Por Jorge Luiz Souto Maior, no sítio Carta Maior:
Em junho deste ano, em meio às manifestações populares que marcaram uma mudança no país sobretudo no que se refere à relevância dos direitos sociais, cerca de 100 trabalhadores terceirizados da USP ficaram sem receber salários por vários dias. O salário de maio foi pago apenas no dia 17 de junho, sendo que isto se deu apenas em decorrência de greve realizada entre os dias 10 e 14 do mesmo mês, que provocou, inclusive, a intervenção da administração da Universidade para que a situação fosse resolvida. A solução, ademais, foi parcial porque outros benefícios, também em atraso, não foram imediatamente acertados.
Do ponto de vista jurídico e humano o fato foi extremamente grave, pois deixar de pagar salário é uma agressão à vida, impondo sofrimento e angústia ao trabalhador, constituindo uma situação ainda pior quando ocorre em um ente estatal que possui relevância educacional de nível internacional.
A USP, em respeito à Constituição, sequer poderia ter se valido da terceirização para a realização de serviços que são permanentes em sua dinâmica institucional. E não poderia mesmo esquivar-se do problema, vez que, por decisão recente do STF, o ente público é responsável pela eficácia dos direitos trabalhistas dos terceirizados quando elege mal a empresa que lhe prestará serviços, sendo que esta culpa “in eligendo” é presumida quando a empresa contratada sequer paga salários em dia aos seus empregados. Cumpre lembrar, ademais, que a Administração da Universidade é reincidente nesta prática ilícita, afinal, foi a terceira vez nos últimos cinco anos que essa triste história de violência à condição humana se passou no âmbito da USP.
O fato é que a terceirização na Universidade tem gerado uma enorme gama de supressões de direitos, atingindo a esfera dos direitos fundamentais, como se deu, também recentemente, na unidade da Faculdade de Direito. A propósito dessa situação a Administração da Universidade tem se pautado como se a ordem jurídica e o respeito aos direitos alheios não lhe atingissem, apresentando-se como vítima das circunstâncias ou como salvadora da pátria quando, após pressionada, intervém para solucionar os problemas que ela própria criou ao se valer da terceirização.
Mas a coisa é ainda pior. Para manter a terceirização nos mesmos moldes e negar suas perversidades, a Administração da Universidade, em nítida postura de abuso de poder, utilizado para prática de ato de represália, em contrariedade ao princípio constitucional da moralidade e ao preceito fundamental da boa fé, tem punido os dirigentes do Sindicato dos Trabalhadores da USP (SINTUSP) que se apresentam, publicamente, para defender os direitos dos trabalhadores terceirizados, o que está integrado, inclusive, aos objetivos institucionais do sindicato.
Em 2008, sob acusação de ter se envolvido na defesa dos interesses trabalhistas dos terceirizados, extrapolando a sua representação, o sindicalista Claudionor Brandão foi dispensado por justa causa.
Agora, em 2013, após terem participado do ato grevista organizado pelos trabalhadores terceirizados, na luta pelo recebimento de salários e de benefícios em atraso, 06 (seis) diretores do SINTUSP (Neli Maria Paschoarelli Wada, Marcello Ferreira dos Santos, Magno de Carvalho Costa, Domenico Colaccico Neto, Solange Conceição Lopes Veloso e Diana Soubihe de Oliveira) estão sendo submetidos a processos administrativos que visa, igualmente, a puni-los com a pena de justa causa.
Os argumentos jurídicos utilizados na Portaria 795/2013, que instaurou o Processo Administrativo, são tão frágeis que revelam, de forma escancarada, a represália.
Diz, primeiro, que o os diretores do SINTUSP, ao impedirem o acesso de servidores a seus locais de trabalho, cercearam o “direito social ao trabalho” desses servidores. O que dizer, então, do ato da Administração que, irresponsavelmente, submeteu mais de cem trabalhadores à supressão de suas necessidades vitais, sem o efetivo recebimento de salários? Os trabalhadores terceirizados estavam em estado de necessidade e foram eles que organizaram a paralisação e o piquete é prática natural na mobilização coletiva de trabalhadores, ainda mais quando a motivação é a falta de recebimento de salários.
Os diretores do SINTUSP apoiaram a mobilização em ato de solidariedade e este é o sentimento principal de toda a ordem jurídica do Estado Social Democrático de Direito. A solidariedade, aliás, faltou aos servidores que, diante do desespero dos terceirizados, “deram de ombros” para a situação e quiseram furar o ato dos terceirizados para continuarem trabalhando, agindo como se nada estivesse acontecendo. Claro que podem ter agido dessa forma com medo de também sofrerem represálias caso não trabalhassem, mas é exatamente por isso que existe a representação sindical, permitindo que trabalhadores, aos quais se confere proteção especial no emprego, possam efetivar lutas concretas na defesa dos direitos dos trabalhadores. Nesta perspectiva, punir sindicalistas porque agiram na luta por direitos representa um desrespeito à classe trabalhadora como um todo, contrariando toda a história de formação do Direito do Trabalho, que traz como marco fundamental o direito à luta pela efetivação dos direitos conquistados, sendo o salário o bem maior.
Diz ainda a Portaria que a mobilização interferiu no funcionamento dos órgãos da Administração central. Ocorre que já não se podia falar em “normalidade” do funcionamento dos órgãos, vez que os trabalhadores terceirizados, cujo trabalho é essencial para que os tais órgãos funcionem e os servidores atuem, estavam sem receber seus salários há vários dias. Não há normalidade possível quando pessoas ao redor têm seus direitos suprimidos e passam necessidade.
A Portaria dá a entender que a Administração resolveu o problema do atraso dos salários, mas só o fez depois que teve ciência dos fatos e esta ciência se deu, exatamente, por conta da mobilização dos terceirizados, com o apoio dos sindicalistas do SINTUSP.
Por fim, a Portaria sugere que os diretores do SINTUSP agiram fora do âmbito de sua representação sindical e que esta representação caberia a outro sindicato, mas, primeiro, a Universidade não tem legitimidade para interferir nesta questão, desconsiderando, inclusive, disposição expressa do estatuto do SINTUSP, que lhe atribui o objetivo de defender a eficácia dos direitos de todos os trabalhadores que atuam no âmbito da Universidade, incluindo os terceirizados; segundo, ninguém pode ser punido por lutar, em ato de solidariedade, pela efetividade de direitos alheios, sendo que, como dito, o grande mal está, exatamente, em não se importar com o que se passa com o outro, ainda mais quando se fala de uma relação entre trabalhadores.
O fato concreto é que a ordem jurídica foi frontalmente arranhada pela Administração da Universidade ao efetivar a terceirização e não fiscalizar o devido cumprimento dos direitos dos trabalhadores terceirizados.
Para que tal situação não se apresentasse publicamente, possibilitando inclusive que se confiram méritos aos terceirizados, por sua mobilização na luta pela efetivação dos direitos, e ao SINTUSP, pelo exemplar ato de solidariedade, a Administração da USP buscou a saída de acusar tais pessoas de estarem afrontando a ordem jurídica. E fizeram isso por pinçar alguns artigos de lei – sobretudo os preceitos de um Estatuto Disciplinar da época da ditadura militar, o Decreto n. 52.906/72 – para punir os trabalhadores. Assim, agiram da mesma forma como já houvera procedido, em março de 2012, com relação a toda a diretoria da Associação dos Professores da USP (ADUSP), que foram alvo de interpelação judicial, para esclarecerem, judicialmente, declaração feita em manifestação de cunho político.
Além dessas situações, cumpre lembrar que na consecução de suas estratégias políticas a Administração da Universidade tem se valido, nos últimos anos, da tática de judicialização dos atos de seus “adversários”, visualizando de forma atomizada a ordem jurídica, para o fim de gerar medo e inibir a ação política de estudantes, servidores e professores. Tudo sob a retórica de que existem meios institucionalizados para o debate democrático e que o Estado de Direito incide também no âmbito da Universidade.
Foi assim que, após iniciar seu mandato comparando a USP aos “morros do Rio de Janeiro”, o atual Reitor, 1) em maio de 2010, contrariando todo o histórico das relações de trabalho na Universidade, determinou o corte de salário dos servidores em greve; em novembro de 2010, abriu processos administrativos contra alunos que participaram da ocupação da Reitoria em 2007 e contra estudantes que retomaram parte do espaço destinado historicamente às moradias de estudantes, que haviam sido tomados pela Administração
2) no final de 2010/início de 2011, de forma sumária, ou seja, sem qualquer procedimento prévio ou mesmo comunicação aos diretores das respectivas unidades, promoveu a dispensa de 271 (duzentos e setenta e um) servidores aposentados, que tomaram ciência da situação, por acaso, ao acessarem o site da Universidade na área restrita relativa a cada um deles
3) em setembro de 2011, assinou Convênio com a Polícia Militar, também para o fim de criar base de informações e dados sobre as ocorrências na Universidade, instaurando um clima de vigilância e repressão
4) em novembro de 2011, se socorreu da via judicial para a reintegração de posse da Reitoria ocupada, o que se concretizou pela intervenção violenta da Força Tática da Polícia Militar, com 400 homens, dois helicópteros e cachorros, tudo para a retirada do local de 73 (setenta e três) estudantes, que, na sequência, foram conduzidos às Delegacias de Polícia para abertura de inquéritos.
Alguns processos administrativos instaurados contra estudantes da Moradia Retomada correram rapidamente e, em 18 de dezembro de 2011, conclui-se pela eliminação (expulsão) de 8 estudantes, servindo como base o disposto no Decreto n. 52.906, de 1972. No domingo de Carnaval de 2012, nova ação policial na Universidade, determinada por decisão judicial, promoveu a desocupação da Moradia Retomada. E, mais uma vez, estudantes foram conduzidos, manu militari, às Delegacias de Polícia, para instauração de inquéritos. Em março/abril de 2012, outros estudantes e servidores começaram a receber intimações para prestar depoimentos em processos disciplinares.
A percepção parcial do ordenamento jurídico e mesmo da autoridade do Judiciário, servindo tais instituições meramente a propósitos políticos da Administração, revelou-se, claramente, no mais recente episódio, que gerou nova ocupação da Reitoria por parte de estudantes. A estrutura de poder da Universidade quis parecer democrática, mas estabeleceu um jogo de reforma das eleições para Reitor sem integrar a discussão de uma estatuinte, reivindicação antiga de setores da Universidade; sem, antes, democratizar o ente responsável pela votação das propostas; e sem permitir que servidores e estudantes tivessem acesso ao local da deliberação.
A situação, como em todas as anteriores, gerou insatisfação e revolta, motivando a ação política dos estudantes, que provocou a ocupação parcial do prédio da Reitoria. Como nas demais ocasiões, a Administração, rapidamente, valeu-se da via judicial para se furtar ao debate político, escorando-se na defesa da ordem jurídica e pautando-se pela autoridade da decisão judicial.
Ocorre que, ao contrário de outras vezes, não houve a concessão da liminar de reintegração e a Administração simplesmente se viu no “direito” de desrespeitar a autoridade do Judiciário. Promoveram, então, em autêntica tática de guerrilha, atos de represália aos alunos, cortando a luz e água do local – o que nada tem a ver, por certo, com defesa da ordem jurídica. Até porque representa, como dito, uma afronta à decisão judicial já manifestada sobre o caso.
Constata-se, portanto, que o ato da Administração da USP, de propor a ação de reintegração de posse, não decorreu de uma extrema necessidade de resgatar a legalidade. Tratou-se, isto sim, de uma tentativa de judicialização da política, para, com a obtenção da liminar da Justiça, furtar-se ao diálogo para o qual fora chamada pela ação dos estudantes.
E não adianta fugir do debate político, dizendo que “a sociedade está cansada de protesto violento”, tentando criminalizar a ação dos estudantes (e dos trabalhadores). As classes em desvantagem nas estruturas de poder existentes, ao pretender superar essa inferioridade de modo a reinventar a estrutura social, muitas vezes consideram que são necessários atos de mobilização que possibilitem a visualização de suas reivindicações, sendo que somente depois que o conflito se estabelece e se torna público é que as forças se sentem impulsionadas ao diálogo.
O Judiciário, aliás, precisa começar a perceber que muitos segmentos da sociedade, que ostentam parcela do poder institucionalizado, estatal ou econômico, estão se valendo de uma pretensa defesa da legalidade, que lhes vale uma utilização desvirtuada de mecanismos processuais, com o objetivo de fazer calar os seus interlocutores.
Foi essa, ademais, a percepção a que se chegou no processo nº 114.01.2011.011948-2, UNICAMP x DIRETÓRIO CENTRAL DOS ESTUDANTES / DCE – UNICAMP, com trâmite na 1ª. Vara da Fazenda Pública de Campinas). Em caso semelhante ao do que ora se trata, o juiz Mauro Iuji Fukumoto assim se pronunciou: “…de fato, ocupação de prédios públicos é, tradicionalmente, uma forma de protesto político, especialmente para o movimento estudantil, caracterizando-se, pois, como decorrência do direito à livre manifestação do pensamento (artigo 5º, IV, da Constituição Federal) e do direito à reunião e associação (incisos XVI e XVII do artigo 5º). Não se trata propriamente da figura do esbulho do Código Civil, pois não visa à futura aquisição da propriedade, ou à obtenção de qualquer outro proveito econômico. A situação em tela não se amolda à proteção possessória prevista nos artigos 920 e seguintes do Código de Processo Civil, especialmente aos critérios dos artigos 927 e 928 para a concessão da liminar. Inegável, por outro lado, que toda ocupação causa algum transtorno ao serviço público – se assim não fosse, pouca utilidade teria como forma de pressão. Há que se ponderar, dentro de um critério de razoabilidade, a importância do serviço público descontinuado pela ocupação, de um lado, e o resguardo dos direitos constitucionais supra mencionados, de outro.”
O pretexto do respeito à legalidade estrita, especialmente para proteger uma propriedade que nunca esteve de fato ameaçada, não pode impor, portanto, sacrifícios a direitos fundamentais, nos quais se inclui a ação de natureza política. Ainda mais quando o meio utilizado para o resgate da posse seja ofensivo ao direito à vida. Lembre-se que em nome da lei já se praticaram os mais variados males à condição humana.
Na perspectiva da ponderação, critério essencial de aplicação do Direito no modelo em que princípios se integram ao conceito de normas jurídicas, é necessário sempre ver os atos a partir de seu maior conteúdo, avaliando a finalidade, o resultado, a motivação, o efeito lesivo e o sentido ético do comportamento. Uma manifestação política, como a dos estudantes, não pretende, em nenhum momento, como se sabe, afrontar a autoridade constitucional, nem defender qualquer interesse que seja desprestigiado pela ordem jurídica. Trata-se de uma ação política reivindicatória, que visa, exatamente, conferir eficácia concreta ao preceito democrático, ainda que com sacrifício parcial e provisório de outros valores.
Tendo-se concordância, ou não, com o método adotado, ou mesmo rechaçando, no mérito, as demandas dos estudantes, o ato por estes cometido não se insere de modo algum na esfera do ilícito. Trata-se de um ato evidentemente político – como ademais demonstrou ter sido a reação contrária da Reitoria.
O princípio de que ninguém está acima da lei serve para que o poder não se ponha sobre a lei em atos opressores da expressão político-democrática, pois como consignado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, cumpre ao Estado de Direito respeitar o exercício da ação política de natureza reivindicatória, “para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão”.
Lembre-se, ainda, das recentes mobilizações que se realizaram no país, impulsionadas por motivos diversos, que geraram, inclusive, a compreensão de que a ocupação de prédios públicos possui o efeito simbólico de demonstrar, com clareza, o nível de insatisfação da população contra a forma como seus interesses têm sido tratados pelas estruturas do Estado, fazendo recobrar a noção fundamental do Estado Democrático de Direito Social de que o poder pertence ao povo e em nome dele deve ser exercido.
Não se pode esquecer que o mundo vive um importante momento de reformulação das estruturas democráticas, buscando a efetividade dos direitos sociais e políticos. As manifestações populares nos Estados Unidos (em New York, Washington, Chicago e Wisconsin), na Europa (Roma, Berlim, Paris, Bruxelas, Madri, Londres e Atenas), no Canadá, na Austrália, na Nova Zelândia, no Japão e no Chile chegaram ao Brasil em junho deste ano e ainda estão por produzir seus efeitos concretos mais relevantes. E é evidente que a real democratização da maior universidade do país está no centro de todas as demais mudanças necessárias que precisamos conceber.
Sob o aspecto da tática de ocupação em si: recorde-se que em Madison, no Estado de Wisconsin, EUA, a sede do governo, o Capitólio, foi ocupada em março de 2011 para reivindicar a retirada de um projeto de lei que pretendia reduzir impostos, visando a instalação de empresas no Estado, e diminuir o poder dos sindicatos do setor público, de modo a praticamente eliminá-los. Após movimento popular espontâneo, sem deliberação prévia, em assembleia, por óbvio, milhares de pessoas ocuparam o Capitólio durante 17 dias. Do evento, que terminou com uma desocupação negociada, sem violência, adveio um protesto, ainda em março, de mais de 100 mil pessoas em frente ao Capitólio, que “barrou”, temporariamente, a publicação da lei e repercutiu em outras mobilizações em Ohio, Michigan, Indiana e Maine…
Não é possível esquecer, ademais, o que se passou em 2011, quando a renitência da Administração em negociar com os estudantes, tratando-os como delinquentes, marginais ou moleques, provocou, após a violência da desocupação, grandes manifestações e que, em certo sentido, estão ligadas àquelas que se produziram em junho de 2013.
Logo após a desocupação violenta, como ato de concretização da violência da supressão da ação política e da liberdade de expressão, o que se viu foi a realização de uma assembleia com cerca de 3.000 estudantes unidos em torno das causas defendidas pelos alunos da ocupação e que deliberaram pela deflagração de uma greve geral, ainda que sob o requisito de ser aprovada em assembleias em cada unidade.
Além disso, os professores da Universidade, em assembleia, deliberaram apoiar os alunos em suas reivindicações, que desde então estavam pautadas pela preocupação de democratização da USP, expressando-se, ainda, em repúdio aos atos arbitrários de perseguição políticas que vem se perpetrando no local nos últimos anos.
Em nota, a Associação dos Professores da USP pronunciou: “Assim, conclamamos todas as entidades, associações de trabalhadores, organizações de direitos humanos e aqueles que defendem as liberdades democráticas, ameaçadas pela escalada repressiva implantada pela Reitoria, a se manifestarem contra as medidas aqui denunciadas, que tolhem o direito de livre organização e expressão.”
Na própria mídia, as manifestações de mero repúdio cederam lugar a análises mais responsáveis e críticas. Conforme concluíram Mauro Paulino e Alessandro Janoni*, “A manifestação recente de estudantes da USP não é a brincadeira de criança que se tenta desenhar. Não se restringe ao debate sobre legalização das drogas ou estratégias de segurança pública. É um sintoma sério de crise de democracia”, vez que “as instituições tradicionais de representação do modelo hegemônico de democracia se distanciam da população, em especial dos jovens”, sendo que se é assim no “berço da classe média paulistana”, que é a USP, quanto mais o será, e de forma ainda mais preocupante, para o segmento alocado “nas franjas da cidade”.
Ainda em novembro de 2011 foi realizada uma manifestação, organizada por estudantes, professores e servidores, com a presença de 5.000 pessoas, que saíram em passeata pelo centro de São Paulo, culminando com um ato na Faculdade de Direito, no Largo de São Francisco, onde 2.000 estudantes pertencentes a praticamente todas as unidades da Universidade deliberaram pela continuidade da greve.
É preciso compreender, portanto, que quando se depara com processos administrativos como esses, que visam a dispensa por justa causa de dirigentes sindicais em luta contra a precarização do trabalho e pela efetivação de direitos aos trabalhadores terceirizados, não se está tratando de fatos isolados, frutos da preocupação da Administração da Universidade de fazer valer a ordem. Representam, isto sim, a continuidade de um processo histórico de supressão da fala dos estudantes, dos trabalhadores e de boa parte dos professores, que não se integram, de forma minimamente proporcional, às estruturas de poder da instituição.
Vale lembrar, ainda, que nesta escalada autoritária, mais intensa nos últimos anos, encontra-se o ato cometido à sorrelfa pela Administração da Universidade: a constituição de uma Comissão da Verdade de cima para baixo, adotando como sua, e para si. Essa iniciativa já era gestada espontaneamente na comunidade acadêmica, que se organizou e mobilizou 5.000 assinaturas de estudantes, servidores, professores e familiares de perseguidos políticos, visando a instituição de uma Comissão da Verdade que fosse paritária e com membros eleitos, democraticamente, pelos respectivos segmentos.
Em suma, o que estamos assistindo no presente momento é, meramente, o fruto de uma histórica falência democrática instaurada na Universidade. A atual Administração utiliza de todos os mecanismos que dispõe para se passar por democrática e defensora da ordem jurídica, quando, de fato, o que pretende mesmo é aprofundar a lógica autoritária, suprimindo a política e a liberdade de expressão, tudo em nome do mais recente argumento: de que o importante para a USP é melhorar sua posição no ranking da THE (Times Higher Education).
Mas, como se viu das vezes anteriores, as violências institucionais aos direitos sociais e humanos não passarão e a cidadania, a solidariedade e democracia arrumarão os meios para se recriarem. Afinal, como já se disse, “apesar de você, amanhã há de ser outro dia!”
Em junho deste ano, em meio às manifestações populares que marcaram uma mudança no país sobretudo no que se refere à relevância dos direitos sociais, cerca de 100 trabalhadores terceirizados da USP ficaram sem receber salários por vários dias. O salário de maio foi pago apenas no dia 17 de junho, sendo que isto se deu apenas em decorrência de greve realizada entre os dias 10 e 14 do mesmo mês, que provocou, inclusive, a intervenção da administração da Universidade para que a situação fosse resolvida. A solução, ademais, foi parcial porque outros benefícios, também em atraso, não foram imediatamente acertados.
Do ponto de vista jurídico e humano o fato foi extremamente grave, pois deixar de pagar salário é uma agressão à vida, impondo sofrimento e angústia ao trabalhador, constituindo uma situação ainda pior quando ocorre em um ente estatal que possui relevância educacional de nível internacional.
A USP, em respeito à Constituição, sequer poderia ter se valido da terceirização para a realização de serviços que são permanentes em sua dinâmica institucional. E não poderia mesmo esquivar-se do problema, vez que, por decisão recente do STF, o ente público é responsável pela eficácia dos direitos trabalhistas dos terceirizados quando elege mal a empresa que lhe prestará serviços, sendo que esta culpa “in eligendo” é presumida quando a empresa contratada sequer paga salários em dia aos seus empregados. Cumpre lembrar, ademais, que a Administração da Universidade é reincidente nesta prática ilícita, afinal, foi a terceira vez nos últimos cinco anos que essa triste história de violência à condição humana se passou no âmbito da USP.
O fato é que a terceirização na Universidade tem gerado uma enorme gama de supressões de direitos, atingindo a esfera dos direitos fundamentais, como se deu, também recentemente, na unidade da Faculdade de Direito. A propósito dessa situação a Administração da Universidade tem se pautado como se a ordem jurídica e o respeito aos direitos alheios não lhe atingissem, apresentando-se como vítima das circunstâncias ou como salvadora da pátria quando, após pressionada, intervém para solucionar os problemas que ela própria criou ao se valer da terceirização.
Mas a coisa é ainda pior. Para manter a terceirização nos mesmos moldes e negar suas perversidades, a Administração da Universidade, em nítida postura de abuso de poder, utilizado para prática de ato de represália, em contrariedade ao princípio constitucional da moralidade e ao preceito fundamental da boa fé, tem punido os dirigentes do Sindicato dos Trabalhadores da USP (SINTUSP) que se apresentam, publicamente, para defender os direitos dos trabalhadores terceirizados, o que está integrado, inclusive, aos objetivos institucionais do sindicato.
Em 2008, sob acusação de ter se envolvido na defesa dos interesses trabalhistas dos terceirizados, extrapolando a sua representação, o sindicalista Claudionor Brandão foi dispensado por justa causa.
Agora, em 2013, após terem participado do ato grevista organizado pelos trabalhadores terceirizados, na luta pelo recebimento de salários e de benefícios em atraso, 06 (seis) diretores do SINTUSP (Neli Maria Paschoarelli Wada, Marcello Ferreira dos Santos, Magno de Carvalho Costa, Domenico Colaccico Neto, Solange Conceição Lopes Veloso e Diana Soubihe de Oliveira) estão sendo submetidos a processos administrativos que visa, igualmente, a puni-los com a pena de justa causa.
Os argumentos jurídicos utilizados na Portaria 795/2013, que instaurou o Processo Administrativo, são tão frágeis que revelam, de forma escancarada, a represália.
Diz, primeiro, que o os diretores do SINTUSP, ao impedirem o acesso de servidores a seus locais de trabalho, cercearam o “direito social ao trabalho” desses servidores. O que dizer, então, do ato da Administração que, irresponsavelmente, submeteu mais de cem trabalhadores à supressão de suas necessidades vitais, sem o efetivo recebimento de salários? Os trabalhadores terceirizados estavam em estado de necessidade e foram eles que organizaram a paralisação e o piquete é prática natural na mobilização coletiva de trabalhadores, ainda mais quando a motivação é a falta de recebimento de salários.
Os diretores do SINTUSP apoiaram a mobilização em ato de solidariedade e este é o sentimento principal de toda a ordem jurídica do Estado Social Democrático de Direito. A solidariedade, aliás, faltou aos servidores que, diante do desespero dos terceirizados, “deram de ombros” para a situação e quiseram furar o ato dos terceirizados para continuarem trabalhando, agindo como se nada estivesse acontecendo. Claro que podem ter agido dessa forma com medo de também sofrerem represálias caso não trabalhassem, mas é exatamente por isso que existe a representação sindical, permitindo que trabalhadores, aos quais se confere proteção especial no emprego, possam efetivar lutas concretas na defesa dos direitos dos trabalhadores. Nesta perspectiva, punir sindicalistas porque agiram na luta por direitos representa um desrespeito à classe trabalhadora como um todo, contrariando toda a história de formação do Direito do Trabalho, que traz como marco fundamental o direito à luta pela efetivação dos direitos conquistados, sendo o salário o bem maior.
Diz ainda a Portaria que a mobilização interferiu no funcionamento dos órgãos da Administração central. Ocorre que já não se podia falar em “normalidade” do funcionamento dos órgãos, vez que os trabalhadores terceirizados, cujo trabalho é essencial para que os tais órgãos funcionem e os servidores atuem, estavam sem receber seus salários há vários dias. Não há normalidade possível quando pessoas ao redor têm seus direitos suprimidos e passam necessidade.
A Portaria dá a entender que a Administração resolveu o problema do atraso dos salários, mas só o fez depois que teve ciência dos fatos e esta ciência se deu, exatamente, por conta da mobilização dos terceirizados, com o apoio dos sindicalistas do SINTUSP.
Por fim, a Portaria sugere que os diretores do SINTUSP agiram fora do âmbito de sua representação sindical e que esta representação caberia a outro sindicato, mas, primeiro, a Universidade não tem legitimidade para interferir nesta questão, desconsiderando, inclusive, disposição expressa do estatuto do SINTUSP, que lhe atribui o objetivo de defender a eficácia dos direitos de todos os trabalhadores que atuam no âmbito da Universidade, incluindo os terceirizados; segundo, ninguém pode ser punido por lutar, em ato de solidariedade, pela efetividade de direitos alheios, sendo que, como dito, o grande mal está, exatamente, em não se importar com o que se passa com o outro, ainda mais quando se fala de uma relação entre trabalhadores.
O fato concreto é que a ordem jurídica foi frontalmente arranhada pela Administração da Universidade ao efetivar a terceirização e não fiscalizar o devido cumprimento dos direitos dos trabalhadores terceirizados.
Para que tal situação não se apresentasse publicamente, possibilitando inclusive que se confiram méritos aos terceirizados, por sua mobilização na luta pela efetivação dos direitos, e ao SINTUSP, pelo exemplar ato de solidariedade, a Administração da USP buscou a saída de acusar tais pessoas de estarem afrontando a ordem jurídica. E fizeram isso por pinçar alguns artigos de lei – sobretudo os preceitos de um Estatuto Disciplinar da época da ditadura militar, o Decreto n. 52.906/72 – para punir os trabalhadores. Assim, agiram da mesma forma como já houvera procedido, em março de 2012, com relação a toda a diretoria da Associação dos Professores da USP (ADUSP), que foram alvo de interpelação judicial, para esclarecerem, judicialmente, declaração feita em manifestação de cunho político.
Além dessas situações, cumpre lembrar que na consecução de suas estratégias políticas a Administração da Universidade tem se valido, nos últimos anos, da tática de judicialização dos atos de seus “adversários”, visualizando de forma atomizada a ordem jurídica, para o fim de gerar medo e inibir a ação política de estudantes, servidores e professores. Tudo sob a retórica de que existem meios institucionalizados para o debate democrático e que o Estado de Direito incide também no âmbito da Universidade.
Foi assim que, após iniciar seu mandato comparando a USP aos “morros do Rio de Janeiro”, o atual Reitor, 1) em maio de 2010, contrariando todo o histórico das relações de trabalho na Universidade, determinou o corte de salário dos servidores em greve; em novembro de 2010, abriu processos administrativos contra alunos que participaram da ocupação da Reitoria em 2007 e contra estudantes que retomaram parte do espaço destinado historicamente às moradias de estudantes, que haviam sido tomados pela Administração
2) no final de 2010/início de 2011, de forma sumária, ou seja, sem qualquer procedimento prévio ou mesmo comunicação aos diretores das respectivas unidades, promoveu a dispensa de 271 (duzentos e setenta e um) servidores aposentados, que tomaram ciência da situação, por acaso, ao acessarem o site da Universidade na área restrita relativa a cada um deles
3) em setembro de 2011, assinou Convênio com a Polícia Militar, também para o fim de criar base de informações e dados sobre as ocorrências na Universidade, instaurando um clima de vigilância e repressão
4) em novembro de 2011, se socorreu da via judicial para a reintegração de posse da Reitoria ocupada, o que se concretizou pela intervenção violenta da Força Tática da Polícia Militar, com 400 homens, dois helicópteros e cachorros, tudo para a retirada do local de 73 (setenta e três) estudantes, que, na sequência, foram conduzidos às Delegacias de Polícia para abertura de inquéritos.
Alguns processos administrativos instaurados contra estudantes da Moradia Retomada correram rapidamente e, em 18 de dezembro de 2011, conclui-se pela eliminação (expulsão) de 8 estudantes, servindo como base o disposto no Decreto n. 52.906, de 1972. No domingo de Carnaval de 2012, nova ação policial na Universidade, determinada por decisão judicial, promoveu a desocupação da Moradia Retomada. E, mais uma vez, estudantes foram conduzidos, manu militari, às Delegacias de Polícia, para instauração de inquéritos. Em março/abril de 2012, outros estudantes e servidores começaram a receber intimações para prestar depoimentos em processos disciplinares.
A percepção parcial do ordenamento jurídico e mesmo da autoridade do Judiciário, servindo tais instituições meramente a propósitos políticos da Administração, revelou-se, claramente, no mais recente episódio, que gerou nova ocupação da Reitoria por parte de estudantes. A estrutura de poder da Universidade quis parecer democrática, mas estabeleceu um jogo de reforma das eleições para Reitor sem integrar a discussão de uma estatuinte, reivindicação antiga de setores da Universidade; sem, antes, democratizar o ente responsável pela votação das propostas; e sem permitir que servidores e estudantes tivessem acesso ao local da deliberação.
A situação, como em todas as anteriores, gerou insatisfação e revolta, motivando a ação política dos estudantes, que provocou a ocupação parcial do prédio da Reitoria. Como nas demais ocasiões, a Administração, rapidamente, valeu-se da via judicial para se furtar ao debate político, escorando-se na defesa da ordem jurídica e pautando-se pela autoridade da decisão judicial.
Ocorre que, ao contrário de outras vezes, não houve a concessão da liminar de reintegração e a Administração simplesmente se viu no “direito” de desrespeitar a autoridade do Judiciário. Promoveram, então, em autêntica tática de guerrilha, atos de represália aos alunos, cortando a luz e água do local – o que nada tem a ver, por certo, com defesa da ordem jurídica. Até porque representa, como dito, uma afronta à decisão judicial já manifestada sobre o caso.
Constata-se, portanto, que o ato da Administração da USP, de propor a ação de reintegração de posse, não decorreu de uma extrema necessidade de resgatar a legalidade. Tratou-se, isto sim, de uma tentativa de judicialização da política, para, com a obtenção da liminar da Justiça, furtar-se ao diálogo para o qual fora chamada pela ação dos estudantes.
E não adianta fugir do debate político, dizendo que “a sociedade está cansada de protesto violento”, tentando criminalizar a ação dos estudantes (e dos trabalhadores). As classes em desvantagem nas estruturas de poder existentes, ao pretender superar essa inferioridade de modo a reinventar a estrutura social, muitas vezes consideram que são necessários atos de mobilização que possibilitem a visualização de suas reivindicações, sendo que somente depois que o conflito se estabelece e se torna público é que as forças se sentem impulsionadas ao diálogo.
O Judiciário, aliás, precisa começar a perceber que muitos segmentos da sociedade, que ostentam parcela do poder institucionalizado, estatal ou econômico, estão se valendo de uma pretensa defesa da legalidade, que lhes vale uma utilização desvirtuada de mecanismos processuais, com o objetivo de fazer calar os seus interlocutores.
Foi essa, ademais, a percepção a que se chegou no processo nº 114.01.2011.011948-2, UNICAMP x DIRETÓRIO CENTRAL DOS ESTUDANTES / DCE – UNICAMP, com trâmite na 1ª. Vara da Fazenda Pública de Campinas). Em caso semelhante ao do que ora se trata, o juiz Mauro Iuji Fukumoto assim se pronunciou: “…de fato, ocupação de prédios públicos é, tradicionalmente, uma forma de protesto político, especialmente para o movimento estudantil, caracterizando-se, pois, como decorrência do direito à livre manifestação do pensamento (artigo 5º, IV, da Constituição Federal) e do direito à reunião e associação (incisos XVI e XVII do artigo 5º). Não se trata propriamente da figura do esbulho do Código Civil, pois não visa à futura aquisição da propriedade, ou à obtenção de qualquer outro proveito econômico. A situação em tela não se amolda à proteção possessória prevista nos artigos 920 e seguintes do Código de Processo Civil, especialmente aos critérios dos artigos 927 e 928 para a concessão da liminar. Inegável, por outro lado, que toda ocupação causa algum transtorno ao serviço público – se assim não fosse, pouca utilidade teria como forma de pressão. Há que se ponderar, dentro de um critério de razoabilidade, a importância do serviço público descontinuado pela ocupação, de um lado, e o resguardo dos direitos constitucionais supra mencionados, de outro.”
O pretexto do respeito à legalidade estrita, especialmente para proteger uma propriedade que nunca esteve de fato ameaçada, não pode impor, portanto, sacrifícios a direitos fundamentais, nos quais se inclui a ação de natureza política. Ainda mais quando o meio utilizado para o resgate da posse seja ofensivo ao direito à vida. Lembre-se que em nome da lei já se praticaram os mais variados males à condição humana.
Na perspectiva da ponderação, critério essencial de aplicação do Direito no modelo em que princípios se integram ao conceito de normas jurídicas, é necessário sempre ver os atos a partir de seu maior conteúdo, avaliando a finalidade, o resultado, a motivação, o efeito lesivo e o sentido ético do comportamento. Uma manifestação política, como a dos estudantes, não pretende, em nenhum momento, como se sabe, afrontar a autoridade constitucional, nem defender qualquer interesse que seja desprestigiado pela ordem jurídica. Trata-se de uma ação política reivindicatória, que visa, exatamente, conferir eficácia concreta ao preceito democrático, ainda que com sacrifício parcial e provisório de outros valores.
Tendo-se concordância, ou não, com o método adotado, ou mesmo rechaçando, no mérito, as demandas dos estudantes, o ato por estes cometido não se insere de modo algum na esfera do ilícito. Trata-se de um ato evidentemente político – como ademais demonstrou ter sido a reação contrária da Reitoria.
O princípio de que ninguém está acima da lei serve para que o poder não se ponha sobre a lei em atos opressores da expressão político-democrática, pois como consignado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, cumpre ao Estado de Direito respeitar o exercício da ação política de natureza reivindicatória, “para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão”.
Lembre-se, ainda, das recentes mobilizações que se realizaram no país, impulsionadas por motivos diversos, que geraram, inclusive, a compreensão de que a ocupação de prédios públicos possui o efeito simbólico de demonstrar, com clareza, o nível de insatisfação da população contra a forma como seus interesses têm sido tratados pelas estruturas do Estado, fazendo recobrar a noção fundamental do Estado Democrático de Direito Social de que o poder pertence ao povo e em nome dele deve ser exercido.
Não se pode esquecer que o mundo vive um importante momento de reformulação das estruturas democráticas, buscando a efetividade dos direitos sociais e políticos. As manifestações populares nos Estados Unidos (em New York, Washington, Chicago e Wisconsin), na Europa (Roma, Berlim, Paris, Bruxelas, Madri, Londres e Atenas), no Canadá, na Austrália, na Nova Zelândia, no Japão e no Chile chegaram ao Brasil em junho deste ano e ainda estão por produzir seus efeitos concretos mais relevantes. E é evidente que a real democratização da maior universidade do país está no centro de todas as demais mudanças necessárias que precisamos conceber.
Sob o aspecto da tática de ocupação em si: recorde-se que em Madison, no Estado de Wisconsin, EUA, a sede do governo, o Capitólio, foi ocupada em março de 2011 para reivindicar a retirada de um projeto de lei que pretendia reduzir impostos, visando a instalação de empresas no Estado, e diminuir o poder dos sindicatos do setor público, de modo a praticamente eliminá-los. Após movimento popular espontâneo, sem deliberação prévia, em assembleia, por óbvio, milhares de pessoas ocuparam o Capitólio durante 17 dias. Do evento, que terminou com uma desocupação negociada, sem violência, adveio um protesto, ainda em março, de mais de 100 mil pessoas em frente ao Capitólio, que “barrou”, temporariamente, a publicação da lei e repercutiu em outras mobilizações em Ohio, Michigan, Indiana e Maine…
Não é possível esquecer, ademais, o que se passou em 2011, quando a renitência da Administração em negociar com os estudantes, tratando-os como delinquentes, marginais ou moleques, provocou, após a violência da desocupação, grandes manifestações e que, em certo sentido, estão ligadas àquelas que se produziram em junho de 2013.
Logo após a desocupação violenta, como ato de concretização da violência da supressão da ação política e da liberdade de expressão, o que se viu foi a realização de uma assembleia com cerca de 3.000 estudantes unidos em torno das causas defendidas pelos alunos da ocupação e que deliberaram pela deflagração de uma greve geral, ainda que sob o requisito de ser aprovada em assembleias em cada unidade.
Além disso, os professores da Universidade, em assembleia, deliberaram apoiar os alunos em suas reivindicações, que desde então estavam pautadas pela preocupação de democratização da USP, expressando-se, ainda, em repúdio aos atos arbitrários de perseguição políticas que vem se perpetrando no local nos últimos anos.
Em nota, a Associação dos Professores da USP pronunciou: “Assim, conclamamos todas as entidades, associações de trabalhadores, organizações de direitos humanos e aqueles que defendem as liberdades democráticas, ameaçadas pela escalada repressiva implantada pela Reitoria, a se manifestarem contra as medidas aqui denunciadas, que tolhem o direito de livre organização e expressão.”
Na própria mídia, as manifestações de mero repúdio cederam lugar a análises mais responsáveis e críticas. Conforme concluíram Mauro Paulino e Alessandro Janoni*, “A manifestação recente de estudantes da USP não é a brincadeira de criança que se tenta desenhar. Não se restringe ao debate sobre legalização das drogas ou estratégias de segurança pública. É um sintoma sério de crise de democracia”, vez que “as instituições tradicionais de representação do modelo hegemônico de democracia se distanciam da população, em especial dos jovens”, sendo que se é assim no “berço da classe média paulistana”, que é a USP, quanto mais o será, e de forma ainda mais preocupante, para o segmento alocado “nas franjas da cidade”.
Ainda em novembro de 2011 foi realizada uma manifestação, organizada por estudantes, professores e servidores, com a presença de 5.000 pessoas, que saíram em passeata pelo centro de São Paulo, culminando com um ato na Faculdade de Direito, no Largo de São Francisco, onde 2.000 estudantes pertencentes a praticamente todas as unidades da Universidade deliberaram pela continuidade da greve.
É preciso compreender, portanto, que quando se depara com processos administrativos como esses, que visam a dispensa por justa causa de dirigentes sindicais em luta contra a precarização do trabalho e pela efetivação de direitos aos trabalhadores terceirizados, não se está tratando de fatos isolados, frutos da preocupação da Administração da Universidade de fazer valer a ordem. Representam, isto sim, a continuidade de um processo histórico de supressão da fala dos estudantes, dos trabalhadores e de boa parte dos professores, que não se integram, de forma minimamente proporcional, às estruturas de poder da instituição.
Vale lembrar, ainda, que nesta escalada autoritária, mais intensa nos últimos anos, encontra-se o ato cometido à sorrelfa pela Administração da Universidade: a constituição de uma Comissão da Verdade de cima para baixo, adotando como sua, e para si. Essa iniciativa já era gestada espontaneamente na comunidade acadêmica, que se organizou e mobilizou 5.000 assinaturas de estudantes, servidores, professores e familiares de perseguidos políticos, visando a instituição de uma Comissão da Verdade que fosse paritária e com membros eleitos, democraticamente, pelos respectivos segmentos.
Em suma, o que estamos assistindo no presente momento é, meramente, o fruto de uma histórica falência democrática instaurada na Universidade. A atual Administração utiliza de todos os mecanismos que dispõe para se passar por democrática e defensora da ordem jurídica, quando, de fato, o que pretende mesmo é aprofundar a lógica autoritária, suprimindo a política e a liberdade de expressão, tudo em nome do mais recente argumento: de que o importante para a USP é melhorar sua posição no ranking da THE (Times Higher Education).
Mas, como se viu das vezes anteriores, as violências institucionais aos direitos sociais e humanos não passarão e a cidadania, a solidariedade e democracia arrumarão os meios para se recriarem. Afinal, como já se disse, “apesar de você, amanhã há de ser outro dia!”
1 comentários:
Só estranho que só se ocupe e reocupe universidades públicas ...
Postar um comentário