Por Walter Sorrentino, em seu blog:
Jornal Movimento, uma reportagem. De Carlos Azevedo, com reportagens de Marina Amaral e Natalia Viana. Considero este um dos melhores livros de 2011 para os que acompanham a experiência de lutas democráticas dos brasileiros.
O semanário Movimento, da imprensa democrática – embora não livre porque exposta a feroz censura –, foi uma experiência sublime do movimento do povo brasileiro por liberdades, democracia e contra o regime militar.
Foi uma saga, difícil, conflituosa e contraditória, mas que jogou papel de enorme valor e logrou manter por anos seguidos um papel que marca até hoje toda uma geração de brasileiros. Eles estão na estrada até hoje, em diferentes papeis, mas marcados para sempre por aquela experiência dirigida por Raimundo Pereira.
Essa história forneceu lições de unidade e luta no seio de vasto conjunto de forças políticas que se articulavam em torno ou dispunham do papel do semanário. Junto com sua extinção essas forças se reorganizaram profundamente, já no alvorecer da liberdade de organização dos partidos políticos. Mas o mundo da imprensa nunca mais foi o mesmo: entre os colaboradores de Movimento estavam os melhores jornalistas do país, cujo papel permanece, com diferentes enfoques, até hoje.
Contar a experiência e refletir sobre ela de modo sistemático e profundo também seria obra difícil. Pois é o que alcançou Carlos Azevedo, um dos melhores repórteres do país, junto com Marina Amaral e Natalia Viana. A essência dos dilemas, o curso tortuoso dos eventos, as difíceis negociações entre forças diferenciadas que atuavam no jornal são retratados com clareza e objetividade, inclusive o tema aparentemente árido, mas fundamental, de como sustentar financeiramente a empresa.
Carlos Azevedo, com sua pena leve e gostosa, enfrenta tudo isso e nos brinda com um livro indispensável para a esquerda lembrar e reter como lições de generosidade, unidade na diversidade, jornalismo sério e competente, espírito democrático e irredento.
Mais ainda: o livro é acompanhado por um DVD com as 334 edições do jornal, um primor em termos de informação sistemática.
Participei de algum modo dessa experiência, durante toda sua duração. Admiro muito Azevedo, grande amigo, do qual só recentemente vim a saber que o trabalho que realizava captando informações da Rádio Tirana para a edição clandestina de A Classe Operária – órgão central do PCdoB – era o que me chegava para transformá-las em impressos distribuídos clandestinamente e, assim, reorganizar a direção partidária após a Chacina da Lapa. Era uma amizade virtual, antes mesmo de nos conhecermos.
Pedi a Azevedo um depoimento sobre a experiência de elaborar o livro. Ele brindou o blog com uma coisa muito rica e significativa, que partilho com todos.
*****
Sobre o livro "Jornal Movimento, uma reportagem"
Carlos Azevedo
Há muito tempo, vários companheiros que participaram da façanha notável que foi a realização do jornal Movimento, diziam que era preciso fazer um livro que contasse a sua história. Eu estava entre eles. Achávamos que a brilhante trajetória, que iluminou os caminhos pela democratização do país entre 1975 e 1981, não recebera ainda a devida menção, e o que se publicara trazia um viés depreciativo, fruto de divergências políticas e ressentimentos pessoais. De alguma forma, eu sentia que tinha um encontro marcado com essa tarefa. Em 2003, cheguei a esboçar um projeto, mas não o levei adiante. Um sentimento de insegurança diante do enorme desafio e problemas de saúde na família me levaram a desistir. Em 2008, concordei que Raimundo Pereira recuperasse o projeto, ele o apresentou ao Ministério da Cultura para obter os inventivos fiscais da Lei Rouanet e o patrocínio, que veio por meio da Petrobras.
Para mim, originalmente personagem coadjuvante da aventura do jornal, e agora alçado à condição de seu biógrafo, isto é, de testemunha o mais possível objetiva, embora tendo honestamente um lado, foi uma experiência profunda. Vivenciei momentos de entusiasmo, de exaltação, reflexão e tristeza. Aquela era a história de minha geração, era minha história. Na pesquisa do material fui revendo aqueles anos, as lutas que travamos, os meus dias, os dias de minha pequena família, constrangida junto comigo à clandestinidade. Foi uma experiência de muitos sabores, doces e amargos, de prazer e sofrimento, de satisfação e de angústia, de longas horas de trabalho solitário se estendendo pelas noites.
A construção desse livro custou quase dois anos de trabalho, o primeiro, em conjunto com uma pequena equipe, de cinco pessoas, cavoucando arquivos, fazendo a leitura das 344 edições, realizando cerca de 60 entrevistas,lendo os diversos livros de referência, redigindo e editando textos. Os últimos oito meses foram consumidos ouvindo críticas e sugestões à versão inicial, o “boi de piranha”, e, em cima de sua carcaça, lavrando solitariamente a madeira fina do texto final. A caça à palavra certa, à idéia justa, sabendo que jamais satisfaria a todos, mas solidamente ancorado nos fatos. Cada personagem tinha sua versão da história, mas além das versões haviam os documentos, as atas da reuniões e assembléias, as correspondências, e a própria coleção do jornal, só aí 8600 páginas. Por um lado, estávamos bem, pois a abundância de referências é o campo predileto do jornalista. Por outro, era imensa a tarefa de coordená-los, de ajustar sua cronologia, de selecionar o que era relevante, de contrapor as posições contraditórias buscando não negar a palavra a ninguém.
A leitura da coleção do jornal, em particular, me tocou fundo porque em cada edição eu reencontrava os acontecimentos que todos nós vivemos e sofremos sob a ditadura militar. Ali, nas matérias do jornal estavam retratadas, como num filme, as lutas populares no instante mesmo em que estavam acontecendo. Folhear suas páginas era quase como reviver aquele tempo passado. Reencontrar meus antigos textos, assinados com pseudônimo, era como reencontrar comigo mesmo, com as idéias de então que basicamente são as mesmas até hoje, embora matizadas pelos anos passados e por tudo o que vivemos depois. Sem falar no bigode que era castanho escuro e ficou branco, nos cabelos encanecidos (os poucos que sobraram). Esse reencontro não foi fácil.
O leitor também poderá viver essa experiência ao acessar o DVD com todas as edições do jornal que acompanha o livro.
Inevitável, enquanto preparava o livro, a época da clandestinidade ressurgiu vivamente. A casinha onde morei com minha família na Vila Industrial, em Campinas (ainda está lá, quase uma tapera), o quarto do casal, que era também meu escritório: uma escrivaninha, uma máquina de escrever, um caixote servindo de estante de livros, um rádio Transglobe e um gravador. Ao lado, um arquivo de aço e muito papel nas gavetas. Ali praticava uma longa jornada diária de trabalho: ler jornais, recortar, escrever comentários sobre a conjuntura, preparar sugestões de pauta e matérias para Movimento, escrever matérias para o jornal Libertação, reunir informações e materiais para os companheiros do birô político escreverem A Classe Operária, estudar os clássicos marxistas, fazer um boletim periódico de noticias censuradas na grande imprensa, que eu recebia de amigos jornalistas. Só era interrompido, às vezes, pela tarde, quando minha filhinha Ana, entendiada por não ter com quem brincar, subia no meu colo e se punha a batucar a máquina de escrever. Ou me pedia para ler, uma vez mais, o livrinho do Mágico de Oz.
Depois do “Massacre da Lapa”, em dezembro de 1976, perdi o contato com o partido por mais de dois anos. Continuei a trabalhar, a partir de então, mais voltado para colaborar em Movimento e em gravar as matérias de A Classe Operária, que passaram a ser transmitidas pela Rádio Tirana, da Albânia. Depois, desgravava, copiava à máquina em dezenas de cópias e enviava pelo correio. Periodicamente, meus escritos eram levados por minha companheira que os passava para a companheira de Raimundo Pereira. Generosamente, o jornal começara a pagar um salário por meus trabalhos.
Penso que a realização desse livro alcança vários resultados. Faz justiça aos que se doaram tão completamente para realizar Movimento. Oferece ao público, seja de pesquisadores, estudantes e ao leitor interessado em geral, um relato abundantemente documentado sobre o jornal e a época em que existiu (nisso incluído o DVD). Ajuda as pessoas a entenderem os motivos e as posições políticas das várias tendências que se envolveram na luta contra a ditadura militar e o conteúdo ideológico das forças políticas que se desenvolveram desde então na nossa sociedade. Vemos ali a origem dos novos partidos então criados – PMDB, PT, PSDB – assim como acompanhamos a trajetória do PCdoB, PCB etc., sem esquecer as tendências políticas de direita, Arena, PDS, PP, PFL etc. Estão ali as grandes campanhas como a da Constituinte e da Anistia, as greves do ABC, que pavimentaram o caminho da democratização, e as sementes das “diretas já!”. Falando não como autor, mas como testemunha ocular, penso que nesse livro as pessoas podem se reencontrar e se reconhecer como sujeitos e objetos da História.
Jornal Movimento, uma reportagem. De Carlos Azevedo, com reportagens de Marina Amaral e Natalia Viana. Considero este um dos melhores livros de 2011 para os que acompanham a experiência de lutas democráticas dos brasileiros.
O semanário Movimento, da imprensa democrática – embora não livre porque exposta a feroz censura –, foi uma experiência sublime do movimento do povo brasileiro por liberdades, democracia e contra o regime militar.
Foi uma saga, difícil, conflituosa e contraditória, mas que jogou papel de enorme valor e logrou manter por anos seguidos um papel que marca até hoje toda uma geração de brasileiros. Eles estão na estrada até hoje, em diferentes papeis, mas marcados para sempre por aquela experiência dirigida por Raimundo Pereira.
Essa história forneceu lições de unidade e luta no seio de vasto conjunto de forças políticas que se articulavam em torno ou dispunham do papel do semanário. Junto com sua extinção essas forças se reorganizaram profundamente, já no alvorecer da liberdade de organização dos partidos políticos. Mas o mundo da imprensa nunca mais foi o mesmo: entre os colaboradores de Movimento estavam os melhores jornalistas do país, cujo papel permanece, com diferentes enfoques, até hoje.
Contar a experiência e refletir sobre ela de modo sistemático e profundo também seria obra difícil. Pois é o que alcançou Carlos Azevedo, um dos melhores repórteres do país, junto com Marina Amaral e Natalia Viana. A essência dos dilemas, o curso tortuoso dos eventos, as difíceis negociações entre forças diferenciadas que atuavam no jornal são retratados com clareza e objetividade, inclusive o tema aparentemente árido, mas fundamental, de como sustentar financeiramente a empresa.
Carlos Azevedo, com sua pena leve e gostosa, enfrenta tudo isso e nos brinda com um livro indispensável para a esquerda lembrar e reter como lições de generosidade, unidade na diversidade, jornalismo sério e competente, espírito democrático e irredento.
Mais ainda: o livro é acompanhado por um DVD com as 334 edições do jornal, um primor em termos de informação sistemática.
Participei de algum modo dessa experiência, durante toda sua duração. Admiro muito Azevedo, grande amigo, do qual só recentemente vim a saber que o trabalho que realizava captando informações da Rádio Tirana para a edição clandestina de A Classe Operária – órgão central do PCdoB – era o que me chegava para transformá-las em impressos distribuídos clandestinamente e, assim, reorganizar a direção partidária após a Chacina da Lapa. Era uma amizade virtual, antes mesmo de nos conhecermos.
Pedi a Azevedo um depoimento sobre a experiência de elaborar o livro. Ele brindou o blog com uma coisa muito rica e significativa, que partilho com todos.
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Sobre o livro "Jornal Movimento, uma reportagem"
Carlos Azevedo
Há muito tempo, vários companheiros que participaram da façanha notável que foi a realização do jornal Movimento, diziam que era preciso fazer um livro que contasse a sua história. Eu estava entre eles. Achávamos que a brilhante trajetória, que iluminou os caminhos pela democratização do país entre 1975 e 1981, não recebera ainda a devida menção, e o que se publicara trazia um viés depreciativo, fruto de divergências políticas e ressentimentos pessoais. De alguma forma, eu sentia que tinha um encontro marcado com essa tarefa. Em 2003, cheguei a esboçar um projeto, mas não o levei adiante. Um sentimento de insegurança diante do enorme desafio e problemas de saúde na família me levaram a desistir. Em 2008, concordei que Raimundo Pereira recuperasse o projeto, ele o apresentou ao Ministério da Cultura para obter os inventivos fiscais da Lei Rouanet e o patrocínio, que veio por meio da Petrobras.
Para mim, originalmente personagem coadjuvante da aventura do jornal, e agora alçado à condição de seu biógrafo, isto é, de testemunha o mais possível objetiva, embora tendo honestamente um lado, foi uma experiência profunda. Vivenciei momentos de entusiasmo, de exaltação, reflexão e tristeza. Aquela era a história de minha geração, era minha história. Na pesquisa do material fui revendo aqueles anos, as lutas que travamos, os meus dias, os dias de minha pequena família, constrangida junto comigo à clandestinidade. Foi uma experiência de muitos sabores, doces e amargos, de prazer e sofrimento, de satisfação e de angústia, de longas horas de trabalho solitário se estendendo pelas noites.
A construção desse livro custou quase dois anos de trabalho, o primeiro, em conjunto com uma pequena equipe, de cinco pessoas, cavoucando arquivos, fazendo a leitura das 344 edições, realizando cerca de 60 entrevistas,lendo os diversos livros de referência, redigindo e editando textos. Os últimos oito meses foram consumidos ouvindo críticas e sugestões à versão inicial, o “boi de piranha”, e, em cima de sua carcaça, lavrando solitariamente a madeira fina do texto final. A caça à palavra certa, à idéia justa, sabendo que jamais satisfaria a todos, mas solidamente ancorado nos fatos. Cada personagem tinha sua versão da história, mas além das versões haviam os documentos, as atas da reuniões e assembléias, as correspondências, e a própria coleção do jornal, só aí 8600 páginas. Por um lado, estávamos bem, pois a abundância de referências é o campo predileto do jornalista. Por outro, era imensa a tarefa de coordená-los, de ajustar sua cronologia, de selecionar o que era relevante, de contrapor as posições contraditórias buscando não negar a palavra a ninguém.
A leitura da coleção do jornal, em particular, me tocou fundo porque em cada edição eu reencontrava os acontecimentos que todos nós vivemos e sofremos sob a ditadura militar. Ali, nas matérias do jornal estavam retratadas, como num filme, as lutas populares no instante mesmo em que estavam acontecendo. Folhear suas páginas era quase como reviver aquele tempo passado. Reencontrar meus antigos textos, assinados com pseudônimo, era como reencontrar comigo mesmo, com as idéias de então que basicamente são as mesmas até hoje, embora matizadas pelos anos passados e por tudo o que vivemos depois. Sem falar no bigode que era castanho escuro e ficou branco, nos cabelos encanecidos (os poucos que sobraram). Esse reencontro não foi fácil.
O leitor também poderá viver essa experiência ao acessar o DVD com todas as edições do jornal que acompanha o livro.
Inevitável, enquanto preparava o livro, a época da clandestinidade ressurgiu vivamente. A casinha onde morei com minha família na Vila Industrial, em Campinas (ainda está lá, quase uma tapera), o quarto do casal, que era também meu escritório: uma escrivaninha, uma máquina de escrever, um caixote servindo de estante de livros, um rádio Transglobe e um gravador. Ao lado, um arquivo de aço e muito papel nas gavetas. Ali praticava uma longa jornada diária de trabalho: ler jornais, recortar, escrever comentários sobre a conjuntura, preparar sugestões de pauta e matérias para Movimento, escrever matérias para o jornal Libertação, reunir informações e materiais para os companheiros do birô político escreverem A Classe Operária, estudar os clássicos marxistas, fazer um boletim periódico de noticias censuradas na grande imprensa, que eu recebia de amigos jornalistas. Só era interrompido, às vezes, pela tarde, quando minha filhinha Ana, entendiada por não ter com quem brincar, subia no meu colo e se punha a batucar a máquina de escrever. Ou me pedia para ler, uma vez mais, o livrinho do Mágico de Oz.
Depois do “Massacre da Lapa”, em dezembro de 1976, perdi o contato com o partido por mais de dois anos. Continuei a trabalhar, a partir de então, mais voltado para colaborar em Movimento e em gravar as matérias de A Classe Operária, que passaram a ser transmitidas pela Rádio Tirana, da Albânia. Depois, desgravava, copiava à máquina em dezenas de cópias e enviava pelo correio. Periodicamente, meus escritos eram levados por minha companheira que os passava para a companheira de Raimundo Pereira. Generosamente, o jornal começara a pagar um salário por meus trabalhos.
Penso que a realização desse livro alcança vários resultados. Faz justiça aos que se doaram tão completamente para realizar Movimento. Oferece ao público, seja de pesquisadores, estudantes e ao leitor interessado em geral, um relato abundantemente documentado sobre o jornal e a época em que existiu (nisso incluído o DVD). Ajuda as pessoas a entenderem os motivos e as posições políticas das várias tendências que se envolveram na luta contra a ditadura militar e o conteúdo ideológico das forças políticas que se desenvolveram desde então na nossa sociedade. Vemos ali a origem dos novos partidos então criados – PMDB, PT, PSDB – assim como acompanhamos a trajetória do PCdoB, PCB etc., sem esquecer as tendências políticas de direita, Arena, PDS, PP, PFL etc. Estão ali as grandes campanhas como a da Constituinte e da Anistia, as greves do ABC, que pavimentaram o caminho da democratização, e as sementes das “diretas já!”. Falando não como autor, mas como testemunha ocular, penso que nesse livro as pessoas podem se reencontrar e se reconhecer como sujeitos e objetos da História.
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