Por Roberto Amaral, em seu blog:
O populismo de extrema-direita, que hoje toma o nome de bolsonarismo, não é fruto do acaso, nem jabuticaba em pé de goiabeira: sua emergência responde a uma necessidade do processo político brasileiro, marcado pela presença ativa de setores radicalmente conservadores de nossa sociedade cuja formação deita raízes na escravidão de negros e no genocídio das populações nativas. Somos, desde as origens coloniais, uma sociedade racista e autoritária, de um autoritarismo larvar que pervade todos os escaninhos das relações sociais, econômicas e pessoais. O poder sempre esteve enfeixado nas mãos de uns poucos proprietários brancos, senhores da terra, da liberdade e da vida do “povo”, os outros, o “povaréu”, que hoje os sociólogos prezam chamar de “classes subalternas”. Pois subalternos, população secundarizada, eram todos os não-proprietários.
Simplesmente nos esquecemos de que a direita sempre foi majoritária nestas plagas. Para não ir muito longe, nos esquecemos das mobilizações da Ação Integralista (que chegou a ter 500 mil filiados nos anos 1930, quando a população brasileira rondava os 40 milhões), e não levamos em consideração, contemporaneamente, o papel ideológico da grande mídia e do fundamentalismo religioso (ou cristianismo utilitarista) no cotidiano ofício de alienação das massas. Mas, igualmente não vimos a frustração de significativos setores de nossa população diante de nossos governos e de nossos partidos, e de muitas de nossas lideranças, sob o fogo cerrado de uma mídia adversa.
Como as irrupções anteriores, o bolsonarismo (a expressão dessa extrema-direita) reproduz os interesses da casa-grande (seus interesses e seus preconceitos, sua alienação e sua sabujice em face do império do momento) e, ao mesmo tempo, expande seu território, pois incorpora setores significativos das grandes massas e da classe média. No processo eleitoral incorpora a adesão de contingentes significativos do que se conhece no Brasil como centro politico.
Desta feita chega ao poder. É o fato novo.
O governo, em que pese a crescente oposição (a avaliação negativa teria crescido oito pontos desde março), conserva o apoio de sua base (variante entre 25% e 30% do eleitorado), o respaldo das forças armadas e da classe dominante, o dito “mercado” e os procuradores do império. Conta, ainda, com um Congresso que, malgrado aspirações de autonomia vocalizadas por algumas lideranças, é profundamente conservador, como, de resto, as instituições da república. Apostar nelas (como, por exemplo, na judicialização da política) é uma ilusão liberal em conflito com a história.
No cenário de hoje há um grande ausente: o movimento social, retirando da esquerda seu grande trunfo, a força das ruas, seu leito natural, que, em alguns momentos de nossa história (como a defesa da legalidade em 1961), mudou o rumo do processo histórico.
O capitão conta a seu favor com esse fastio da ação de massas, aprofundado pelas medidas de proteção social impostas pelo combate à pandemia. Por enquanto ele simplesmente testa os limites; os limites de suas próprias forças e os limites da resistência ao seu projeto. Seu avanço está sempre condicionado ao recuo das forças democráticas.
No recesso das movimentações de massa, o enfrentamento ao governo se dá, fundamentalmente, em duas frentes, a da imprensa e a da oposição parlamentar. A grande mídia, sempre reacionária, porém, se lhe faz oposição política, apóia a “pauta Guedes”. No Congresso, instituição com baixa ressonância popular, uma minoria mínima, sem peso nas decisões, faz o possível para conter o governo em seus desmandos.
A esquerda, sem vínculo orgânico com as massas, só pode aspirar a ser o progressismo liberal de um congresso conservador.
Apesar do desastre administrativo, da falência do “posto Ipiranga” e da pandemia do coronavírus, o capitão insiste em seu projeto golpista. Com o espetáculo grotesco e grave do dia 19 de abril – o comício em frente ao quartel general do exército em Brasília – o jogo ficou claro, mesmo para os que se protegem em sua zona de conforto, simplesmente recusando o convívio com a realidade.
A defesa da democracia, a partir de ameaças concretas que quase diariamente partem, ora do presidente, ora de sua récua de apoiadores, impõe-se, portanto, como projeto prioritário. Transcende os limites da esquerda e dos arraiais da oposição, porque diz respeito a todos os democratas, qualquer que seja o naipe de sua filiação ideológica. Eleva-se ao nível de questão estratégica.
Porque, sem democracia, não há nem política nem oposição qualquer.
A questão democrática é crucial para a esquerda brasileira, como opção de princípio, decantada pelo processo histórico. Cruciais foram as lições colhidas na luta contra a ditadura. Aprendemos. Se não nos iludimos quanto aos limites da democracia liberal-burguesa, na qual vivemos, igualmente não podemos ter dúvidas de que sua alternativa, a ditadura em qualquer de suas versões, é o regime que atenta contra as liberdades e os direitos civis, impõe o retrocesso político, asfixia a organização popular e sindical. Fortalece o poder da classe dominante e torna ainda mais frágeis os direitos dos trabalhadores. É o anteparo dos poderosos contra os pobres. Devemos combatê-la, sempre.
Por consequência da defesa da democracia como conditio sine qua non da luta política, impõe-se o enfrentamento ao bolsonarismo e ao que ele representa e, igualmente sem tréguas, o combate ao atual governo, dele descendente. As condições objetivas da luta, hoje, dizem que devemos nos esforçar para a concertação de uma frente política, a mais ampla possível, pois deverá abrigar todas aquelas forças que, pelas mais variadas razões, se dispõem a lutar contra o governo do capitão. Essa frente se volta para o presente. Derrotado o governo, outras sendas se abrem, outros caminhos serão testados e percorridos. A questão eleitoral não se coloca agora.
Sem prejuízo do enfrentamento ao governo, a esquerda deve disputar as grandes massas, intentar o diálogo com os divergentes, ouvir, esclarecer e debater, mas – trata-se de questão a mais relevante – sem receio de denunciar a luta de classes, chave para compreender o processo histórico e nele poder intervir. Nosso discurso precisa ter como eixo, a um só tempo, a crítica ao capitalismo e a defesa das alternativas oferecidas pelo socialismo, teses e objetivos a que renunciamos pelo menos desde 2002 (os fatos mostrariam que a “Carta aos brasileiros” não era, apenas, uma peça de marketing político).
Para retomar o diálogo com as grandes massas, perdidas, precisamos rever táticas e estratégias clássicas, reavaliar políticas de organização e, mesmo, pôr em questão alguns princípios tomados como dogmas na vulgata leninista.
Sem, evidentemente, ignorar o aqui e agora, mas a ele não se cingindo, as forças de esquerda e democráticas, populares no seu sentido geral, devem já voltar suas atenções para esse amanhã de aprofundamento de crises que se desenha no horizonte, onde já se enxergam a recessão econômica e o desemprego, estimado (projeção para julho próximo) em 20 milhões de trabalhadores.
Do contrário permaneceremos, como hoje, relegados ao papel de meros assistentes do real jogo de poder, aquele que se trava no âmbito restrito da casa-grande, onde empresários, militares e os procuradores do império traficam nosso futuro. E se assim for, ou seja, se não recuperarmos as condições de intervir no processo social, só nos restará, uma vez mais, ouvir o diktat da classe dominante, o privadíssimo clube do 1% de ricos e milionários que nos governa desde sempre.
A tática da oposição, desde logo, deve visar ao maior desgaste do governo junto às grandes massas, fustigando-o permanentemente em todos os planos oferecidos pelas circunstâncias, visando sempre a ampliar seu raio de influência, ou seja, perseguindo aquele mundo ideológico que desponta para além de nossas convicções e de nossos quadros.
Que fazer?
Organizarmo-nos para alterar a presente correlação de forças (que não é um determinismo, mas uma contingência), porque o mais efetivo combate ao bolsonarismo deverá travar-se no plano ideológico, vale dizer, na disputa da consciência popular.
O populismo de extrema-direita, que hoje toma o nome de bolsonarismo, não é fruto do acaso, nem jabuticaba em pé de goiabeira: sua emergência responde a uma necessidade do processo político brasileiro, marcado pela presença ativa de setores radicalmente conservadores de nossa sociedade cuja formação deita raízes na escravidão de negros e no genocídio das populações nativas. Somos, desde as origens coloniais, uma sociedade racista e autoritária, de um autoritarismo larvar que pervade todos os escaninhos das relações sociais, econômicas e pessoais. O poder sempre esteve enfeixado nas mãos de uns poucos proprietários brancos, senhores da terra, da liberdade e da vida do “povo”, os outros, o “povaréu”, que hoje os sociólogos prezam chamar de “classes subalternas”. Pois subalternos, população secundarizada, eram todos os não-proprietários.
Simplesmente nos esquecemos de que a direita sempre foi majoritária nestas plagas. Para não ir muito longe, nos esquecemos das mobilizações da Ação Integralista (que chegou a ter 500 mil filiados nos anos 1930, quando a população brasileira rondava os 40 milhões), e não levamos em consideração, contemporaneamente, o papel ideológico da grande mídia e do fundamentalismo religioso (ou cristianismo utilitarista) no cotidiano ofício de alienação das massas. Mas, igualmente não vimos a frustração de significativos setores de nossa população diante de nossos governos e de nossos partidos, e de muitas de nossas lideranças, sob o fogo cerrado de uma mídia adversa.
A ascensão da extrema-direita brasileira é, pois, fato histórica e socialmente compreensível; todavia, não será corretamente interpretada quando apartada do quadro internacional, dominado por um neoconservadorismo que beira as raias do protofascismo. Nada do que ocorre entre nós lhe é estranho.
Como as irrupções anteriores, o bolsonarismo (a expressão dessa extrema-direita) reproduz os interesses da casa-grande (seus interesses e seus preconceitos, sua alienação e sua sabujice em face do império do momento) e, ao mesmo tempo, expande seu território, pois incorpora setores significativos das grandes massas e da classe média. No processo eleitoral incorpora a adesão de contingentes significativos do que se conhece no Brasil como centro politico.
Desta feita chega ao poder. É o fato novo.
O governo, em que pese a crescente oposição (a avaliação negativa teria crescido oito pontos desde março), conserva o apoio de sua base (variante entre 25% e 30% do eleitorado), o respaldo das forças armadas e da classe dominante, o dito “mercado” e os procuradores do império. Conta, ainda, com um Congresso que, malgrado aspirações de autonomia vocalizadas por algumas lideranças, é profundamente conservador, como, de resto, as instituições da república. Apostar nelas (como, por exemplo, na judicialização da política) é uma ilusão liberal em conflito com a história.
No cenário de hoje há um grande ausente: o movimento social, retirando da esquerda seu grande trunfo, a força das ruas, seu leito natural, que, em alguns momentos de nossa história (como a defesa da legalidade em 1961), mudou o rumo do processo histórico.
O capitão conta a seu favor com esse fastio da ação de massas, aprofundado pelas medidas de proteção social impostas pelo combate à pandemia. Por enquanto ele simplesmente testa os limites; os limites de suas próprias forças e os limites da resistência ao seu projeto. Seu avanço está sempre condicionado ao recuo das forças democráticas.
No recesso das movimentações de massa, o enfrentamento ao governo se dá, fundamentalmente, em duas frentes, a da imprensa e a da oposição parlamentar. A grande mídia, sempre reacionária, porém, se lhe faz oposição política, apóia a “pauta Guedes”. No Congresso, instituição com baixa ressonância popular, uma minoria mínima, sem peso nas decisões, faz o possível para conter o governo em seus desmandos.
A esquerda, sem vínculo orgânico com as massas, só pode aspirar a ser o progressismo liberal de um congresso conservador.
Apesar do desastre administrativo, da falência do “posto Ipiranga” e da pandemia do coronavírus, o capitão insiste em seu projeto golpista. Com o espetáculo grotesco e grave do dia 19 de abril – o comício em frente ao quartel general do exército em Brasília – o jogo ficou claro, mesmo para os que se protegem em sua zona de conforto, simplesmente recusando o convívio com a realidade.
A defesa da democracia, a partir de ameaças concretas que quase diariamente partem, ora do presidente, ora de sua récua de apoiadores, impõe-se, portanto, como projeto prioritário. Transcende os limites da esquerda e dos arraiais da oposição, porque diz respeito a todos os democratas, qualquer que seja o naipe de sua filiação ideológica. Eleva-se ao nível de questão estratégica.
Porque, sem democracia, não há nem política nem oposição qualquer.
A questão democrática é crucial para a esquerda brasileira, como opção de princípio, decantada pelo processo histórico. Cruciais foram as lições colhidas na luta contra a ditadura. Aprendemos. Se não nos iludimos quanto aos limites da democracia liberal-burguesa, na qual vivemos, igualmente não podemos ter dúvidas de que sua alternativa, a ditadura em qualquer de suas versões, é o regime que atenta contra as liberdades e os direitos civis, impõe o retrocesso político, asfixia a organização popular e sindical. Fortalece o poder da classe dominante e torna ainda mais frágeis os direitos dos trabalhadores. É o anteparo dos poderosos contra os pobres. Devemos combatê-la, sempre.
Por consequência da defesa da democracia como conditio sine qua non da luta política, impõe-se o enfrentamento ao bolsonarismo e ao que ele representa e, igualmente sem tréguas, o combate ao atual governo, dele descendente. As condições objetivas da luta, hoje, dizem que devemos nos esforçar para a concertação de uma frente política, a mais ampla possível, pois deverá abrigar todas aquelas forças que, pelas mais variadas razões, se dispõem a lutar contra o governo do capitão. Essa frente se volta para o presente. Derrotado o governo, outras sendas se abrem, outros caminhos serão testados e percorridos. A questão eleitoral não se coloca agora.
Sem prejuízo do enfrentamento ao governo, a esquerda deve disputar as grandes massas, intentar o diálogo com os divergentes, ouvir, esclarecer e debater, mas – trata-se de questão a mais relevante – sem receio de denunciar a luta de classes, chave para compreender o processo histórico e nele poder intervir. Nosso discurso precisa ter como eixo, a um só tempo, a crítica ao capitalismo e a defesa das alternativas oferecidas pelo socialismo, teses e objetivos a que renunciamos pelo menos desde 2002 (os fatos mostrariam que a “Carta aos brasileiros” não era, apenas, uma peça de marketing político).
Para retomar o diálogo com as grandes massas, perdidas, precisamos rever táticas e estratégias clássicas, reavaliar políticas de organização e, mesmo, pôr em questão alguns princípios tomados como dogmas na vulgata leninista.
Sem, evidentemente, ignorar o aqui e agora, mas a ele não se cingindo, as forças de esquerda e democráticas, populares no seu sentido geral, devem já voltar suas atenções para esse amanhã de aprofundamento de crises que se desenha no horizonte, onde já se enxergam a recessão econômica e o desemprego, estimado (projeção para julho próximo) em 20 milhões de trabalhadores.
Do contrário permaneceremos, como hoje, relegados ao papel de meros assistentes do real jogo de poder, aquele que se trava no âmbito restrito da casa-grande, onde empresários, militares e os procuradores do império traficam nosso futuro. E se assim for, ou seja, se não recuperarmos as condições de intervir no processo social, só nos restará, uma vez mais, ouvir o diktat da classe dominante, o privadíssimo clube do 1% de ricos e milionários que nos governa desde sempre.
A tática da oposição, desde logo, deve visar ao maior desgaste do governo junto às grandes massas, fustigando-o permanentemente em todos os planos oferecidos pelas circunstâncias, visando sempre a ampliar seu raio de influência, ou seja, perseguindo aquele mundo ideológico que desponta para além de nossas convicções e de nossos quadros.
Que fazer?
Organizarmo-nos para alterar a presente correlação de forças (que não é um determinismo, mas uma contingência), porque o mais efetivo combate ao bolsonarismo deverá travar-se no plano ideológico, vale dizer, na disputa da consciência popular.
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