Por Claudia Malinverni, na revista CartaCapital:
Nos últimos nove anos, dois ciclos de intensificação da febre amarela silvestre (na gramática epidemiológica, epizootia), fenômeno recorrente no cenário brasileiro, chamaram a atenção do jornalismo de massa. O primeiro, no verão de 2008, foi alvo de uma intensa e controversa cobertura, que mobilizou a imprensa nacional e acabou por configurar a doença como uma epidemia midiática.
O segundo, no início deste ano, a despeito de ter provocado um surto entre seres humanos de dimensões inéditas e com potencial para a espetacularização, recebeu um tratamento jornalístico oposto, centrado na objetividade da informação.
Entender as diferenças entre as duas narrativas é o foco deste artigo, que toma como exemplo o jornal Folha de S.Paulo. Segundo o Ministério da Saúde, o número de casos confirmados em 2017 é nove vezes maior do que o registrado em 2000 – que, com 85 casos, era, até então, o maior da série histórica, iniciada em 1980 –, e quase 17 vezes o contabilizado em 2008, quando foram confirmados apenas 46 casos.
Essa comparação numérica dos dois momentos de disseminação da doença suscita um primeiro questionamento: por que o mais “brando”, de 2008, se transformou jornalisticamente em uma epidemia de febre amarela e o segundo, de 2017, mereceu da imprensa uma abordagem cautelosa, assentada no que poderíamos nomear como bom jornalismo?
A epidemia midiática teve como pano de fundo o início do segundo mandato presidencial do petista Luiz Inácio Lula da Silva, que, em março de 2007, havia nomeado o sanitarista José Gomes Temporão ministro da Saúde. No campo da saúde pública, parlamentares governistas e da oposição travavam uma acirrada disputa pela renovação da CPMF.
Pouco antes de detectada a febre amarela silvestre pelo sistema nacional de monitoramento, em meados de dezembro de 2007, o Senado Federal havia rejeitado a prorrogação da contribuição. Importante complementação ao orçamento do SUS, a defesa da CPMF foi conduzida pessoalmente por Temporão, que rejeitava o viés tecnocrático das ações ministeriais.
Já em 2017, a cobertura se desenrolou sob o governo do peemedebista Michel Temer. Controverso desde o início, o processo parlamentar que desaguou no impedimento de Dilma Rousseff teve amplo e explícito apoio das principais corporações de mídia do País.
Por outro lado, o ministro da Saúde do Governo Temer é Ricardo Barros, eleito deputado federal no Paraná pelo Partido Progressista tendo como maior doador individual de sua campanha, em 2014, Elon Gomes de Almeida, sócio do Grupo Aliança, administradora de planos de saúde. Engenheiro e empresário, o atual ministro defende o fim da universalidade do SUS e a criação de planos populares de saúde, que representam uma ameaça ao sistema público de saúde.
Em 2008, a febre amarela silvestre – então concentrada na região Centro-Oeste, com destaque para o Distrito Federal – foi classificada pelo Ministério da Saúde e boa parte de técnicos e pesquisadores como dentro da normalidade epidemiológica, logo, evoluindo segundo as expectativas técnico-científicas. A imprensa de massa discordou.
A divulgação, com destaque, pelo jornal Correio Braziliense, do primeiro caso suspeito registrado em Brasília (um funcionário do alto escalão do Ministério da Cultura) foi a senha para o agendamento jornalístico da febre amarela em escala nacional por diferentes meios de comunicação. A partir daí, entre o final de dezembro de 2007 e o início de fevereiro de 2008, o aparato midiático generalista manteve uma cobertura intensa do evento, que foi marcada pelo excesso de exposição do tema e pela seleção de repertórios de risco que salientavam a tese de urbanização da doença.
No primeiro recorte temporal, de 21/12/2007 a 29/02/2008, que compreende a publicação da primeira e da última matéria circunscrita ao fenômeno da febre amarela midiática, foram localizadas 120 matérias, das quais 118 foram analisadas (veiculadas em 47 edições).
Utilizando exatamente o mesmo recorte (21/12/2016 a 28/02/2017), na cobertura deste ano foram localizados 75 textos, tendo sido analisados 71, publicados em 21 edições. Ou seja, embora do ponto de vista epidemiológico o evento de 2017 tenha sido consistentemente mais intenso, o volume de matérias publicadas pelo jornal foi cerca de 40% menor do que em 2008.
Outro aspecto relevante desta análise é da ordem dos sentidos. Há nove anos, a construção da narrativa envolveu três grandes estratégias discursivas epidêmicas: "a doença fora de controle", com foco no "crescimento progressivo" do número de casos suspeitos; "o inimigo letal", centrada nas taxas de letalidade e na sintomatologia/tratamento da doença; e a tese da urbanização, dada pela "transmissão generalizada", sentido produzido a partir da omissão da área de transmissão, que no caso da febre amarela silvestre é rural, dificultando a demarcação territorial do evento para o público leitor (na edição analisada em 2008, concentrado na capital paulista e na Grande São Paulo, portanto, áreas urbanas). Sobre essa última estratégia, é importante ressaltar que a omissão do termo “silvestre” tornou discursivamente as duas formas (silvestre e urbana) um mesmo e único evento.
Em 2017, ao contrário, a demarcação linguística do ciclo em curso foi constante. Desde a primeira matéria (“Suspeitas de febre amarela crescem em MG”, 12/01/2017), sobretudo quando a notícia remetia ao número de casos, o local de sua ocorrência foi constantemente demarcado.
Ainda no âmbito da estratégia "transmissão generalizada", a palavra-chave da cobertura de 2008 foi “epidemia”, que se caracteriza pela ocorrência de surtos de uma doença de modo simultâneo em diferentes regiões, quando, na verdade, tratava-se de um surto, aumento repentino do número de casos de uma doença em uma região específica.
Na edição tomada como ápice do enquadramento epidêmico de 2008, a de 14 de janeiro, a febre amarela foi manchete de capa (“Ministro vai à TV e nega epidemia de febre amarela”) e destaque principal da editoria Cotidiano, com seis textos. No dia seguinte, 15 de janeiro, a Folha publicou seu primeiro editorial acerca do evento, indicando a relevância do tema para os donos do jornal. Nesse pequeno recorte do corpus de 2008 a palavra "epidemia" (e duas variáveis, “epidemias” e “não-epidemia”) aparecem dez vezes, enquanto "surto", que era o que de fato estava em curso, apenas uma.
Em contrapartida, na totalidade do corpus de 2017 (71 matérias) a palavra “epidemia” aparece apenas quatro vezes, duas delas no editorial “Febre de vacinas” (27/01). Exatamente para afastar a tese de evolução epidêmica da doença, o texto é peremptório: “Não se pode falar de epidemia no caso da febre amarela”. Em todos os textos em que havia caracterização do evento, o jornal empregou o termo “surto”.
Em 2008, os eixos narrativos “crescimento progressivo” e “inimigo letal” eram frequentemente articulados, inclusive nas 15 chamadas de capa sobre a febre amarela, 12 das quais publicadas quase consecutivamente, em que se destacam repertórios que explicitavam sentidos de descontrole e letalidade da febre amarela (“primeira morte”; “2ª morte”; “5ª morte”; “7 mortes”; “8 o total de mortes”; “9ª morte”).
Em 2017, foram oito capas, mas em apenas duas o número de óbitos foi destacado: “Ministério admite, após 8 mortes, surto de febre amarela” (19/01) e “Cidades paulistas têm três mortes por febre amarela” (24/01).
“Vacine-se”: orientação da imprensa gera esgotamento de estoque antiamarílico no país
“Com sua licença, vou usar este espaço para fazer um apelo para você que mora no Brasil, não importa onde: vacine-se contra a febre amarela! Não deixe para amanhã, depois, semana que vem... Vacine-se logo! A febre amarela é uma doença infecciosa causada por vírus e pode ser fatal. Hoje mesmo (terça, 08/01/2008), morreu um homem de 38 anos em Brasília, plena capital da República, com febre alta, dores musculares, náuseas e vômitos. Possivelmente, foi vítima da doença. O alerta nem é mais amarelo, já é vermelho. E a vacina é altamente eficaz. Tomou, está livre da doença”.
O trecho acima, do artigo “Alerta amarelo!”, é um dos exemplos mais emblemáticos do discurso a favor da vacinação. Publicado por Eliane Cantanhêde, apresentada então como uma das jornalistas de política mais influentes do jornal, na coluna Pensata, exclusiva da Folha Online, ele resume bem a autoridade da qual a imprensa se imbuiu – e que gerou uma crise no estoque de vacinas no país.
Em 2008, uma narrativa em forma de fábula alçou a vacina à condição de “poção mágica”, apresentada como um dispositivo capaz de proteger a população do “inimigo letal” de modo “infalível”. Nessa perspectiva, a imprensa passou a atuar como porta-voz do uso irrestrito da vacina, de modo geral sem destacar seus potenciais efeitos adversos. Então, a demanda explodiu, inclusive naquelas regiões que estavam fora das áreas de ocorrência da doença, clássicas e/ou de transmissão viral.
Para se ter uma ideia do impacto desse sentido, entre o final de dezembro de 2007 (primeiras notícias) e 22 de fevereiro de 2008 (esgotamento da pauta) foram distribuídas em todo País mais de 13 milhões de doses da vacina. Desse total, 7,6 milhões de doses foram aplicadas em pouco menos de dois meses, 6,8 milhões só em janeiro.
Um dos três fabricantes mundiais pré-qualificados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), no período, o Brasil não só suspendeu a exportação do antiamarílico, como também apresentou um pedido de empréstimo de quatro milhões de doses do estoque de emergência global.
São Paulo, que até 2008 tinha mais da metade do seu território livre da circulação do vírus, foi vice-campeão de doses aplicadas (mais de 2,4 milhões), atrás apenas de Goiás (quase 2,8 milhões), endêmico desde o início da década de 2000. Só na capital paulista, foram aplicadas 428.337 doses, mais de cinco vezes do que em 2007 (79.666). Os casos de efeitos adversos aumentaram exponencialmente, chegando a mais do que o dobro daqueles transmitidos pelo mosquito. Então, veio o desfecho mais grave: quatro mortes por febre amarela vacinal, todas no estado de São Paulo.
Em contraposição, na cobertura de 2017, o enquadramento da vacina pode ser classificado como cauteloso. Já na segunda matéria, “Vacina contra a febre amarela requer cautela”, destacada em chamada de capa (13/01), depois de demonstrar os riscos da vacinação indiscriminada, o texto alerta: “Por isso, é preciso seguir à risca as orientações das autoridades sanitárias sobre quais regiões e grupos populacionais devem ser vacinados”.
No editorial já citado ("Febre de vacinas", 27/01), a preocupação é com o aumento da demanda vacinal em regiões sem recomendação: “Compete ao poder público distribuir doses de maneira eficiente aos locais que de fato necessitam delas. Precisa ainda esmerar-se mais na comunicação sobre quem deve vacinar-se e onde, para prevenir uma epidemia de pânico e a desorganização geral do sistema”.
Antes, em outro editorial (“Alerta amarelo”, 18/01), o jornal já apontara o risco da vacinação sem recomendação: “Em meio a uma corrida indiscriminada por vacinas em 2007 e 2008, houve oito casos de reação adversa grave à vacina, com seis mortes”. Além dos dois editoriais, diferentes matérias e edições trouxeram informações sobre a população-alvo da vacina e os riscos de efeitos adversos.
Este ano, embora tenha pairado um eventual desabastecimento – chegando mesmo a ser detectada a falta pontual da vacina em algumas regiões do País, sobretudo naquelas em que o surto já tinha sido confirmado (Minas Gerais, Espírito Santo e São Paulo) ou nas quais surgiram casos inesperados, como no Rio de Janeiro, em março –, não houve uma “corrida pela vacina”, como a registrada em 2008. Ao longo de 2017, o aumento da demanda vacinal esteve atrelado às recomendações do ministério e das secretarias estaduais e municipais de Saúde, a reboque das ações de contenção do vírus, e não do noticiário.
Não tivesse se desenrolado em contexto político-institucional tão diverso, talvez fosse possível deduzir que a não epidemia midiática de 2017 foi resultado de um aprendizado advindo das consequências da epidemia midiática de 2008, capaz de mudar as práticas do jornalismo de massa na abordagem sobre o tema.
Porém, não sendo esse o quadro geral, restará sempre uma dúvida: se fosse a petista Dilma Rousseff e não o peemedebista Michel Temer a presidir o país, teríamos em 2017 uma febre amarela midiática?
* Claudia Malinverni é jornalista e doutora pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). O artigo completo sobre o tema foi publicado no n° 2 da revista Reciis (Icict/Fiocruz) deste ano.
Nos últimos nove anos, dois ciclos de intensificação da febre amarela silvestre (na gramática epidemiológica, epizootia), fenômeno recorrente no cenário brasileiro, chamaram a atenção do jornalismo de massa. O primeiro, no verão de 2008, foi alvo de uma intensa e controversa cobertura, que mobilizou a imprensa nacional e acabou por configurar a doença como uma epidemia midiática.
O segundo, no início deste ano, a despeito de ter provocado um surto entre seres humanos de dimensões inéditas e com potencial para a espetacularização, recebeu um tratamento jornalístico oposto, centrado na objetividade da informação.
Entender as diferenças entre as duas narrativas é o foco deste artigo, que toma como exemplo o jornal Folha de S.Paulo. Segundo o Ministério da Saúde, o número de casos confirmados em 2017 é nove vezes maior do que o registrado em 2000 – que, com 85 casos, era, até então, o maior da série histórica, iniciada em 1980 –, e quase 17 vezes o contabilizado em 2008, quando foram confirmados apenas 46 casos.
Essa comparação numérica dos dois momentos de disseminação da doença suscita um primeiro questionamento: por que o mais “brando”, de 2008, se transformou jornalisticamente em uma epidemia de febre amarela e o segundo, de 2017, mereceu da imprensa uma abordagem cautelosa, assentada no que poderíamos nomear como bom jornalismo?
A epidemia midiática teve como pano de fundo o início do segundo mandato presidencial do petista Luiz Inácio Lula da Silva, que, em março de 2007, havia nomeado o sanitarista José Gomes Temporão ministro da Saúde. No campo da saúde pública, parlamentares governistas e da oposição travavam uma acirrada disputa pela renovação da CPMF.
Pouco antes de detectada a febre amarela silvestre pelo sistema nacional de monitoramento, em meados de dezembro de 2007, o Senado Federal havia rejeitado a prorrogação da contribuição. Importante complementação ao orçamento do SUS, a defesa da CPMF foi conduzida pessoalmente por Temporão, que rejeitava o viés tecnocrático das ações ministeriais.
Já em 2017, a cobertura se desenrolou sob o governo do peemedebista Michel Temer. Controverso desde o início, o processo parlamentar que desaguou no impedimento de Dilma Rousseff teve amplo e explícito apoio das principais corporações de mídia do País.
Por outro lado, o ministro da Saúde do Governo Temer é Ricardo Barros, eleito deputado federal no Paraná pelo Partido Progressista tendo como maior doador individual de sua campanha, em 2014, Elon Gomes de Almeida, sócio do Grupo Aliança, administradora de planos de saúde. Engenheiro e empresário, o atual ministro defende o fim da universalidade do SUS e a criação de planos populares de saúde, que representam uma ameaça ao sistema público de saúde.
Em 2008, a febre amarela silvestre – então concentrada na região Centro-Oeste, com destaque para o Distrito Federal – foi classificada pelo Ministério da Saúde e boa parte de técnicos e pesquisadores como dentro da normalidade epidemiológica, logo, evoluindo segundo as expectativas técnico-científicas. A imprensa de massa discordou.
A divulgação, com destaque, pelo jornal Correio Braziliense, do primeiro caso suspeito registrado em Brasília (um funcionário do alto escalão do Ministério da Cultura) foi a senha para o agendamento jornalístico da febre amarela em escala nacional por diferentes meios de comunicação. A partir daí, entre o final de dezembro de 2007 e o início de fevereiro de 2008, o aparato midiático generalista manteve uma cobertura intensa do evento, que foi marcada pelo excesso de exposição do tema e pela seleção de repertórios de risco que salientavam a tese de urbanização da doença.
No primeiro recorte temporal, de 21/12/2007 a 29/02/2008, que compreende a publicação da primeira e da última matéria circunscrita ao fenômeno da febre amarela midiática, foram localizadas 120 matérias, das quais 118 foram analisadas (veiculadas em 47 edições).
Utilizando exatamente o mesmo recorte (21/12/2016 a 28/02/2017), na cobertura deste ano foram localizados 75 textos, tendo sido analisados 71, publicados em 21 edições. Ou seja, embora do ponto de vista epidemiológico o evento de 2017 tenha sido consistentemente mais intenso, o volume de matérias publicadas pelo jornal foi cerca de 40% menor do que em 2008.
Outro aspecto relevante desta análise é da ordem dos sentidos. Há nove anos, a construção da narrativa envolveu três grandes estratégias discursivas epidêmicas: "a doença fora de controle", com foco no "crescimento progressivo" do número de casos suspeitos; "o inimigo letal", centrada nas taxas de letalidade e na sintomatologia/tratamento da doença; e a tese da urbanização, dada pela "transmissão generalizada", sentido produzido a partir da omissão da área de transmissão, que no caso da febre amarela silvestre é rural, dificultando a demarcação territorial do evento para o público leitor (na edição analisada em 2008, concentrado na capital paulista e na Grande São Paulo, portanto, áreas urbanas). Sobre essa última estratégia, é importante ressaltar que a omissão do termo “silvestre” tornou discursivamente as duas formas (silvestre e urbana) um mesmo e único evento.
Em 2017, ao contrário, a demarcação linguística do ciclo em curso foi constante. Desde a primeira matéria (“Suspeitas de febre amarela crescem em MG”, 12/01/2017), sobretudo quando a notícia remetia ao número de casos, o local de sua ocorrência foi constantemente demarcado.
Ainda no âmbito da estratégia "transmissão generalizada", a palavra-chave da cobertura de 2008 foi “epidemia”, que se caracteriza pela ocorrência de surtos de uma doença de modo simultâneo em diferentes regiões, quando, na verdade, tratava-se de um surto, aumento repentino do número de casos de uma doença em uma região específica.
Na edição tomada como ápice do enquadramento epidêmico de 2008, a de 14 de janeiro, a febre amarela foi manchete de capa (“Ministro vai à TV e nega epidemia de febre amarela”) e destaque principal da editoria Cotidiano, com seis textos. No dia seguinte, 15 de janeiro, a Folha publicou seu primeiro editorial acerca do evento, indicando a relevância do tema para os donos do jornal. Nesse pequeno recorte do corpus de 2008 a palavra "epidemia" (e duas variáveis, “epidemias” e “não-epidemia”) aparecem dez vezes, enquanto "surto", que era o que de fato estava em curso, apenas uma.
Em contrapartida, na totalidade do corpus de 2017 (71 matérias) a palavra “epidemia” aparece apenas quatro vezes, duas delas no editorial “Febre de vacinas” (27/01). Exatamente para afastar a tese de evolução epidêmica da doença, o texto é peremptório: “Não se pode falar de epidemia no caso da febre amarela”. Em todos os textos em que havia caracterização do evento, o jornal empregou o termo “surto”.
Em 2008, os eixos narrativos “crescimento progressivo” e “inimigo letal” eram frequentemente articulados, inclusive nas 15 chamadas de capa sobre a febre amarela, 12 das quais publicadas quase consecutivamente, em que se destacam repertórios que explicitavam sentidos de descontrole e letalidade da febre amarela (“primeira morte”; “2ª morte”; “5ª morte”; “7 mortes”; “8 o total de mortes”; “9ª morte”).
Em 2017, foram oito capas, mas em apenas duas o número de óbitos foi destacado: “Ministério admite, após 8 mortes, surto de febre amarela” (19/01) e “Cidades paulistas têm três mortes por febre amarela” (24/01).
“Vacine-se”: orientação da imprensa gera esgotamento de estoque antiamarílico no país
“Com sua licença, vou usar este espaço para fazer um apelo para você que mora no Brasil, não importa onde: vacine-se contra a febre amarela! Não deixe para amanhã, depois, semana que vem... Vacine-se logo! A febre amarela é uma doença infecciosa causada por vírus e pode ser fatal. Hoje mesmo (terça, 08/01/2008), morreu um homem de 38 anos em Brasília, plena capital da República, com febre alta, dores musculares, náuseas e vômitos. Possivelmente, foi vítima da doença. O alerta nem é mais amarelo, já é vermelho. E a vacina é altamente eficaz. Tomou, está livre da doença”.
O trecho acima, do artigo “Alerta amarelo!”, é um dos exemplos mais emblemáticos do discurso a favor da vacinação. Publicado por Eliane Cantanhêde, apresentada então como uma das jornalistas de política mais influentes do jornal, na coluna Pensata, exclusiva da Folha Online, ele resume bem a autoridade da qual a imprensa se imbuiu – e que gerou uma crise no estoque de vacinas no país.
Em 2008, uma narrativa em forma de fábula alçou a vacina à condição de “poção mágica”, apresentada como um dispositivo capaz de proteger a população do “inimigo letal” de modo “infalível”. Nessa perspectiva, a imprensa passou a atuar como porta-voz do uso irrestrito da vacina, de modo geral sem destacar seus potenciais efeitos adversos. Então, a demanda explodiu, inclusive naquelas regiões que estavam fora das áreas de ocorrência da doença, clássicas e/ou de transmissão viral.
Para se ter uma ideia do impacto desse sentido, entre o final de dezembro de 2007 (primeiras notícias) e 22 de fevereiro de 2008 (esgotamento da pauta) foram distribuídas em todo País mais de 13 milhões de doses da vacina. Desse total, 7,6 milhões de doses foram aplicadas em pouco menos de dois meses, 6,8 milhões só em janeiro.
Um dos três fabricantes mundiais pré-qualificados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), no período, o Brasil não só suspendeu a exportação do antiamarílico, como também apresentou um pedido de empréstimo de quatro milhões de doses do estoque de emergência global.
São Paulo, que até 2008 tinha mais da metade do seu território livre da circulação do vírus, foi vice-campeão de doses aplicadas (mais de 2,4 milhões), atrás apenas de Goiás (quase 2,8 milhões), endêmico desde o início da década de 2000. Só na capital paulista, foram aplicadas 428.337 doses, mais de cinco vezes do que em 2007 (79.666). Os casos de efeitos adversos aumentaram exponencialmente, chegando a mais do que o dobro daqueles transmitidos pelo mosquito. Então, veio o desfecho mais grave: quatro mortes por febre amarela vacinal, todas no estado de São Paulo.
Em contraposição, na cobertura de 2017, o enquadramento da vacina pode ser classificado como cauteloso. Já na segunda matéria, “Vacina contra a febre amarela requer cautela”, destacada em chamada de capa (13/01), depois de demonstrar os riscos da vacinação indiscriminada, o texto alerta: “Por isso, é preciso seguir à risca as orientações das autoridades sanitárias sobre quais regiões e grupos populacionais devem ser vacinados”.
No editorial já citado ("Febre de vacinas", 27/01), a preocupação é com o aumento da demanda vacinal em regiões sem recomendação: “Compete ao poder público distribuir doses de maneira eficiente aos locais que de fato necessitam delas. Precisa ainda esmerar-se mais na comunicação sobre quem deve vacinar-se e onde, para prevenir uma epidemia de pânico e a desorganização geral do sistema”.
Antes, em outro editorial (“Alerta amarelo”, 18/01), o jornal já apontara o risco da vacinação sem recomendação: “Em meio a uma corrida indiscriminada por vacinas em 2007 e 2008, houve oito casos de reação adversa grave à vacina, com seis mortes”. Além dos dois editoriais, diferentes matérias e edições trouxeram informações sobre a população-alvo da vacina e os riscos de efeitos adversos.
Este ano, embora tenha pairado um eventual desabastecimento – chegando mesmo a ser detectada a falta pontual da vacina em algumas regiões do País, sobretudo naquelas em que o surto já tinha sido confirmado (Minas Gerais, Espírito Santo e São Paulo) ou nas quais surgiram casos inesperados, como no Rio de Janeiro, em março –, não houve uma “corrida pela vacina”, como a registrada em 2008. Ao longo de 2017, o aumento da demanda vacinal esteve atrelado às recomendações do ministério e das secretarias estaduais e municipais de Saúde, a reboque das ações de contenção do vírus, e não do noticiário.
Não tivesse se desenrolado em contexto político-institucional tão diverso, talvez fosse possível deduzir que a não epidemia midiática de 2017 foi resultado de um aprendizado advindo das consequências da epidemia midiática de 2008, capaz de mudar as práticas do jornalismo de massa na abordagem sobre o tema.
Porém, não sendo esse o quadro geral, restará sempre uma dúvida: se fosse a petista Dilma Rousseff e não o peemedebista Michel Temer a presidir o país, teríamos em 2017 uma febre amarela midiática?
* Claudia Malinverni é jornalista e doutora pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). O artigo completo sobre o tema foi publicado no n° 2 da revista Reciis (Icict/Fiocruz) deste ano.
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