Por Pedro Nogueira, no blog Diário do Centro do Mundo:
Fuçando em velhos arquivos do computador, eis que me deparo com uma entrevista que fiz, dois anos atrás, com o jornalista ítalo-brasileiro Mino Carta, diretor de redação da Carta Capital e fundador da Veja. Escrevi a matéria em parceria com minha amiga Cátia Cananea para o jornal Diretriz, da faculdade em que eu estudava na época, o Mackenzie. Ao relê-la, percebi que suas ideias continuam bastante atuais e decidi publica-la aqui no Diário. Segue abaixo.
A sala de Mino Carta, o diretor de redação da Carta Capital, tem um quê de vintage. Em cima da mesa, não há computador. No seu lugar, uma máquina de escrever Olivetti. “Tenho medo do computador”, diz Mino. “Ele engole as pessoas, sem que elas se deem conta disso.” Aos 79 anos, Mino é dono de um currículo impressionante: ele fundou as revistas Veja, IstoÉ , Carta Capital e o Jornal da Tarde, entre outras publicações. Numa tarde de segunda-feira, ele me recebeu em sua sala para uma entrevista, na qual afirmou que a imprensa brasileira é “de uma safadeza e hipocrisia imbatível” e disse que entrou no jornalismo porque queria comprar um terno azul-marinho.
O que o senhor acha da imprensa brasileira?
Ela é excepcionalmente ruim. O melhor jornal que circula em São Paulo é esse aqui, olha. [Pega uma edição do italiano Corriere Della Sera]. Essa reforma da Folha é para rir, né? A imprensa de qualquer país democrático é melhor do que a brasileira. A meu ver, a imprensa brasileira tem dois problemas sérios.
O primeiro está na posição deles. No mundo todo, você vai encontrar posições diferentes entre os jornais. Cada jornal tem a sua postura, que se diferencia da do concorrente. No Brasil, não. Todos os jornais e revistas se juntam contra um inimigo comum. No caso, o PT. Eles não querem incentivar o debate. A nossa imprensa é de uma safadeza e de uma hipocrisia imbatível. Não existe igual no mundo. A imprensa está sempre a favor do que é pior, do que há de mais rançoso, do que há de mais reacionário. Eles gostam de ser súditos, gostam de ser súditos dos Estados Unidos.
O segundo ponto é que os jornais são tecnicamente ruins. Muito ruins. Sem contar as ofensas diariamente cometidas contra a língua portuguesa, uma língua muito bonita, flexível e que mereceria um tratamento melhor.
Então, a imprensa brasileira é tendenciosa, na sua opinião?
A imprensa tem obrigação de ser honesta. Aquela história de ela ser objetiva está errada. Você não consegue ser objetivo em momento algum da vida. Imagina escrevendo! Você é subjetivo até quando deposita uma vírgula. Mas precisa existir honestidade, entende? Ouvir quem está de um lado, quem está de outro. Dar o mesmo peso às declarações de ambos. E, depois, dar a sua opinião, acentuando a diferença entre o que é verdade factual e o que é opinião. A verdade é um fato simples. Esta é uma mesa [ele aponta para a mesa], isso é um copo, estou tomando Coca-Cola. Vocês são jovens estudantes, eu me chamo Mino. Essa é a verdade factual. A imprensa brasileira mente o tempo inteiro, omite informações, quando não convém ao ponto de vista deles.
Há alguma revista que se salva?
A Carta Capital. A Carta Capital é um milagre. Pela qualidade de análise, pela coragem. Você não precisa concordar com a Carta Capital, não é esse o ponto. Não somos os donos da verdade. Absolutamente. Mas, pelo menos, ela te oferece um trabalho em bom português, de análise profunda com a qual se pode concordar ou não. Nós temos a convicção de que o jornalismo se faz para iluminar os leitores.
Além da Carta Capital, há alguma outra?
Não. Tem algumas que são carregadas de boa-fé. Isso já é meio caminho andado. A Brasileiros é uma revista feita com muito boa fé, muita esperança. A Caros Amigos também. Agora, são publicações pouco incisivas, porque são mensais. É complicado fazer uma revista mensal. Ela acaba exercendo uma pressão, uma influência muito pequena. Dilui-se demais. Isso cria problemas sérios.
Qual é a diferença entre a Veja da década de 1970, editada pelo senhor, e a Veja de hoje?
A Veja nasceu uma revista independente, em um momento que não tem comparação com os dias de hoje. Ela nasceu em tempos de ditadura, foi apreendida nas bancas na 5ª edição. Foi submetida a uma censura infernal. Eu fui preso duas vezes e tive que prestar 40 depoimentos na Polícia Federal.
Enfim, eram outros tempos. Quando saí da Veja, ela entregou-se nas mãos da ditadura. Embora tenha mudado a sua postura, ainda era feita por uma equipe competente. Antes, a Veja era de franca oposição dentro das possibilidades, determinadas por uma censura duríssima. Então, naquele momento, a censura foi embora e tudo ficou bem pra eles. Mas, repito, a Veja não perdeu qualidade, mesmo mudando de posição.
Já a Veja de hoje é um acinte, é uma cloaca. Não é uma revista. Ela mente todo dia.
O senhor ainda usa máquina de escrever? Não gosta de computador?
Sim, ainda escrevo na minha Olivetti. Não chego perto do computador. Acho que ele engole as pessoas, sem que elas se dêem conta de que estão sendo engolidas. Tenho medo do computador.
Há quem diga que o jornalismo digital vai acabar com o impresso. Qual é a posição do senhor em relação a isso?
Confesso que esse raciocínio tem a sua lógica. Mas ainda tenho muitas dúvidas. Eu vejo que a internet está sendo muito mal usada. A internet hoje facilita tanto a vida do repórter que ela está acabando com a reportagem, com a cobertura profunda dos acontecimentos. O jornalista já não vai mais a campo. Está tudo lá, na internet. É um instrumento fantástico, negar isso é besteira. É fantástico porque, se você quiser ler tal livro, está lá. Ou, se quiser entrar na melhor biblioteca do mundo, no melhor museu, pode. Enfim, temos à nossa disposição o mundo via internet.
Mas não me parece que ela esteja sendo bem usado. Não tenho muita confiança no gênero humano, entende? Muito pelo contrário. Eu sou dostoievskiano na minha visão do homem. Não acredito que o homem vai produzir grandes coisas. Acho que o homem vai se meter, sempre, em guerras e lutas. E, o pior: em mutretas, em obras escusas.
Como o senhor entrou para o jornalismo?
Meu pai era jornalista, meu avô era jornalista. Meu irmão sonhava em ser jornalista. Eu, não. Achava os jornalistas um bando de chatos. Falando sempre de coisas, segundo eles, extraordinárias e, na verdade, terrivelmente iguais. As pessoas mudam de nome, mas você lida sempre com o mesmo tipo de personagem.
Enfim, quando eu tinha 15 anos, queria muito ir aos bailes de sábado. E eu precisava de um terno azul-marinho para ir. Meu pai recebeu uma proposta de um jornal italiano para fazer algumas matérias de futebol. Acontece que ele odiava futebol. Detestava cordialmente o futebol. Eu gostava, e eu jogava. Ele me chamou e disse: “Olha, tão me oferecendo isso. Você quer escrever?” Eu disse: “Quanto vale?” Ele falou que era tanto. E eu: “Perfeito, muito bom!” Com aquele dinheiro, eu podia fazer um terno azul-marinho num bom alfaiate. Bom mesmo! [risos] Aí, descobri que a felicidade estava ao alcance de quem quisesse escrever os artigos. Quer dizer, aquilo que eu concebia como felicidade, né?
Qual é a maior virtude que um jornalista pode ter, em sua opinião?
Posso dizer quais são as regras que devem inspirar o jornalista, aqueles princípios básicos. O primeiro é a fidelidade à verdade factual. Fidelidade total, não omitir nada daquilo que está ali. Em segundo, o exercício do espírito crítico. Isso é fundamental. Ter uma postura diante das coisas. Aliás, essa é a melhor maneira de ser efetivamente vivo. É um sinal de vida quase tão importante quanto respirar. E o terceiro ponto é a fiscalização do poder. Não só o poder do governo. Mas, também, o poder do banqueiro, é o poder da cultura, o poder em geral. O poder sempre se manifesta, existe em qualquer lugar.
Agora, esses são os princípios. O jornalista precisa ter talento, ter vocação. É possível desenvolver a técnica. Mas é fundamental ter algum talento, saber escrever bem. Jornalismo é uma forma de literatura, é um braço literário indiscutível. Grandes jornalistas foram grandes escritores. Você aprende a escrever realmente bem lendo muito. A leitura é fundamental para quem quer escrever. Tem que entrar em você. É a partir daí que você ganha um enorme desembaraço em relação à escrita.
O que o senhor acha da imprensa brasileira?
Ela é excepcionalmente ruim. O melhor jornal que circula em São Paulo é esse aqui, olha. [Pega uma edição do italiano Corriere Della Sera]. Essa reforma da Folha é para rir, né? A imprensa de qualquer país democrático é melhor do que a brasileira. A meu ver, a imprensa brasileira tem dois problemas sérios.
O primeiro está na posição deles. No mundo todo, você vai encontrar posições diferentes entre os jornais. Cada jornal tem a sua postura, que se diferencia da do concorrente. No Brasil, não. Todos os jornais e revistas se juntam contra um inimigo comum. No caso, o PT. Eles não querem incentivar o debate. A nossa imprensa é de uma safadeza e de uma hipocrisia imbatível. Não existe igual no mundo. A imprensa está sempre a favor do que é pior, do que há de mais rançoso, do que há de mais reacionário. Eles gostam de ser súditos, gostam de ser súditos dos Estados Unidos.
O segundo ponto é que os jornais são tecnicamente ruins. Muito ruins. Sem contar as ofensas diariamente cometidas contra a língua portuguesa, uma língua muito bonita, flexível e que mereceria um tratamento melhor.
Então, a imprensa brasileira é tendenciosa, na sua opinião?
A imprensa tem obrigação de ser honesta. Aquela história de ela ser objetiva está errada. Você não consegue ser objetivo em momento algum da vida. Imagina escrevendo! Você é subjetivo até quando deposita uma vírgula. Mas precisa existir honestidade, entende? Ouvir quem está de um lado, quem está de outro. Dar o mesmo peso às declarações de ambos. E, depois, dar a sua opinião, acentuando a diferença entre o que é verdade factual e o que é opinião. A verdade é um fato simples. Esta é uma mesa [ele aponta para a mesa], isso é um copo, estou tomando Coca-Cola. Vocês são jovens estudantes, eu me chamo Mino. Essa é a verdade factual. A imprensa brasileira mente o tempo inteiro, omite informações, quando não convém ao ponto de vista deles.
Há alguma revista que se salva?
A Carta Capital. A Carta Capital é um milagre. Pela qualidade de análise, pela coragem. Você não precisa concordar com a Carta Capital, não é esse o ponto. Não somos os donos da verdade. Absolutamente. Mas, pelo menos, ela te oferece um trabalho em bom português, de análise profunda com a qual se pode concordar ou não. Nós temos a convicção de que o jornalismo se faz para iluminar os leitores.
Além da Carta Capital, há alguma outra?
Não. Tem algumas que são carregadas de boa-fé. Isso já é meio caminho andado. A Brasileiros é uma revista feita com muito boa fé, muita esperança. A Caros Amigos também. Agora, são publicações pouco incisivas, porque são mensais. É complicado fazer uma revista mensal. Ela acaba exercendo uma pressão, uma influência muito pequena. Dilui-se demais. Isso cria problemas sérios.
Qual é a diferença entre a Veja da década de 1970, editada pelo senhor, e a Veja de hoje?
A Veja nasceu uma revista independente, em um momento que não tem comparação com os dias de hoje. Ela nasceu em tempos de ditadura, foi apreendida nas bancas na 5ª edição. Foi submetida a uma censura infernal. Eu fui preso duas vezes e tive que prestar 40 depoimentos na Polícia Federal.
Enfim, eram outros tempos. Quando saí da Veja, ela entregou-se nas mãos da ditadura. Embora tenha mudado a sua postura, ainda era feita por uma equipe competente. Antes, a Veja era de franca oposição dentro das possibilidades, determinadas por uma censura duríssima. Então, naquele momento, a censura foi embora e tudo ficou bem pra eles. Mas, repito, a Veja não perdeu qualidade, mesmo mudando de posição.
Já a Veja de hoje é um acinte, é uma cloaca. Não é uma revista. Ela mente todo dia.
O senhor ainda usa máquina de escrever? Não gosta de computador?
Sim, ainda escrevo na minha Olivetti. Não chego perto do computador. Acho que ele engole as pessoas, sem que elas se dêem conta de que estão sendo engolidas. Tenho medo do computador.
Há quem diga que o jornalismo digital vai acabar com o impresso. Qual é a posição do senhor em relação a isso?
Confesso que esse raciocínio tem a sua lógica. Mas ainda tenho muitas dúvidas. Eu vejo que a internet está sendo muito mal usada. A internet hoje facilita tanto a vida do repórter que ela está acabando com a reportagem, com a cobertura profunda dos acontecimentos. O jornalista já não vai mais a campo. Está tudo lá, na internet. É um instrumento fantástico, negar isso é besteira. É fantástico porque, se você quiser ler tal livro, está lá. Ou, se quiser entrar na melhor biblioteca do mundo, no melhor museu, pode. Enfim, temos à nossa disposição o mundo via internet.
Mas não me parece que ela esteja sendo bem usado. Não tenho muita confiança no gênero humano, entende? Muito pelo contrário. Eu sou dostoievskiano na minha visão do homem. Não acredito que o homem vai produzir grandes coisas. Acho que o homem vai se meter, sempre, em guerras e lutas. E, o pior: em mutretas, em obras escusas.
Como o senhor entrou para o jornalismo?
Meu pai era jornalista, meu avô era jornalista. Meu irmão sonhava em ser jornalista. Eu, não. Achava os jornalistas um bando de chatos. Falando sempre de coisas, segundo eles, extraordinárias e, na verdade, terrivelmente iguais. As pessoas mudam de nome, mas você lida sempre com o mesmo tipo de personagem.
Enfim, quando eu tinha 15 anos, queria muito ir aos bailes de sábado. E eu precisava de um terno azul-marinho para ir. Meu pai recebeu uma proposta de um jornal italiano para fazer algumas matérias de futebol. Acontece que ele odiava futebol. Detestava cordialmente o futebol. Eu gostava, e eu jogava. Ele me chamou e disse: “Olha, tão me oferecendo isso. Você quer escrever?” Eu disse: “Quanto vale?” Ele falou que era tanto. E eu: “Perfeito, muito bom!” Com aquele dinheiro, eu podia fazer um terno azul-marinho num bom alfaiate. Bom mesmo! [risos] Aí, descobri que a felicidade estava ao alcance de quem quisesse escrever os artigos. Quer dizer, aquilo que eu concebia como felicidade, né?
Qual é a maior virtude que um jornalista pode ter, em sua opinião?
Posso dizer quais são as regras que devem inspirar o jornalista, aqueles princípios básicos. O primeiro é a fidelidade à verdade factual. Fidelidade total, não omitir nada daquilo que está ali. Em segundo, o exercício do espírito crítico. Isso é fundamental. Ter uma postura diante das coisas. Aliás, essa é a melhor maneira de ser efetivamente vivo. É um sinal de vida quase tão importante quanto respirar. E o terceiro ponto é a fiscalização do poder. Não só o poder do governo. Mas, também, o poder do banqueiro, é o poder da cultura, o poder em geral. O poder sempre se manifesta, existe em qualquer lugar.
Agora, esses são os princípios. O jornalista precisa ter talento, ter vocação. É possível desenvolver a técnica. Mas é fundamental ter algum talento, saber escrever bem. Jornalismo é uma forma de literatura, é um braço literário indiscutível. Grandes jornalistas foram grandes escritores. Você aprende a escrever realmente bem lendo muito. A leitura é fundamental para quem quer escrever. Tem que entrar em você. É a partir daí que você ganha um enorme desembaraço em relação à escrita.
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