O conceito de separação de poderes, fundamental para a democracia, tem sido pisoteado no estado de São Paulo. Uma tese de doutorado publicada neste ano na FGV-SP pela advogada Luciana Zaffalon confirma a percepção que sempre se teve sobre a promiscuidade entre Executivo, Legislativo e o Judiciário em solo bandeirante.
Foi a partir da experiência como ouvidora externa da Defensoria Pública do Estado de São Paulo que Zaffalon decidiu estudar as dinâmicas que operam no funcionamento da Justiça paulista. A pesquisa analisou centenas de projetos de lei e documentos das instituições judiciárias de São Paulo (Tribunal de Justiça, Defensoria Pública e Ministério Público) entre 2012 e 2015 e concluiu haver uma relação de compadrio com governo do Estado e Assembleia Legislativa (Alesp). A força política do PSDB, hegemônica no estado de São Paulo, opera dentro do sistema de justiça, numa dinâmica em que os poderes se blindam e defendem seus interesses corporativos.
Luciana fez um levantamento dos pedidos de suspensão de decisões judiciais solicitados pelo governador paulista ao Tribunal de Justiça.Todos os recursos contra o Estado vão para lá, a segunda instância, um lugar em que Alckmin raramente sai com uma decisão desfavorável. Há uma única situação em que o governo perde todas as vezes: quando questiona o teto salarial das carreiras jurídicas, as mais bem pagas do Estado. Por outro lado, 82% dos “processos que trataram de licitações, contratos ou atos administrativos” foram aprovados, assim como 87% das “questões afetas à privação de liberdade” – relativas à suspensão de direitos dos presos. São casos de transferência por superlotação, problemas com banheiros, com ventilação e descumprimentos do Estatuto da Criança e do Adolescente na Fundação Casa. Bruno Shimizu, defensor público do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública, foi entrevistado para a pesquisa e deu um exemplo:
“em uma ação pedimos a instalação de aparelhos para aquecimento de água nos dias mais frios do ano porque os presos com tuberculose tomam banho frio. Mesmo no inverno, tomam banho frio. A gente entrou com uma ação pública bem instruída, com parecer médico, prova. O juiz concedeu uma liminar mandando o Estado em 60 dias fazer as obras para instalar pelo menos um chuveiro por raio. Essa liminar foi suspensa pelo presidente do Tribunal, na época ainda era o Ivan Sartori, e está suspensa até hoje.”
Em 2015, 96,8% dos membros de carreira do Ministério Público paulista tiveram rendimento mensal de R$ 46 mil, muito acima do teto constitucional, que era de R$ 33.763. Tudo isso sem contar férias e 13º salário. Parece que o termo “constitucional” não vale para essa casta abastada.
O Legislativo também entra nessa rede de camaradagem. Todo começo de ano, após a aprovação das Leis Orçamentárias, a Alesp transfere para o governador o poder de requisitar suplementações orçamentárias, uma atribuição que deveria ser dos deputados, segundo a Constituição do estado. Segundo a pesquisa, só em 2015, isso resultou em quatro aumentos de verbas para o Tribunal de Justiça em formas de auxílios creche, alimentação e funeral.
Zaffalon analisou 404 propostas legislativas apresentadas à Alesp que propunham mudanças no sistema judiciário entre 2012 e 2015. Apenas 17% delas não implicaram em aumento do orçamento, o restante resultou em bonificações e auxílios diversos. Os campeões em aprovação em propostas, claro, foram os tucanos.
Quando consideramos a taxa de aproveitamento dos projetos, o governador do Estado assume destacada diferença frente aos demais, com 91% de suas propostas aprovadas. É seguido pelos deputados do mesmo partido (PSDB) Mauro Bragato, que obteve aprovação de 36% de suas propostas, e Fernando Capez, com 23% de aprovação.
Oriundo do Ministério Público paulista, Fernando Capez (PSDB) foi presidente da Alesp até março deste ano, quando foi substituído por Cauê Macris (PSDB), eleito com 88 dos 94 votos. Os tucanos ocupam a presidência da casa há 10 anos ininterruptamente, uma hegemonia para ninguém botar defeito. Não é à toa que lá CPIs são engavetadas em série.
Capez tem um irmão procurador aposentado, um outro irmão que é juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo e sua esposa e uma cunhada fazem parte do corpo do Ministério Público paulista.
Outro fato curioso é a proximidade quase umbilical entre o MP e a Secretaria de Segurança Pública. Dos oito secretários que ocuparam a pasta nos últimos 20 anos, apenas um não veio do MP. Promotores que hoje fiscalizam as ações da Polícia Militar são potenciais candidatos a comandantes dela amanhã, basta não desagradarem o governador e se manterem alinhados ideologicamente. É esse o nível de independência judicial em São Paulo. Talvez ajude a explicar a dificuldade do MP em investigar a violência policial em manifestações e nas periferias, em questionar a política de encarceramento em massa e a recorrente prática de tortura nas delegacias.
A lógica se repete em outras áreas do governo, como mostra a Agência Pública:
“de janeiro de 2015 a 2016 dez membros do MPSP se afastaram para ocupar cargos no Executivo estadual. Desses, três foram para a SSP e quatro para a Secretaria de Meio Ambiente. Outros dois deixaram temporariamente o órgão por posições na Assembleia Legislativa. A Corregedoria-Geral do Estado de São Paulo também passou a ser presidida por um procurador. Todos puderam manter os salários de promotor ou procurador, maiores do que os pagos no Executivo e no Legislativo.”
A lerdeza e a omissão com que são tratados casos de corrupção envolvendo tucanos em São Paulo é flagrante. O escândalo do cartel dos trens é o exemplo mais clássico. Em 2011, autoridades suíças solicitaram ao Ministério Público investigações sobre três suspeitos no caso. O procurador Rodrigo de Grandis, responsável pelas investigações no Brasil, ficou quase três anos sem responder. Depois de muito insistirem, os suíços cansaram de esperar e desistiram de prosseguir no caso, arquivando a investigação. O motivo alegado pelo procurador é um escárnio: o pedido foi guardado em uma pasta errada.
Apesar de estar escancaradamente consolidada no estado, essa calamidade na separação dos poderes não é uma exclusividade paulista. Ela se repete em menor grau em outros estados da federação. Como bem lembrou a jornalista Maria Cristina Fernandes – uma das poucas vozes da grande mídia a comentar a pesquisa de Zaffalon – em um momento em que se fala muito sobre a “judicialização da política”, é bom atentar também à outra face da moeda, a “politização do judiciário”.
Poderes que deveriam estar se moderando, trabalhando como contrapesos a fim de evitar autoritarismos, estão do mesmo lado da balança e funcionando como linhas auxiliares entre si. Enquanto esse conluio de elites serve para manter privilégios e atender a interesses corporativos, à maioria pobre restam o abuso de autoridade, a violência policial, a tortura e as cadeias.
Foi a partir da experiência como ouvidora externa da Defensoria Pública do Estado de São Paulo que Zaffalon decidiu estudar as dinâmicas que operam no funcionamento da Justiça paulista. A pesquisa analisou centenas de projetos de lei e documentos das instituições judiciárias de São Paulo (Tribunal de Justiça, Defensoria Pública e Ministério Público) entre 2012 e 2015 e concluiu haver uma relação de compadrio com governo do Estado e Assembleia Legislativa (Alesp). A força política do PSDB, hegemônica no estado de São Paulo, opera dentro do sistema de justiça, numa dinâmica em que os poderes se blindam e defendem seus interesses corporativos.
Luciana fez um levantamento dos pedidos de suspensão de decisões judiciais solicitados pelo governador paulista ao Tribunal de Justiça.Todos os recursos contra o Estado vão para lá, a segunda instância, um lugar em que Alckmin raramente sai com uma decisão desfavorável. Há uma única situação em que o governo perde todas as vezes: quando questiona o teto salarial das carreiras jurídicas, as mais bem pagas do Estado. Por outro lado, 82% dos “processos que trataram de licitações, contratos ou atos administrativos” foram aprovados, assim como 87% das “questões afetas à privação de liberdade” – relativas à suspensão de direitos dos presos. São casos de transferência por superlotação, problemas com banheiros, com ventilação e descumprimentos do Estatuto da Criança e do Adolescente na Fundação Casa. Bruno Shimizu, defensor público do Núcleo de Situação Carcerária da Defensoria Pública, foi entrevistado para a pesquisa e deu um exemplo:
“em uma ação pedimos a instalação de aparelhos para aquecimento de água nos dias mais frios do ano porque os presos com tuberculose tomam banho frio. Mesmo no inverno, tomam banho frio. A gente entrou com uma ação pública bem instruída, com parecer médico, prova. O juiz concedeu uma liminar mandando o Estado em 60 dias fazer as obras para instalar pelo menos um chuveiro por raio. Essa liminar foi suspensa pelo presidente do Tribunal, na época ainda era o Ivan Sartori, e está suspensa até hoje.”
Em 2015, 96,8% dos membros de carreira do Ministério Público paulista tiveram rendimento mensal de R$ 46 mil, muito acima do teto constitucional, que era de R$ 33.763. Tudo isso sem contar férias e 13º salário. Parece que o termo “constitucional” não vale para essa casta abastada.
O Legislativo também entra nessa rede de camaradagem. Todo começo de ano, após a aprovação das Leis Orçamentárias, a Alesp transfere para o governador o poder de requisitar suplementações orçamentárias, uma atribuição que deveria ser dos deputados, segundo a Constituição do estado. Segundo a pesquisa, só em 2015, isso resultou em quatro aumentos de verbas para o Tribunal de Justiça em formas de auxílios creche, alimentação e funeral.
Zaffalon analisou 404 propostas legislativas apresentadas à Alesp que propunham mudanças no sistema judiciário entre 2012 e 2015. Apenas 17% delas não implicaram em aumento do orçamento, o restante resultou em bonificações e auxílios diversos. Os campeões em aprovação em propostas, claro, foram os tucanos.
Quando consideramos a taxa de aproveitamento dos projetos, o governador do Estado assume destacada diferença frente aos demais, com 91% de suas propostas aprovadas. É seguido pelos deputados do mesmo partido (PSDB) Mauro Bragato, que obteve aprovação de 36% de suas propostas, e Fernando Capez, com 23% de aprovação.
Oriundo do Ministério Público paulista, Fernando Capez (PSDB) foi presidente da Alesp até março deste ano, quando foi substituído por Cauê Macris (PSDB), eleito com 88 dos 94 votos. Os tucanos ocupam a presidência da casa há 10 anos ininterruptamente, uma hegemonia para ninguém botar defeito. Não é à toa que lá CPIs são engavetadas em série.
Capez tem um irmão procurador aposentado, um outro irmão que é juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo e sua esposa e uma cunhada fazem parte do corpo do Ministério Público paulista.
Outro fato curioso é a proximidade quase umbilical entre o MP e a Secretaria de Segurança Pública. Dos oito secretários que ocuparam a pasta nos últimos 20 anos, apenas um não veio do MP. Promotores que hoje fiscalizam as ações da Polícia Militar são potenciais candidatos a comandantes dela amanhã, basta não desagradarem o governador e se manterem alinhados ideologicamente. É esse o nível de independência judicial em São Paulo. Talvez ajude a explicar a dificuldade do MP em investigar a violência policial em manifestações e nas periferias, em questionar a política de encarceramento em massa e a recorrente prática de tortura nas delegacias.
A lógica se repete em outras áreas do governo, como mostra a Agência Pública:
“de janeiro de 2015 a 2016 dez membros do MPSP se afastaram para ocupar cargos no Executivo estadual. Desses, três foram para a SSP e quatro para a Secretaria de Meio Ambiente. Outros dois deixaram temporariamente o órgão por posições na Assembleia Legislativa. A Corregedoria-Geral do Estado de São Paulo também passou a ser presidida por um procurador. Todos puderam manter os salários de promotor ou procurador, maiores do que os pagos no Executivo e no Legislativo.”
A lerdeza e a omissão com que são tratados casos de corrupção envolvendo tucanos em São Paulo é flagrante. O escândalo do cartel dos trens é o exemplo mais clássico. Em 2011, autoridades suíças solicitaram ao Ministério Público investigações sobre três suspeitos no caso. O procurador Rodrigo de Grandis, responsável pelas investigações no Brasil, ficou quase três anos sem responder. Depois de muito insistirem, os suíços cansaram de esperar e desistiram de prosseguir no caso, arquivando a investigação. O motivo alegado pelo procurador é um escárnio: o pedido foi guardado em uma pasta errada.
Apesar de estar escancaradamente consolidada no estado, essa calamidade na separação dos poderes não é uma exclusividade paulista. Ela se repete em menor grau em outros estados da federação. Como bem lembrou a jornalista Maria Cristina Fernandes – uma das poucas vozes da grande mídia a comentar a pesquisa de Zaffalon – em um momento em que se fala muito sobre a “judicialização da política”, é bom atentar também à outra face da moeda, a “politização do judiciário”.
Poderes que deveriam estar se moderando, trabalhando como contrapesos a fim de evitar autoritarismos, estão do mesmo lado da balança e funcionando como linhas auxiliares entre si. Enquanto esse conluio de elites serve para manter privilégios e atender a interesses corporativos, à maioria pobre restam o abuso de autoridade, a violência policial, a tortura e as cadeias.
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