Por Marina Pita, na revista CartaCapital:
A comunicação é uma das armas mais poderosas para a manutenção do bolsonarismo e a continuidade do presidente da República no poder. Em se tratando da relação com os meios de comunicação tradicionais, a postura do Palácio do Planalto e seus apoiadores atropela, cotidianamente, os princípios constitucionais, os marcos legais em vigor no país e os direitos humanos. Neste final de um turbulento 2020, selecionamos alguns momentos que caracterizam a relação conflituosa de Bolsonaro com a imprensa, e também o uso político feito de veículos aliados por parte da estrutura pública federal.
1. Secom e a publicidade oficial
Ainda era janeiro de 2020 e a Folha de S.Paulo apresentava uma nova denúncia envolvendo as comunicações do governo Bolsonaro: o então chefe da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, Fabio Wajngarten, principal acionista de uma agência que recebe recursos das empresas de comunicação, estaria favorecendo, na distribuição das verbas publicitárias do governo, seu próprios clientes.
Reportagem da revista Piauí revelou que Bolsonaro havia gastou 88,1 milhões de reais em publicidade em seu primeiro ano de governo, sendo 72% destinados à campanha pela aprovação da Reforma da Previdência. Record e SBT, apoiadoras assumidas do governo, lideraram a lista das concessionárias beneficiadas. Juntas, receberam 26,8 milhões. A Artplan, também cliente da empresa do então chefe da Secom, foi a principal agência de publicidade contratada pelo governo. De cada 50 reais investidos na área, 37 foram para a empresa.
Wajngarten saiu chamuscado das denúncias, mas a própria imprensa tratou o caso superficialmente, ignorando que existe uma insuficiência regulatória para assegurar o interesse público na aplicação de recursos públicos em campanhas de comunicação.
Em fevereiro, a mesma Secom utilizou os canais oficiais para atacar a cineasta Petra Costa, cujo documentário “Democracia em Vertigem”, havia sido indicado ao Oscar. Em sua conta oficial no Twitter, a Secom classificou a cineasta como “militante anti-Brasil que vem prejudicando a imagem do Brasil no exterior”. A montagem carimbou todas as falas de Petra e o documentário em si como “fake news”. Apoiadores de Bolsonaro se mobilizaram nas redes sociais que colocaram as hashtags #PetraCostaLiar e #PetraMente nos trending topics.
O uso indevido dos canais da Secom seguiu ao longo do ano. Em março, a pasta contratou, sem licitação, no valor de 4,8 milhões de reais, uma agência para produzir peças para a campanha do governo intitulada “O Brasil não pode parar”. Em meio à pandemia da Covid-19 e diante das medidas sanitárias de recomendação do isolamento social, a Justiça Federal do Rio de Janeiro suspendeu a campanha. O Intervozes protocolou representação à Procuradoria da República no Distrito Federal (PRDF) solicitando o cancelamento da contratação da empresa e a devolução dos recursos ao erário.
2. Relação promíscua com veículos aliados
Não foi apenas com recursos públicos de propaganda que Bolsonaro privilegiou a mídia aliada ao longo de 2020. A escolha recorrente da Record para entrevistas exclusivas também demonstrou a preferência do Executivo este ano. Quando, em julho, contraiu Covid-19, o presidente concedeu uma exclusiva à Record e à CNN Brasil, além da TV Brasil – que vem sendo aparelhada cada vez mais enquanto máquina de propaganda do governo.
A Record também tem se mostrado útil ao governo ao publicar reportagens de seu interesse, como denúncias editorializadas contra a Globo, principal adversária do Planalto no campo midiático. Em abril, quando o então super ministro Sergio Moro deixou o governo, canais parceiros como Record e SBT adotaram um tom foi bem mais ameno para reportar a crise que se instalava no Executivo naquele momento.
Sobre a pandemia, se as emissoras alinhadas felizmente não chegaram a absorver o discurso negacionista do presidente, foi nelas que o governo encontrou espaço para propagandear o mínimo que vinha fazendo para enfrentar o coronavírus. Em abril, no programa Brasil Urgente, comandado por José Luiz Datena, Jair Bolsonaro falou, ao vivo, por mais de uma hora, sobre os riscos do isolamento social à economia do país. O presidente classificou como “heresia” os dados apresentados à época por universidades e institutos de pesquisa que apontavam para um futuro com milhares de mortes no Brasil. Na RedeTV!, também parceria, o policialesco Sikêra Jr. afirmou, diversas vezes, que a mídia estaria aumentando o pânico diante da pandemia e que era preciso atenção à economia para manter os brasileiros vivos.
Em outubro, já com o Ministério das Comunicações recriado, o governo fortaleceu sua atuação política visando ganhar novos adeptos nos canais de rádio e TV. Com o ministro Fábio Faria, genro de Silvio Santos, Bolsonaro recebeu representantes da Rede Regional de Notícias (RRN), pertencente ao mesmo grupo que reúne afiliadas da Record em Santa Catarina e no Paraná, e que controla a Rede Pampa (17 rádios e a TV afiliada da RedeTV no Rio Grande do Sul) e a Rede Massa, fundada pelo apresentador Ratinho (53 rádios e a TV afiliada do SBT no Paraná). Para a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), a reunião foi um indicativo de alinhamento político e ideológico.
3. Pessoalidade desavergonhada contra a Globo
Sem ilusões diante do maior grupo de comunicação do país, que sempre se posicionou contrariamente a uma regulação democrática do setor, é curioso observar os ataques cotidianos e nada impessoais de Bolsonaro à Globo, a empresa que faz críticas mais duras a algumas das políticas do governo.
Em abril, irritado com o desgaste político que sua postura em relação à pandemia vinha acarretando, o presidente voltou a ameaçar não renovar a concessão da Globo. “Essa imprensa lixo, porcaria. Não vou dar dinheiro para vocês. E, em 2022, não é ameaça não, assim como faço com todo mundo, vai ter que estar direitinho a contabilidade para que possa ter a concessão renovada. Se não estiver tudo certo, não renovo a de vocês e nem a de ninguém”, falou em coletiva de imprensa.
Um dia após o país superar a marca de 100 mil mortes decorrentes da Covid-19, em agosto, Bolsonaro acusou a TV Globo de “espalhar pânico na população” e afirmou que, “de forma covarde e desrespeitosa aos 100 mil brasileiros mortos, essa TV festejou essa data no dia de ontem, como uma verdadeira final da Copa do Mundo, culpando o Presidente da República”.
4. A benção dos canais religiosos
Se o controle da mídia por organizações religiosas já era extremamente relevante e crescente no Brasil, sua importância tem sido ainda maior no governo Bolsonaro. Para além das relações com a Rede Record, apoiadora desde a época da campanha eleitoral de 2018, o presidente tem usado de seu poder para consolidar laços com outras confissões religiosas. Em maio, realizou uma reunião com padres e leigos conservadores que controlam boa parte do sistema de emissoras católicas de rádio e TV. Em meio à queda de popularidade de Bolsonaro, os representantes da mídia religiosa não se constrangeram com o fato da reunião ser pública e ofereceram apoio político em troca de recursos e modificações normativas.
Conforme registrado no estudo Quem Controla a Mídia no Brasil, realizado pelo Intervozes em parceria com a Repórteres Sem Fronteiras, a presença religiosa no sistema brasileiro de mídia é crescente desde os anos 1980, principalmente na radiodifusão. O Grupo Record, formado hoje pela RecordTV, a RecordNews, o Portal R7 e o jornal Correio do Povo, entre outros, pertence desde 1989 ao bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Os bispos da IURD possuem também, desde 1995, emissoras de rádio, como as que formam a Rede Aleluia. O campo evangélico conta ainda com a Rede Gospel de televisão, controlada pelos bispos Estevam e Sônia Hernandes, líderes da Igreja Apostólica Renascer em Cristo, e a Rede Novo Tempo de rádio, lançada pela Igreja Adventista do Sétimo Dia em 1989. Já a Igreja Católica aparece na pesquisa associada a duas redes: a Rede Católica de Rádio (RCR), fundada em 1997 a partir da união de sete outras redes de rádio já existentes pertencentes a instituições e leigos católicos, e a Rede Vida, que começou a transmitir em 1995 sob gestão do INBRAC – Instituto Brasileiro de Comunicação Cristã.
Em época de pandemia, lideranças religiosas usaram fartamente as redes sociais e os espaços que ocupam nas mídias de massa para, de um lado, pressionar autoridades para a manutenção dos espaços de cultos abertos e, de outro, para dialogar com os fiéis sobre a importância de se manter a fé e os laços sociais e econômicos com as igrejas durante a quarentena. Ambos convergem na defesa da ideia da essencialidade da religião não apenas na vida privada, mas na vida pública.
5. Um ministro radiodifusor
Jair Bolsonaro anunciou, em junho, a recriação do Ministério das Comunicações, fundido com o da Ciência e Tecnologia durante a gestão Temer. A pasta foi entregue ao deputado federal Fábio Faria (PSD-RN), casado com a apresentadora Patrícia Abravanel, filha do empresário das comunicações Silvio Santos. Além de genro de Silvio Santos, a família de Faria também é radiodifusora, controladora de uma emissora de rádio no Rio Grande do Norte. Em 2015, o ministro, à época ele próprio sócio da rádio, foi um dos citados na ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) elaborada pelo Intervozes e protocolada pelo PSOL junto ao Supremo Tribunal Federal que pede, entre outros pontos, a devolução ao Estado de outorgas de radiodifusão controladas por deputados federais e senadores, em respeito ao artigo 54 da Constituição.
A recriação do MiniCom no modelo bolsonarista vai além, entretanto, da velha prática de entregar a pasta aos radiodifusores para que o setor gerencie as outorgas de acordo com seus interesses comerciais. O novo Ministério passou a incorporar também a já citada Secom, antes subordinada à Presidência da República. Fabio Wajngarten, então à frente da pasta, agora virou Secretário-Executivo do Ministério, em mais um ataque aos princípios que deveriam reger o setor. Afinal, uma pasta que tem como objetivo desenvolver políticas de Estado para o setor das comunicações não deveria se misturar com o órgão responsável por fazer a assessoria de imprensa e cuidar da propaganda do governo. O novo desenho institucional piorou ainda mais o quadro de abuso na distribuição das receitas publicitárias do Planalto, que vem sendo denunciado desde o início do governo Bolsonaro.
6. CBF e direitos de transmissão
Em outubro, os torcedores foram pegos de surpresa com a transmissão da partida entre Brasil e Peru pela TV Brasil, emissora pública gerida pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Enquanto as partidas das eliminatórias da Copa de 2022 que tiveram a seleção como mandante foram exibidas pela Globo, o amistoso contra o Peru dependeu de uma negociação à parte. E o não aceno da CBF em mediar a situação entre a Federação Peruana e Globo rompeu o costume dócil à família Marinho. Após pedido de Wajngarten à CBF, que negociou a transmissão com a detentora dos direitos de exibição, a transmissão foi parar na EBC. A situação não foi inédita, mas contou com uma pitada especial: durante a partida, o narrador André Marques não apenas leu uma nota da Secom ao vivo como, por duas vezes, agradeceu e mandou abraços para o presidente pela viabilização da transmissão em TV aberta no país. Nos intervalos do jogo, o telespectador também pode assistir a diversas propagandas das ações do governo.
Mais uma vez, o bolsonarismo mostrou-se sagaz na estratégia de comunicação. No entanto, o fez infringindo duro golpe na Constituição brasileira, que dispõe sobre a clara separação entre comunicação pública, estatal e privada, princípio segundo o qual a primeira não pode estar a serviço dos governantes de plantão.
Em junho, o tema dos direitos de transmissão já havia ganhado destaque nos noticiários, com a edição da Medida Provisória 984/2020, que abalou o sistema de radiodifusão, em especial a Globo. A MP mudou as regras no setor e passou a conceder o direito de transmissão dos jogos apenas aos clubes “da casa”, alterando a Lei Pelé (9.615/1998), que obrigava as emissoras a negociar com mandantes e visitantes. Essa longeva prerrogativa contribuía para manter o tradicional poder da Globo no futebol, à medida que os clubes perdiam poder de barganha em relação aos valores de imagem.
7. EBC a serviço do bolsonarismo
Falando em EBC, 2020 foi marcado por níveis absurdos de desvirtuamento da função pública da empresa. Em setembro, o 2o Dossiê Censura EBC, com inúmeros casos de silenciamento e intimidação foi lançado por trabalhadoras e trabalhadores da comunicação pública, foi lançado com o subtítulo “Inciso VIII”. Ele se refere ao artigo 2° da Lei nº 11.652, que descreve os princípios a serem seguidos pela empresa de comunicação pública: “VIII – autonomia em relação ao Governo Federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo no sistema público de radiodifusão”.
O relatório abrangeu situações ocorridas no primeiro semestre de 2020 e recolheu 138 casos em que houve cerceamento à liberdade de imprensa, gerando entraves ao cumprimento do princípio básico da instituição: produzir conteúdos de comunicação pública, voltados para o interesse da sociedade e que “contribuam para o desenvolvimento da consciência crítica das pessoas”. Os casos foram registrados por meio de um formulário online disponibilizado aos trabalhadores de todos os veículos e agências da EBC. Mas vale lembrar que nem todos os profissionais reportam os fatos, por temer represálias e perseguições internas, já que a sistemática da censura e do governismo opera em níveis ainda mais profundos. Além dos casos concretos de trechos ou palavras cortados e textos não publicados, ficou constatado que a censura ocorre na pauta, com temas considerados “delicados” ou “sensíveis” que ficam de fora da cobertura.
8. Ataques a jornalistas
Uma das características mais importantes do bolsonarismo e que se praticou ao longo de todo o ano é o ataque constante não apenas à imprensa enquanto instituição mas também, individualmente, a jornalistas críticos ao governo. Em julho, a FENAJ divulgou o monitoramento dos ataques realizados pelo presidente no primeiro semestre de 2020. Foram ao todo 245 ocorrências, sendo 211 categorizadas como descredibilização da imprensa, 32 como ataques pessoais a jornalistas e 2 ataques contra a própria Federação dos Jornalistas. São quase dez ataques ao trabalho jornalístico por semana no período.
As agressões do governo Bolsonaro especialmente contra mulheres jornalistas foram denunciadas por um amplo grupo de organizações da sociedade civil durante a 44º sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Um dos casos apresentados foi o da jornalista Bianca Santana, que em maio foi acusada pelo presidente de propagar ‘fake news’. Naquela semana, Bianca havia publicado um artigo sobre a relação entre familiares e amigos de Bolsonaro com os acusados de assassinar a vereadora Marielle Franco.
* Marina Pita é jornalista e integra a Coordenação Executiva do Intervozes.
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