Por Maurício Santoro, na revista Fórum:
No dia 9 de agosto, um policial da cidade de Ferguson (Missouri, Estados Unidos) matou a tiros Michael Brown, um rapaz de 18 anos que visitava a avó. Em dois dias ele começaria a universidade. Michael era negro, como cerca de dois terços dos 20 mil moradores de Ferguson, um subúrbio residencial de St. Louis. O agente da lei que o assassinou é branco, como são 53 dos seus 56 colegas. As circunstâncias que levaram ao homicídio de Michael ainda não foram totalmente esclarecidas, mas sabe-se que ele estava desarmado. Sua morte foi o estopim dos maiores protestos contra racismo e violência policial nos Estados Unidos em mais de 20 anos, questionando o modelo de uma segurança pública cada vez mais militarizada. As manifestações estão sendo reprimidas com brutalidade, que atinge tanto os ativistas quanto os jornalistas que as cobrem. Esse debate é fundamental também para o Brasil.
As polícias militares brasileiras são auxiliares das Forças Armadas que, por sua vez, com frequência executam funções policiais, como ocupação de favelas ou patrulhas durante grandes eventos esportivos internacionais. Nos Estados Unidos, as diversas polícias civis e militares não podem se envolver na segurança pública doméstica. Contudo, estas distinções não são tão claras hoje como costumavam ser até a década de 1960.
No contexto da “guerra às drogas” a partir de meados dos anos 1970 e do combate ao terrorismo após os atentados de 11 de setembro de 2001, diversos presidentes criaram instrumentos para transferir equipamento bélico pesado das Forças Armadas às polícias estaduais e municipais ou para ajudá-las a comprá-los. Veteranos da guerra do Afeganistão e do Iraque têm observado que os policiais – mesmo em pequenas cidades – carregam mais armas do que eles mesmos tinham quando lutaram no Oriente Médio.
O símbolo mais expressivo da militarização é a proliferação e o abuso nas atividades das unidades de ações especiais – SWATs. Criadas para responder a situações emergenciais de segurança, como tomadas de reféns, passaram a ser usadas para episódios triviais, como desbaratar jogos de pôquer ou invadir casas de pessoas suspeitas de serem usuários de maconha. Como reza o provérbio britânico: “Para quem tem um martelo grande, todos os problemas começam a se parecer com pregos.” Mesmo quando não são.
A brutalidade da ação militarizada significa com frequência mortos e feridos, além de destruição de propriedade. Em muitos casos essas atividades acontecem baseadas em informações de baixa qualidade ou meros rumores, o que tem resultado em inúmeros processos judiciais das vítimas contra o Estado americano.
As minorias raciais pagam o preço mais alto da militarização. Negros e hispânicos são vítimas de ações violentas, abusos raciais e de uma assustadora política de encarceramento em massa que atinge sobretudo os jovens. Quase metade dos rapazes não-brancos americanos, de até 23 anos, já foi presa.
O racismo está no cerne da desconfiança dessas comunidades da polícia, um sentimento que com frequência explode em distúrbios e protestos de grande dimensão, sempre tendo a violência como estopim. Foi assim em Los Angeles (1992), após o espancamento de um jovem negro, Rodney King, por policiais que o pararam numa blitz de trânsito. As imagens em Ferguson em agosto de 2014 lembram os confrontos no sul dos Estados Unidos durante o movimento pelos direitos civis na década de 1960, contrapondo manifestantes a policiais pesadamente armados – inclusive com blindados e fuzis.
Demandas de reforma social respondidas com brutalidade policial deram o tom tanto das Jornadas de Junho no Brasil, em 2013, quanto nos protestos do verão de 2014 em Ferguson. Lá, como cá, as manifestações dão mais visibilidade a um mal-estar profundo que não será resolvido facilmente e que diz respeito não só à segurança pública, mas às desigualdades e disputas das relações do Estado com a sociedade. É significativa a apatia e dificuldade das autoridades do Missuouri (prefeito de Ferguson, governador, representantes no Congresso) de oferecer respostas às críticas dos cidadãos locais.
Barack Obama é o primeiro negro a ser presidente dos Estados Unidos, mas toda sua carreira política é marcada por extrema cautela para abordar questões raciais, em particular aquelas que envolvem violência. Ele não foi a Ferguson – enviou o ministro da Justiça – e suas críticas ao comportamento da polícia tem sido tênues. Mesmo seus apoiadores acreditam que ele deveria se posicionar de maneira mais decisiva.
* Maurício Santoro é cientista político e assessor de direitos humanos da Anistia Internacional Brasil
No dia 9 de agosto, um policial da cidade de Ferguson (Missouri, Estados Unidos) matou a tiros Michael Brown, um rapaz de 18 anos que visitava a avó. Em dois dias ele começaria a universidade. Michael era negro, como cerca de dois terços dos 20 mil moradores de Ferguson, um subúrbio residencial de St. Louis. O agente da lei que o assassinou é branco, como são 53 dos seus 56 colegas. As circunstâncias que levaram ao homicídio de Michael ainda não foram totalmente esclarecidas, mas sabe-se que ele estava desarmado. Sua morte foi o estopim dos maiores protestos contra racismo e violência policial nos Estados Unidos em mais de 20 anos, questionando o modelo de uma segurança pública cada vez mais militarizada. As manifestações estão sendo reprimidas com brutalidade, que atinge tanto os ativistas quanto os jornalistas que as cobrem. Esse debate é fundamental também para o Brasil.
As polícias militares brasileiras são auxiliares das Forças Armadas que, por sua vez, com frequência executam funções policiais, como ocupação de favelas ou patrulhas durante grandes eventos esportivos internacionais. Nos Estados Unidos, as diversas polícias civis e militares não podem se envolver na segurança pública doméstica. Contudo, estas distinções não são tão claras hoje como costumavam ser até a década de 1960.
No contexto da “guerra às drogas” a partir de meados dos anos 1970 e do combate ao terrorismo após os atentados de 11 de setembro de 2001, diversos presidentes criaram instrumentos para transferir equipamento bélico pesado das Forças Armadas às polícias estaduais e municipais ou para ajudá-las a comprá-los. Veteranos da guerra do Afeganistão e do Iraque têm observado que os policiais – mesmo em pequenas cidades – carregam mais armas do que eles mesmos tinham quando lutaram no Oriente Médio.
O símbolo mais expressivo da militarização é a proliferação e o abuso nas atividades das unidades de ações especiais – SWATs. Criadas para responder a situações emergenciais de segurança, como tomadas de reféns, passaram a ser usadas para episódios triviais, como desbaratar jogos de pôquer ou invadir casas de pessoas suspeitas de serem usuários de maconha. Como reza o provérbio britânico: “Para quem tem um martelo grande, todos os problemas começam a se parecer com pregos.” Mesmo quando não são.
A brutalidade da ação militarizada significa com frequência mortos e feridos, além de destruição de propriedade. Em muitos casos essas atividades acontecem baseadas em informações de baixa qualidade ou meros rumores, o que tem resultado em inúmeros processos judiciais das vítimas contra o Estado americano.
As minorias raciais pagam o preço mais alto da militarização. Negros e hispânicos são vítimas de ações violentas, abusos raciais e de uma assustadora política de encarceramento em massa que atinge sobretudo os jovens. Quase metade dos rapazes não-brancos americanos, de até 23 anos, já foi presa.
O racismo está no cerne da desconfiança dessas comunidades da polícia, um sentimento que com frequência explode em distúrbios e protestos de grande dimensão, sempre tendo a violência como estopim. Foi assim em Los Angeles (1992), após o espancamento de um jovem negro, Rodney King, por policiais que o pararam numa blitz de trânsito. As imagens em Ferguson em agosto de 2014 lembram os confrontos no sul dos Estados Unidos durante o movimento pelos direitos civis na década de 1960, contrapondo manifestantes a policiais pesadamente armados – inclusive com blindados e fuzis.
Demandas de reforma social respondidas com brutalidade policial deram o tom tanto das Jornadas de Junho no Brasil, em 2013, quanto nos protestos do verão de 2014 em Ferguson. Lá, como cá, as manifestações dão mais visibilidade a um mal-estar profundo que não será resolvido facilmente e que diz respeito não só à segurança pública, mas às desigualdades e disputas das relações do Estado com a sociedade. É significativa a apatia e dificuldade das autoridades do Missuouri (prefeito de Ferguson, governador, representantes no Congresso) de oferecer respostas às críticas dos cidadãos locais.
Barack Obama é o primeiro negro a ser presidente dos Estados Unidos, mas toda sua carreira política é marcada por extrema cautela para abordar questões raciais, em particular aquelas que envolvem violência. Ele não foi a Ferguson – enviou o ministro da Justiça – e suas críticas ao comportamento da polícia tem sido tênues. Mesmo seus apoiadores acreditam que ele deveria se posicionar de maneira mais decisiva.
* Maurício Santoro é cientista político e assessor de direitos humanos da Anistia Internacional Brasil
0 comentários:
Postar um comentário