Reproduzo abaixo artigo do professor Venício A. de Lima, publicado no Observatório da Imprensa:
O ofício de observador da mídia frequentemente nos obriga a enfrentar um dilema desagradável: simplesmente ignorar ou, mesmo a contragosto, comentar matérias que, embora patéticas, reverberam e acabam por provocar, num circulo reduzidíssimo da elite leitora dos jornalões pátrios, o que Alberto Dines chamou com propriedade neste Observatório de "debate rastaquera".
Refiro-me à repercussão de frases ditas por um assessor do governo em relação à má qualidade e à difusão de valores culturais da programação de canais americanos transmitida na TV a cabo.
Merece especial atenção o artigo “Esterco político”, dado na página 2 da Folha de S.Paulo (sábado, 20/2), com chamada na primeira página sob o título "Assessor de Lula não compreende o que é liberdade". Na página interna somos informados de que o referido assessor é um dos sobreviventes dos "bolsões de intolerância e incompreensão sobre o que é exatamente liberdade de expressão".
Diversidade cultural
Deixando de lado o fato de que o significado da palavra liberdade tem servido de disputa desde os tempos da "guerra fria" e sobrevive ao fim da bipolaridade ideológica mundial marcada pelo "colapso do comunismo", uma das curiosidades do "debate rastaquera" é que nenhum dos experts ouvidos se lembrou de mencionar a natureza particular de bens e serviços culturais – especialmente o cinema e o audiovisual.
Esta natureza particular foi reconhecia em disputa entre os EUA e a França – ganha pelos gauleses – e iniciada na Rodada do Uruguai do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT), em 1994, quando se adotou o conceito de "exceção cultural". O mesmo princípio foi incluído, por exigência do Canadá, no Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), também em 1994.
O tema foi levado para o âmbito da Unesco e lá, depois de anos de debates, surgiu a Convenção sobre a proteção e a promoção da Diversidade das Expressões Culturais, adotada pela Unesco em 2005 e subscrita pelo Brasil através do decreto legislativo 485/2006. A Convenção substituiu o conceito de "exceção cultural" pelo de "diversidade cultural". Na introdução do documento, dentre outros tópicos, está escrito:
"Convencida de que as atividades, bens e serviços culturais possuem dupla natureza, tanto econômica quanto cultural, uma vez que são portadores de identidades, valores e significados, não devendo, portanto, ser tratados como se tivessem valor meramente comercial.
"Constatando que os processos de globalização, facilitado pela rápida evolução das tecnologias de comunicação e informação, apesar de proporcionarem condições inéditas para que se intensifique a interação entre culturas, constituem também um desafio para a diversidade cultural, especialmente no que diz respeito aos riscos de desequilíbrios entre países ricos e pobres."
O reconhecimento de que bens e serviços culturais – especialmente o cinema e o audiovisual – possuem uma "dupla" natureza, é o que fundamenta a existência de políticas públicas culturais de proteção e estímulo às culturas locais, regionais e nacionais. Isso pode significar, como já ocorre em vários países do planeta, a existência de quotas de difusão para cinema, televisão e rádio, além de políticas de subsídio financeiro à produção e distribuição de produtos culturais nacionais.
Não poderia ter sido este o quadro de referência maior dentro do qual se colocariam as frases do assessor do governo, pronunciadas em seminário sobre política externa?
Estreitando o espaço de debate
O "debate rastaquera", no entanto, simplifica questões complexas e só enxerga o seu lado da questão. Joga qualquer fala – independente de quem diga o quê e em qual contexto – na vala comum das acusações diárias a possíveis ameaças "autoritárias" a uma "liberdade de expressão" que, na prática, só se materializa para aqueles pouquíssimos que têm acesso à grande mídia. Aproveita qualquer deixa para reduzir ainda mais os estreitíssimos limites do quase inexistente debate cultural no nosso país.
O "debate rastaquera", infelizmente, nos conduz aos umbrais da intolerância, temperada pela hybris que contamina boa parte dos colunistas de nossos jornalões.
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O esterco ideológico
(também publicado no Observatório da Imprensa)
Mentes autoritárias poderiam enxergar indícios conspiratórios na edição de 18 de fevereiro do caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo. Afinal, em plena discussão do Projeto de Lei 29, que sofre ataques das operadoras de TVs por assinatura, o caderno publicou três páginas inteiras contendo elogios a elas. O pretexto da iniciativa foi uma crítica do assessor especial de Lula, Marco Aurélio Garcia, que qualificou o conteúdo televisivo importado dos EUA como “esterco cultural”.
Entre os muitos depoimentos coletados pela jornalista Ana Paula Sousa, não há sequer uma ponderação favorável ao ponto de vista do assessor. Apenas um trecho de coluna resume de forma superficial o complexo PL, associado a um suposto dirigismo xenófobo. O resultado é uma matéria inexplicavelmente extensa e laudatória, que beneficia abertamente os adversários da regulamentação. Estes, aliás, anunciantes regulares do jornal.
O idiossincrático Marco Aurélio Garcia é ótimo bode expiatório de causas subitamente libertárias. Qualquer contraponto rasteiro a seu “esterco ideológico” ganha ares de cosmopolitismo esclarecido. O assessor não tinha o direito de fazer “top-top”, em caráter privado, quando a imprensa tentava exercer sua “liberdade” de culpar o governo federal por um acidente aéreo. E quem é esse petista barbudo e preconceituoso para expor suas opiniões? Só um burocrata muito despótico ousa profanar tesouros culturais, que nos ensinam tanto sobre nós mesmos. Ele merecia ser jogado às galés.
Os argumentos utilizados para defender a TV paga são constrangedores. Fala-se em livre-arbítrio numa relação irregular de consumo (venda casada), que impede o assinante de escolher os canais, forçando-o a pagar por pacotes indesejáveis. E pagar muito caro, recebendo imensidões publicitárias que suplantam a da própria TV aberta. Elogia-se a diversidade num universo monoglota, dominado por uma subcultura estadunidense de folhetim, com exibições defasadas e reprisadas exaustivamente. E, absurdo maior, comemora-se a pífia inserção de produções nacionais, relegadas a nichos irrelevantes, enquanto nossos filmes são boicotados no mercado exibidor, controlado pelos mesmos cartéis corporativos da TV por assinatura.
Parece esperto reduzir o debate aos fãs de “Lost” e aos poucos profissionais que desfrutam de espaço “independente” no ramo. Afinal, trata-se mesmo de uma elite com interesses coincidentes. Mas logo parecerá novamente moderno e progressista exigir que o governo financie a sobrevivência da indústria televisiva. Democraticamente, é claro, e com dinheiro público.
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