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1. Introdução
O imenso impacto gerado pela emergência em saúde pública de uma nova doença que, rapidamente, deixou a condição de um surto localizado na cidade chinesa de Wuhan, na província de Hubei, em final de dezembro de 2019, para se tornar uma pandemia alertada pela OMS em 11 de março de 2020 ainda não está exatamente dimensionada. Uma pandemia de curso dinâmico que se abate em diferentes perfis epidemiológicos em todo o globo e agudiza as incertezas econômicas, ambientais e sociais no contexto mundial, além de evidenciar a crise profunda de paradigma que vivemos e lança, ao mesmo tempo, desafios para construir significativas mudanças conjunturais e estruturais capaz de romper com o atual modelo e modo de produção.
Evidencia-se a necessidade de uma proposta de desenvolvimento fundamentada no estabelecimento de uma interação humana positiva na sociedade, nos agroecossistemas e nos ecossistemas como um todo. Ampliam-se as certezas em torno da necessidade de produzir alimentos que promovam a saúde humana e o fortalecimento e autonomia da agricultura familiar/camponesa. Contudo, o atual modelo de produção predominante, imposto pelas grandes corporações agroalimentares do agronegócio, dependente de sementes transgênicas, inseticidas, fungicidas, herbicidas e adubos químicos, de alto custo econômico e ambiental comprometem a continuidade de muitas unidades de produção e a vida familiar no campo e na cidade, deixando com frequência resíduos tóxicos nos alimentos, na água, ar e no meio ambiente como um todo.
Uma das formas, que na sua trajetória histórica, desafia a construção de uma nova proposta para o campo em contraposição ao modelo agroquímico/industrial é a agroecologia com importantes avanços organizacionais e de produção com os sistemas agroflorestais, pastoreio racional Voisin, hortas e lavouras agroecológicas. O processo de construção da transição agroecológica tem preocupado desde há muito tempo agricultores e técnicos acerca das técnicas e estratégias mais adequadas a serem praticadas nessa caminhada, enfrentando muitas dificuldades para dialogar nos territórios e no universo mais amplo da agricultura familiar.
O Sistema de Plantio Direto de Hortaliças (SPDH), a partir de sua trajetória histórica de mais de 20 anos de construção, se apresenta como uma proposta técnica e sobretudo político-pedagógica de transição agroecológica para agregar toda agricultura familiar-camponesa, capaz de responder ao desafio de produzir alimentos de verdade e em quantidade para atender a demanda nacional, com elevada produtividade das lavouras e criações associado ao baixo custo econômico e ambiental. A construção deste Método iniciou-se com hortaliças, mas se aplica a todas as culturas na produção de alimentos como grãos e frutas.
2. Centrado na transição com o olhar do simples para o complexo: dos valores e da natureza
Para modificar a atual realidade é necessário construir um processo de contra hegemonia que inclua todos os trabalhadores do campo, que trazem consigo diversos interesses construídos na sua trajetória histórica. Assim, é necessário um processo de mediação, que conecte o aqui e agora (atual modelo agroquímico e modo de produção capitalista) com o futuro desejado (modelo agroecológico e modo de produção socialista) como desafio do coletivo de trabalho. A chave está no processo de transição, que deve extrapolar o limite de grupos pouco expressivos no universo geral das comunidades e dos territórios; marcado, frequentemente, por uma agroecologia fechada em si e crescentemente enquadrada no paradigma do capitalismo agrário. A transição precisa incorporar uma competência político-econômica-pedagógica-técnica capaz de superar o limite da crítica discursiva ao modelo hegemônico, comum ao nosso campo democrático e popular, para dialogar com a realidade na sua totalidade concreta e a partir dela, exercer um caminho possível satisfazendo as necessidades individuais e da sociedade, inclusive materiais.
A experiência do SPDH, ao enfrentar a realidade da alta produtividade, individualismo, competição, busca pelo conforto humano, segurança de renda e do baixo custo de produção, tem disputado o modelo e questionado o modo de produção no centro luminoso das tecnologias da agricultura industrial. Caracteriza-se como uma proposta de transição agroecológica com dois eixos interligados de atuação. O político pedagógico, centrado na concepção metodológica dialética, que costura as contradições na sociedade e a participação de profissionais, famílias agricultoras, comunidades, organizações e movimentos populares do campo e da cidade como sujeitos na transformação. E o técnico-científico, com base na promoção de saúde da planta, considerando a planta como sistema de informação ecológica. A ligação umbilical entre os dois eixos tem como objetivo principal construir um movimento de transição que possibilite a todos os envolvidos reinterpretar os conhecimentos já produzidos e adaptar e produzir outros socialmente apropriados.
Os valores hegemônicos dos trabalhadores envolvidos inicialmente no movimento foram construídos no tempo histórico do atual modo de produção com ênfase no individualismo, produtividade, consumismo, lucro e competição. Valores relacionados com o poder na sociedade. Dialogar com esses e outros valores da realidade significa romper com tradições puristas e idealistas para formar um movimento agregador e massivo. É no interior e ao longo desse que se promove e facilita que todos possam acessar novos valores societários de comunidade, solidariedade, cooperação e produção de alimentos de verdade para todos. Essa práxis parte de conhecimentos depositados, portanto simples; para o complexo, contido na totalidade concreta das relações humano-natureza-humano, reelaborados pelos sujeitos individuais e coletivos e mediado pelas atividades contratadas na forma de encontros, visitas, viagens, discussões e lavouras e comunidades de estudos. Conteúdos esses, sistematizados no livro “O Sistema de Plantio Direto de Hortaliças (SPDH) - Método de transição para um novo modo de produção", da editora Expressão Popular, Fayad et al, 2019.
3. Saindo da dependência para um novo modelo e modo de produção
A crise em saúde pública gerada pela pandemia da Covid-19 coloca em xeque esse modelo de sociedade e abre um processo de avaliação sagaz dos rumos que tomamos. Uma das formas mais conhecidas de emergência de novas doenças infecciosas é dada na destruição de ecossistemas evoluídos e estáveis pela ação humana, abrindo assim a possibilidade de doenças, que possuíam um ciclo silvestre estabelecido, "migrarem", por um maior contato com humanos, e se tornarem problemas em saúde pública. As doenças infecciosas são antes de qualquer coisa uma relação biológica. Desta forma, agroecossistemas mais diversificados contribuem para a preservação ambiental e o aumento da complexidade, tendo como consequência uma menor pressão de seleção e menor probabilidade do surgimento de agentes causadores de doenças, a exemplo da gripe suína, da gripe aviária e do atual Covid-19 entre tantos outros, que são também, consequência dos modelos de produção altamente predatórios, simplificados e especializados do agronegócio.
Outro aspecto relaciona-se à capacidade do hospedeiro humano responder ao agente infeccioso, ou seja, na sua resposta imunológica individual devemos levar em conta, de uma maneira geral, para todas as doenças desse tipo: o estado nutricional, as comorbidades, idade, presença de estresse físico e emocional, etc. Assim podemos dizer, simplificadamente, que uma melhor resposta imunológica está atrelada ao melhor estado nutricional do indivíduo e ao seu bem estar. Esse conceito também se estende ao coletivo da sociedade, ou seja, povos e populações que detém melhores condições alimentares e vivem em ambientes mais saudáveis possuem melhores condições de saúde.
De alguma forma esses temas vem sendo gestionados no movimento agroecológico, sendo que, o SPDH concentrou esforços em desenvolver um Método que dialogue e pratique com toda agricultura familiar/camponesa, num movimento de contra hegemonia para produção de alimentos cada vez mais limpos e em agroecossistemas cada vez mais complexos. Esse movimento inclui todos como sujeitos na construção do novo modelo de produção, focando na promoção de saúde de plantas, com aumento de produtividade e diminuição dos custos econômicos e ambientais. Num primeiro momento, a virtude dessa construção embrionária é estar disputando exitosamente no centro luminoso da produção capitalista, que é a produção intensiva de hortaliças. Como consequência, se exige maior aplicação de conhecimentos técnico-científicos e político pedagógicos no processo de transição, uma vez que foi nesse meio que melhor se desenvolveu o modelo de produção agroquímico e também a práxis do trabalhador histórico como o mais individualista, competidor, produtivista e especialista. Com o êxito político-pedagógico e técnico cientifico do Método do SPDH na produção de hortaliças, ele se prepara para disputar no maior centro nacional consumidor das tecnologias do agronegócio, que é a produção de soja, cana, milho, arroz e feijão.
Enfim, é imprescindível que dessa crise emerja uma capacidade coletiva, como vontade e ação, para corrigir nossos rumos enquanto campo socialista, capaz de aglutinar nossas diversas especialidades para atualizar e aprimorar nossas condições de intervir nessa conjuntura de rearranjo estrutural da sociedade humana, a fim de hegemonizar a coevolução, a preservação ecológica e a capacidade de produção e reprodução da agricultura familiar/camponesa. Certamente, é necessário ajustar o papel da ciência, cultura, ensino, pesquisa e extensão para estabelecer novas condições nas relações sociais e de produção e rever a detenção dos meios de produção da vida material, suprimindo o acúmulo de renda e riqueza que gera desigualdade.
* Valdemar Arl é engenheiro agrônomo, Dr., agroecologista e educador popular; Yasser Jamil Fayad é médico infectologista pediátrico; Jamil Abdalla Fayad é engenheiro agrônomo MSc pesquisador-extensionista Sênior; Edson Walmor Wuerges é engenheiro agrônomo MSc, pesquisador-extensionista Sênior; Darlan Rodrigo Marchesi é engenheiro agrônomo MSc, pesquisador-extensionista Epagri; e Pedro Ivan Christoffoli é engenheiro agrônomo, Dr., professor UFFS.
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