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1. Quem ganhou e quem perdeu a eleição parlamentar de 10 de março em Portugal? O primeiro impulso é ver a Aliança Democrática, agora a maior minoria da Assembleia da República, como a grande vencedora.
À coligação de três legendas de direita – Partido Social Democrata (PPD/PSD), Partido Popular (CDS–PP) e Partido Popular Monárquico (PPM) – caberá a prerrogativa de atender a primeira chamada para a formação de governo.
Obteve 24,49% dos votos, o que resulta em 79 cadeiras num universo de 230.
O tento é ligeiramente superior aos 77 assentos conquistados pela soma das três agremiações nas legislativas anteriores, em 30 de janeiro de 2022. Para efeitos gerais, ficou quase do mesmo tamanho e dificilmente formará uma administração de minoria.
2. A espetacular novidade fica para o desempenho da extrema-direita, personificada pelo Chega. O partido, criado um mês antes das eleições europeias de março de 2019 e batizada com nome extraído de algum manual de marketing, conseguiu colocar um único deputado no parlamento, em outubro daquele ano. Em 2022, elegeu 12 e no último domingo saltou para 48, quadruplicando a bancada e amealhando 18,06% dos votos válidos.
Torna-se vetor privilegiado para a formação de um eventual governo de maioria conservadora, não apenas pelo total de parlamentares, mas pela velocidade com que avança sobre parcelas crescentes da opinião pública.
As negativas de Luís Montenegro, líder da AD, à formação de um governo com o Chega podem não resistir ao pragmatismo de cada agrupamento.
3. O derrotado maior da disputa é o PS, que governava o país desde 2015. A derrocada em relação a 2022 é espantosa. De 120 parlamentares (41,37% dos votos), o partido desabou agora para 77 (28,66%). O fracasso pode ter duas ordens de motivos, uma contingencial e outra estrutural.
4. Do lado contingencial há o desgaste de um governo que enfrentou a pandemia, suas consequências humanitárias e econômicas e as decorrências objetivas – inflacionárias – e subjetivas – o medo – da guerra na Ucrânia.
5. Ainda nesse capítulo há um gesto inexplicável cometido pelo ex-primeiro ministro socialista, António Costa, no início de novembro. Diante de uma saraivada de denúncias de corrupção, desvio de recursos e tráfico de influência desferidas contra a cúpula do governo por um Ministério Público imbuído de ares lavajatistas, com aberta cumplicidade midiática, Costa renunciou quase bovinamente (o nome citado nos processos, descobriu-se depois, era de um homônimo seu).
6. O presidente Marcelo Rebelo de Sousa- atualmente independente, depois de integrar os quadros do PSD por quatro décadas – aceitou o pedido e imediatamente convocou eleições. Era pedra cantada que a direita poderia se dar bem nesse quadro. Não estava claro, contudo, qual direita.
7. O Chega viu aí a pista livre para uma investida furiosa, clamando contra a corrupção, a malversação de fundos públicos, a imoralidade, os ciganos e estrangeiros em geral.
A extrema-direita seguiu o figurino de Trump, Bolsonaro e Milei: chutou o balde das boas maneiras, radicalizou o verbo e se colocou como demolidora do status quo. Ganhou votos na juventude, em parcelas insatisfeitas de trabalhadores precários, dos pobres e da classe média tradicional.
Numa investida tipicamente bolsonarista, André Ventura, líder principal e misto de locutor esportivo e jurista, bradou que Lula teria sua entrada barrada em Portugal num novo governo.
8. Contra que status quo a turma de Ventura vociferou? Aqui entramos nas causas mais estruturais do desastre. Contra uma gestão nem desastrosa e nem brilhante, que se absteve de tomar posições ofensivas nas disputas com o reacionarismo luso, num comportamento político anódino e morno.
Nos últimos anos, António Costa cerrara fileiras com a OTAN e a favor da Ucrânia e aplicara um receituário neoliberal de tinturas progressistas na gestão do Estado.
O desemprego em 2023 foi de 6,5%. Embora tenha aumentado 0,4% em relação ao ano anterior, a taxa foi relativamente baixa. O PIB cresceu 2,3%, acima do padrão da UE, de 0,6%. A inflação bateu 4,3%, mas a média salarial cresceu 6,6%.
9. Destino de ricaços europeus e estadunidenses, Lisboa tornou-se uma cidade caríssima na última década e meia, com uma bolha imobiliária voltada para investidores de luxo. Trabalhadores de todos os tipos foram expulsos para a periferia e localidades no entorno da capital. Os serviços públicos principais se deterioram e os empregos criados são cada vez mais precários.
10. Assim como em realidades distintas – na Argentina de Fernández, no Brasil de Lula e nos EUA de Biden – a extrema-direita radicaliza e busca polarizar em temas ligados a direitos – aborto, comunidade LGBTQIA+, igualdade racial -, moralidade – falsas pautas como ideologia de gênero, doutrinação nas escolas -, imigração e probidade administrativa, entre outros.
Ao apresentar tais pautas desconectadas de projetos no terreno político e econômico, o neofascismo esteriliza diferenças de rumos mais profundos e leva os enfrentamentos para o terreno da moral. Em geral, os governos centristas reagem recuando.
11. O que poderia ser uma disputa de modelos de sociedade acaba por se tornar algo equivalente a brigas de torcidas. Num debate raso, porém ruidoso, leva a melhor quem domina redes e ruas, cria estigmas de fácil compreensão e dá a impressão de se colocar contra a “casta”, a “roubalheira”, o “sistema” e outros genéricos lacradores.
12. O avanço da extrema-direita, em seu capítulo lusitano, é inquietante e assustador. Mais do que lamentá-lo ou minimizá-lo, é preciso entender os motivos de seu crescimento e as insuficiências dos governos progressistas e sua constante busca por contentar “os mercados” através de infindáveis ações em prol da austeridade fiscal.
O extremismo coloca em questão meio século de dura construção democrática, num país que vivenciou uma ditadura colonial e violenta entre 1933 e 1974. Com raízes sólidas na sociedade local, o fascismo parece ter despertado de uma longa hibernação desde a revolução de 25 de abril de 1974.
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