Manifestação em Londres em apoio à Palestina. Foto: Reuters |
Os palestinos enfrentam simultaneamente dois genocídios.
O primeiro teve início em 1948, quando a ONU criou o estado de Israel e deixou para depois o estado palestino. Um depois que, até agora, transcorridos 75 anos, não aconteceu.
O segundo, tão terrível quanto privar um povo de espaço para viver, é tentar transformá-lo em “inimigo”, “sanguinário”, “terrorista” e “perigo para a humanidade”, como tem sido feito pela mídia corporativa internacional e brasileira desde então, com o clímax sendo alcançado na última semana, após os ataques do Hamas a Israel.
Há milênios, Sêneca, o filósofo grego, já dizia que “na guerra, a primeira vítima é a verdade”.
Não há, no século XX e nas primeiras décadas do atual século, nenhuma guerra que tenha começado sem ser antecedida por provocações e mentiras da mídia.
No caso em questão, o certo teria sido a criação de dois estados – Israel e Palestina.
Os vitoriosos na Segunda Guerra Mundial, no entanto, se empenharam em resolver só o problema dos judeus que viviam em diáspora pelo mundo e milhões deles acabavam de ser barbaramente perseguidos e mortos pelos nazistas.
Ao criar o estado de Israel, para resolver o genocídio que a própria Europa havia deixado acontecer com os judeus, não foi levado em conta que os palestinos eram os históricos e verdadeiros donos da região.
Os judeus apenas miticamente tinham relação com aquele território.
A ONU autorizou a criação de Israel e milhares de judeus em todo o mundo começaram a se mudar para lá. Desde então, os palestinos passaram a ser perseguidos e expulsos de sua própria terra.
A situação a que foram relegados deixa evidente o racismo por trás das ações dos vitoriosos na Segunda Guerra Mundial, a começar pelo próprio nome com que a região era designada: Oriente Médio.
Geograficamente, não existe Oriente Médio. Trata-se de invenção de países imperialistas como a Inglaterra, para justificar suas antigas colônias na região.
O território que se estende desde o Leste do mar Mediterrâneo até o Golfo Pérsico é uma sub-região da Afro-Eurásia, sobretudo da Ásia, e retirá-lo desta condição foi uma bem sucedida operação semântica para legitimar o neoimperialismo.
Dito de outra forma, o “Ocidente” não estaria interferindo no Oriente (África e Ásia), mas atuando numa região intermediária.
Some-se a isso que por serem árabes e, não ocidentais brancos, com o agravante, aos olhos imperialistas, de praticarem a religião islâmica, os palestinos poderiam ser alvo de todas as atrocidades. E foram.
Há décadas que sofrem privações básicas, mas nada tão grave quanto negar-lhes até a própria condição humana. Como disse há seis dias o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, “estamos combatendo contra animais”.
Um absurdo que foi naturalizado pela maior parte da mídia internacional e nacional.
Tudo isso vem sendo ignorado por esta mesma mídia ao tratar o grupo Hamas, que em tradução livre significa Movimento de Resistência Islâmica, como terrorista pelo atentado a Israel, no sábado (7/10), como se os conflitos tivessem começado ali.
Toda violência merece repúdio, mas não se pode negar a um povo o direito de lutar pela sua libertação.
Essa é a razão pela qual a ONU não considera o Hamas um grupo terrorista, ao contrário do que tem sido repetido à exaustão pela mídia brasileira e internacional. Mídia que tem coberto apenas um lado deste conflito, negando aos palestinos o direito básico de serem ouvidos e exporem suas razões.
A voz que se ouve na mídia Ocidental quando o assunto diz respeito a Israel e palestinos é a de Israel, que tem como aliados, desde sempre, Inglaterra e Estados Unidos.
Foi assim na chamada 1ª Guerra Árabe-Israelense (1948), na crise do canal de Suez (1956), na Guerra dos Seis Dias (1967), na 1ª Intifada (rebelião popular palestina), em 1987, e na 2ª Intifada (2000), além das seguidas ofensivas entre Israel e Hamas em 2008, 2009, 2012, 2014, 2018, 2019 e 2021.
Em todos estes conflitos, Israel contou com o apoio político e bélico dos Estados Unidos.
Apoio político ao negar, através da condição de um dos cinco membros do Conselho de Segurança da ONU com direito a veto, conter a fúria de Israel ou envidar efetivos esforços para a criação do estado palestino.
Apoio bélico ao contribuir decisivamente para Israel ter um dos mais bem armados exércitos do mundo, além de um serviço de espionagem, o Mossad, mais eficiente do que a CIA ou o NSA, seus congêneres estadunidenses.
Diante da disparidade de condições reinantes entre Israel e palestinos, não há nem mesmo como falar em guerra.
Como 2,1 milhões de palestinos, que não dispõem sequer de exército, confinados por Israel na faixa de Gaza, meros 365 quilômetros quadrados (equivalente a um quarto do território da cidade de São Paulo) conseguiriam enfrentar um dos exércitos mais bem equipados do planeta?
Israel priva-os de tudo. Entradas e saídas de pessoas na Faixa de Gaza são controladas, o mesmo podendo ser dito de alimentos, medicamentos e combustíveis, muito antes do atentado do Hamas.
Se as tensões entre Israel e palestinos não são de agora, existem fatos recentes que estão na raiz do aumento explosivo da violência na região.
O principal deles é a crescente impopularidade do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu.
No poder, mesmo que de forma intermitente, há mais de 20 anos, ele, um extremista de direita que enfrenta uma série de processos por corrupção, conseguiu que fosse aprovado pelo Congresso projeto que limita os poderes da Suprema Corte de lá.
A medida vinha provocando críticas dos mais diversos setores e intensas manifestações contra ele.
Possivelmente visando fortalecer-se e conter as críticas, Netanyahu estaria, segundo palestinos, preparando uma espécie de ofensiva final contra a Faixa de Gaza.
É a velha tática de criar o perigo externo para conseguir coesão interna. O Hamas teria ficado sabendo e se antecipou.
Se essa versão é verdadeira, não há como afirmar. Mas não deixa de ser curioso observar que mesmo contando com o Mossad, Israel não tenha conseguido prever o ataque do Hamas.
Vale lembrar que na última semana veio à tona, por setores da própria mídia israelense, que o governo do Egito avisou ao israelense, com três dias de antecedência, sobre esses ataques.
Por que Israel não agiu? Essa é a pergunta que os israelenses não se cansam de fazer e explica por que quatro entre cinco deles reprovam o governo de Netanyahu.
É importante destacar que essa reprovação não ocorre por critérios ideólogos ou humanitários, mas pelo fato de que o governo os decepcionou no quesito que mais prezam: a segurança.
Nada disso aparece na mídia Ocidental e, menos ainda, na brasileira.
Aqui, os fatos foram substituídos por achismos, desinformação, preconceitos da pior espécie e alinhamento automático aos interesses do sionismo internacional.
Emissoras de televisão como a Globo, Globo News e CNN Brasil se transformaram em propagadoras de fake news.
Um dos exemplos mais escandalosos foi a divulgação da mentirosa decapitação de 40 bebês israelenses pelo Hamas.
A mentira foi divulgada inicialmente por um canal de TV de Israel, ligado a Netanyahu. Em instantes, passou a ser reproduzida pelas agências de notícias internacionais, sem qualquer verificação.
Aliado incondicional de Israel, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, chegou a mencionar este suposto episódio em pronunciamento, ao dizer que teria visto imagens de bebês mortos e carbonizados.
Como a própria imprensa de Israel se incumbiu de desmascarar a farsa, Biden voltou atrás, mas o estrago estava feito.
A mentira alastrou-se pelo mundo e no Brasil chegou até comunidades mais distantes, turbinada por igrejas neopentecostais, cujos pastores bolsonaristas fazem de Israel, sem qualquer justificativa concreta, uma espécie de referência única de terra e povo abençoados.
Não por acaso, os primeiros brasileiros resgatados em Israel, por determinação do presidente Lula, eram fieis da Igreja Batista da Lagoinha, cuja sede se localiza em Belo Horizonte (MG). Isso que explica que nenhum deles tenha mencionado o nome de Lula em seus agradecimentos.
A ligação dessas igrejas com o bolsonarismo vem de longe. Basta lembrar que as únicas bandeiras presentes nas manifestações antidemocráticas no país junto com a brasileira nos últimos quatro anos foram as dos Estados Unidos e de Israel.
O Brasil foi o primeiro país a retirar com segurança e rapidez seus nacionais de Israel. A Inglaterra, que se arvora em pátria da liberdade, está cobrando uma fortuna pela passagem de quem quiser voltar para casa.
Também na mídia impressa – em especial em jornais como O Globo, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo -, a versão que interessa a Israel tem sido a única divulgada.
Para tornar a situação mais grave, até supostos blogs progressistas entraram na linha de frente da condenação aos palestinos e na tentativa de censurar jornalistas e publicações que buscam esclarecer a opinião pública sobre o que realmente acontece e está em jogo.
É o caso do jornalista Breno Altman, diretor do portal e da pós-TV Opera Mundi. Judeu, Altman é um profundo conhecedor da situação palestina e tem se dedicado, há anos, a mostrar os horrores que Israel vem infringindo ao povo palestino.
Em represália às suas análises, foi informado que o YouTube desmonetizou parte do seu canal na web.
A atitude das big techs em relação aos canais que se colocam em posição contrária ao genocídio do povo palestino mereceu nota de repúdio da Associação Brasileira de Imprensa (ABI).
Por meio da Comissão de Defesa da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos, a entidade declarou seu apoio a Altman, que “foi vítima de tentativa de censura por parte da plataforma You Tube, e, lamentavelmente, até mesmo por outro jornalista, por suas posições em defesa do povo palestino”.
A declaração da ABI remete ao posicionamento do jornalista Samuel Pancher, do site Metrópoles, que defendeu que Altman fosse censurado também nas redes sociais.
Ao contrário de ter cessado, tais ameaças ampliaram-se no último fim de semana.
Circula no Whatsapp, por exemplo, lista contendo relação de jornalistas considerados inimigos de Israel e o próprio Altman passou a ser alvo de ataques, com sionistas defendendo que seus dentes sejam quebrados e seus dedos cortados.
O próprio governo brasileiro vem sendo vítima de ataques por parte de sionistas locais e internacionais ao exigirem que condene o Hamas como terrorista.
Ataques que levaram o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, reiterar que, sobre esse assunto, acompanha a classificação da ONU, na qual o grupo de resistência palestino nunca figurou como terrorista.
Na última quinta-feira, integrantes da oposição na Câmara dos Deputados (bolsonaristas e ligados às igrejas neopentecostais) protocolaram pedido para que o governo adotasse o termo ao se referir à organização.
A solicitação foi assinada por mais de 60 deputados, o que indica como o lobby pró-Israel está articulado no país.
A pressão interna e externa sobre o governo brasileiro visa, também, inibir as suas ações no plano internacional, uma vez que o Brasil está, ao longo deste mês, no comando do Conselho de Segurança da ONU.
A presidência é rotativa. Além dos cinco membros permanentes, existem os 10 itinerantes.
Até agora aconteceram duas reuniões solicitadas pelo Brasil, na segunda e sexta-feira passadas.
Em ambas, os Estados Unidos nada fizeram para impedir que Israel cumpra o que prometeu: um ataque jamais visto contra a Faixa de Gaza sem poupar civis, mulheres ou crianças.
O apoio a Israel começou com o Tio Sam esvaziando ambas as reuniões, ao enviar representantes de terceiro escalão para eventos de tamanha importância. Representantes de terceiro escalão não deliberam.
Mesmo convalescendo de uma cirurgia, o presidente Lula passou os últimos dias mobilizando os meios diplomáticos para estas reuniões e defendendo que seja feito o debate sobre questões humanitárias na Faixa de Gaza e a criação de um corredor ligando a região ao Egito, para facilitar a saída de pessoas e a entrada de alimentos, água e remédios para os palestinos.
A proposta de Lula agradou ao secretário-geral da ONU, Antônio Guterres. Mas, como sempre, desagradou aos Estados Unidos e ao lobby sionista, de olho numa solução final contra os palestinos.
A canalhice da mídia corporativa brasileira é tamanha, que não foram poucos os jornalistas a minimizar os esforços do presidente Lula, com uns chegando a rotulá-los como “ineficazes” ou “desnecessários”.
É importante destacar que nos últimos dias, apesar de proibições a manifestações pró-Palestina por governos europeus e nos Estados Unidos, milhares de manifestantes foram às ruas em Nova York, Londres, Berlim, Amsterdã, Oslo e Paris.
Também a Arábia Saudita, através de seu governo, deixou claro para autoridades diplomáticas dos Estados Unidos, que se a Faixa de Gaza por atacada, todo o mundo árabe se unirá aos palestinos.
Incansável, Lula, junto com diplomatas brasileiros, passou o fim de semana articulando para a nova reunião do Conselho de Segurança da ONU, que acontecerá na noite desta segunda-feira. Em pauta deve estar o cessar-fogo imediato.
Por prudência, o Brasil não irá propor, neste momento, a criação do estado palestino, como defendem a Rússia, a China e a grande maioria do chamado Sul Global, evitando assim o veto dos Estados Unidos.
Se a resolução for aprovada, Israel ficará obrigado a imediatamente cessar fogo, sob pena de incorrer em crime de guerra.
Vale observar ainda que Israel e Estados Unidos podem estar utilizando o ataque do Hamas para desviar o foco do fracasso do “Ocidente” na Guerra na Ucrânia.
Você observou como a Ucrânia e Zelensky sumiram da mídia?
Esse desaparecimento pode ter relação com a impossibilidade de os Estados Unidos e a OTAN derrotarem a Rússia.
Para não admitirem a derrota, nada melhor do que outro conflito para tirar a Ucrânia do foco. O próprio Zelensky está cobrando dos aliados e da mídia este abandono.
Ao posicionar-se ao lado de Israel e disseminar todo tipo de preconceito contra os palestinos, a mídia também se transforma em arma letal.
Uma arma que está chancelando a eliminação física de 2,1 milhões de pessoas, ao jogar ao lado das potências imperialistas em suas ameaças à segurança e à paz mundial.
Ao esconder os fatos, manipulá-los e distorcê-los, a mídia brasileira, também se torna responsável pelo que está acontecendo e pelo que vier acontecer com o povo palestino.
O genocídio também é midiático.
* Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. Integra o Conselho Deliberativo da ABI, bem como as Comissões de Ética dos Meios de Comunicação e Relações Internacionais desta instituição.
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