análogo à escravidão? Quem vai interpor entre a trabalhadora grávida e o patrão que não reconhece o seu direito a maternidade?
A Justiça do Trabalho e os sindicatos são essenciais nestas relações! A quem interessa o enfraquecimento deles?
Em 2016, sem nenhum debate com a sociedade, o Congresso Nacional reduziu em 50% o orçamento de custeio da Justiça do Trabalho para que o trabalhador encontrasse menos condições de recorrer na defesa dos seus direitos. Com quem isso foi debatido? A livre negociação pode ser muito boa para o patrão, que "modernizará” as relações de trabalho à exemplo do que a Samarco fez. Mas, alguém perguntou para o trabalhador e para a trabalhadora? Até agora só estou vendo os patrões, os deputados que votaram a favor, os comentaristas de TV e rádio bem remunerados defendendo a reforma. Alguém escutou quem de fato essa reforma vai atingir? Não.
* Beatriz Cerqueira é presidenta da Central Única dos Trabalhadores de Minas Gerais – CUT MG e do SindUTE MG.
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