Por Igor Felippe, na revista Caros Amigos:
A vitória da presidenta Dilma Rousseff no segundo turno representou uma barreira para a ofensiva dos setores conservadores nas eleições de 2014. O resultado do primeiro turno, com a reviravolta do tucano Aécio Neves na disputa presidencial e com a votação expressiva de parlamentares com posições reacionárias, deu um susto nas forças progressistas.
Os analistas políticos avaliam que a onda conservadora que varreu a eleição deixou impactos no Congresso Nacional, especialmente na Câmara dos Deputados. A eleição de agentes da repressão, pastores fundamentalistas e ruralistas faz da composição do parlamento que toma posse em fevereiro a mais conservadora desde 1964.
Marcos Feliciano (PSC), com 398 mil votos em São Paulo, foi o quarto deputado mais votado no país. Pastor da Igreja Assembleia de Deus, ganhou notoriedade depois que assumiu a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara e fez declarações contra os homossexuais.
O Rio de Janeiro deu 464 mil votos a Jair Bolsonaro (PP), que ficou em terceiro lugar na lista de mais votados do Brasil. Ex-capitão do Exército, defende até hoje o golpe de 1964 e a ditadura militar. Contribuiu na eleição do filho Flávio para deputado estadual no Rio e estreou em terras paulistas, conquistando uma vaga para o filho Eduardo na Câmara dos Deputados.
O líder da bancada ruralista Luiz Carlos Heinze (PP) recebeu 162 mil votos e ficou em primeiro lugar na eleição para deputado federal no Rio Grande do Sul. Um vídeo do parlamentar com declarações preconceituosas teve grande repercussão nas redes sociais no começo do ano. Antes de defender que os fazendeiros protejam suas propriedades com as próprias mãos, ele diz na gravação que “no mesmo governo, seu Gilberto Carvalho, também ministro da presidenta Dilma, estão aninhados quilombolas, índios, gays, lésbicas, tudo que não presta, e eles têm a direção e o comando do governo”.
A votação expressiva da vanguarda do atraso é apenas a ponta do iceberg. Levantamento do Diap (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar) aponta a eleição de 251 deputados da “bancada do conservadorismo”. A bancada ruralista terá no mínimo 153 deputados; a bancada evangélica, 75, e a bancada da repressão, 23.
No Senado Federal, não houve mudanças essenciais na composição, mas foram eleitos pesos pesados do tucanato, como Álvaro Dias, Tasso Jereissati e José Serra, além da presença de Aécio Neves com seus 50 milhões de votos no 2º turno. O deputado federal Ronaldo Caiado (DEM-GO), fundador do braço mais violento do ruralismo, a UDR (União Democrática Ruralista), foi promovido nas eleições a senador.
Apesar de cada uma dessas bancadas tratar de temas específicos, esses segmentos têm atuado com unidade no conservadorismo, que resgata bandeiras em torno da “tradição, família e propriedade”. Sem contar com a bancada empresarial, que terá 217 deputados, com integrantes que apoiam as demandas mais atrasadas.
“A redução da bancada de direitos humanos, de um lado, o crescimento das bancadas evangélica e de segurança, de outro, sinalizam claramente a onda conservadora, com a eleição de políticos com bandeiras que representam um retrocesso”, avalia Antônio Augusto de Queiroz, analista político e diretor do Diap.
“Houve um avanço no Congresso das forças conservadoras, com o crescimento da bancada fundamentalista religiosa e o crescimento da bancada ligada diretamente à polícia, às empresas de segurança e ao aparato repressivo. Isso é normal de acontecer quando as conjunturas políticas ficam muito polarizadas”, acredita o jornalista e blogueiro Breno Altman.
Para o professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e doutor em História Social pela USP, Gilberto Maringoni, a eleição para a Presidência e para o parlamento não seguiram a mesma métrica. “Quem olhar para os resultados apertados da disputa presidencial dirá que o país mantém um rumo à esquerda. Atenção, não é um rumo de esquerda, mas à esquerda diante da alternativa conservadora reunida em torno de Aécio Neves. Mas quem mirar para o pleito parlamentar verá outra coisa. O sinal pende para a direita”.
Antecedentes
Uma coalizão de partidos de centro, direita e esquerda, liderada pelo PT, governa o Brasil nos últimos 12 anos com uma política neodesenvolvimentista. A manutenção de altas taxas de lucro para o grande capital, a política de valorização do salário mínimo para os trabalhadores formalizados e as políticas sociais para os mais pobres consolidaram um modelo de desenvolvimento que gerou benefícios a diversos segmentos da burguesia e da classe trabalhadora.
Nesse período, o PT se deslocou para o centro e contribuiu para a construção de um bloco político, social e econômico, que ganhou legitimidade com os resultados na economia. A presença de setores progressistas na coalizão abriu brechas para os movimentos de cidadania.
“O campo neodesenvolvimentista é aberto à luta pelo reconhecimento de negros, de mulheres e do movimento LGBT, enquanto o campo neoliberal ortodoxo é mais fechado a essas lutas, principalmente à luta da população negra que ameaça os privilégios da alta classe média nas grandes universidades e no serviço público”, avalia Armando Boito Jr, professor titular de Ciência Política da Unicamp.
A conformação de uma ampla frente sem unidade ideológica, com base especialmente nos frutos do crescimento da economia, manteve por um bom tempo embaixo do tapete o embate em torno de contradições relacionadas à democracia, aos direitos civis e aos direitos humanos.
“O PT no governo não fez nenhum enfrentamento sério contra o conservadorismo, seja na área econômica, seja na política, seja na cultural. Isso é resultado de algo impossível de se obter, que é a mudança sem rupturas em uma sociedade como a nossa. Apesar de a vida ter melhorado em vários aspectos, isso se deu essencialmente como fruto do crescimento econômico entre 2005 e 2010 e não de uma repartição diferente da riqueza entre ricos e pobres”, afirma Maringoni.
Com isso, a panela de pressão da sociedade brasileira ficou por um bom tempo em fogo baixo, com o crescimento da economia e as políticas de distribuição de renda. Com a queda do patamar de crescimento nos últimos anos e o desgaste político dessa coalizão, especialmente do PT, a temperatura aumentou e intensificou as contradições latentes. Os setores conservadores partiram para a ofensiva e passaram a se articular em torno de bandeiras que dividem a base política do governo no Congresso Nacional, buscando brechas para impor suas pautas.
Para Douglas Belchior, liderança do movimento negro e coordenador da ONG Uneafro, as contradições do último período desnudaram o caráter preconceituoso da sociedade brasileira, especialmente depois da implementação de cotas para negros nas universidades federais, administração federal e empresas ligadas à União. “Os parcos avanços sociais promovidos pelos governos petistas e dirigidos aos grupos historicamente estigmatizados foram suficientes para fazer cair a máscara. Eis o rosto da elite brasileira: racista, xenófoba, homofóbicas, intolerantes e antidemocráticas, valores que buscam massificar com sucesso, principalmente a partir dos grandes meios de comunicação”, registra.
No último período, as demandas LGBT também avançaram com a realização das Conferências Nacionais LGBT de 2008 e 2011, a construção do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e dos Direitos Humanos de LGBT, a criação de uma Coordenação Nacional LGBT dentro da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência e do Conselho Nacional LGBT.
As denúncias de violação dos direitos de homossexuais passaram a ser registradas pelo Disque 100 e o nome social de servidores travestis e transexuais em todo o governo federal foi reconhecido. Além disso, o STF (Supremo Tribunal Federal) equiparou a união estável homoafetiva à união estável entre casais heterossexuais e o Conselho Nacional de Justiça determinou a possibilidade do casamento civil entre casais homoafetivos.
“Essas foram as conquistas do movimento LGBT, aliadas à vontade política dos governos federal, estadual e municipal. Isso fez com que os setores fundamentalistas reagissem”, avalia Toni Reis, dirigente da ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais).
Luta ideológica
Nesse quadro, a discussão sobre o endurecimento da legislação penal, a oposição aos direitos LGBT, resistência à implementação de cotas para negros e a destruição dos dispositivos legais que colocam limites para o avanço do agronegócio ganharam força. Nas discussões sobre esses temas, as lideranças do governo usaram a estratégia de colocar panos quentes, para evitar que debates que dividem sua base parlamentar ganhassem corpo.
“A principal deficiência na estratégia de governabilidade do PT foi abrir mão da mobilização social para defender as reformas e abdicar de fazer, de forma permanente e ampla, o enfrentamento, a disputa político-ideológica e a disputa de valores. O PT ficou aprisionado em uma estratégia que tinha como epicentro a institucionalidade. Na outra ponta, evitou ao máximo possível as zonas de atrito com os potenciais aliados para garantir a maioria no Parlamento”, critica Altman.
A resistência política e ideológica à ofensiva conservadora ficou limitada às organizações da sociedade civil que atuam em torno desses temas e à iniciativa individual de parlamentares. Assim, o conservadorismo criou músculos, com unidade de ação, articulação política, base social, apoio econômico e suporte midiático, que garantiu projeção desses debates.
Para o escritor Frei Betto, o governo tem responsabilidade pelo fortalecimento das ideologias de combate ao homossexualismo e endurecimento da legislação penal. “O período de 12 anos do governo PT, que melhorou, e muito, as condições materiais da vida do brasileiro, mas não as espirituais: não conscientizou, não politizou, não fortaleceu a mídia progressista e dos movimentos sociais, quase não dialogou com esses movimentos, exceto quando pressionado”, avalia.
O processo de construção da governabilidade, segundo Queiroz, impôs limites aos partidos mais progressistas, que deixaram de fazer enfrentamentos, deixando o campo livre para o avanço das ideias mais atrasadas. “Faltou política, formação e ação política. Os partidos, inclusive alguns de esquerda, não deram o devido apoio aos candidatos oriundos dos movimento sociais, priorizando o pessoal da máquina, ex-gestores, ou alianças com a base de apoio”, diz o diretor do Diap.
Sem um processo de disputa de princípios e valores, os grandes meios de comunicação passaram a fazer uma dura luta ideológica contra os princípios defendidos pelos setores progressistas, fortalecendo os valores mais conservadores. Qualquer medida que representasse fortalecimento do Estado, intervenção na economia, distribuição de renda, defesa dos direitos humanos, respeito aos direitos civis e democratização da comunicação foi combatida dia e noite na TV, rádio e grandes jornais.
“A mídia desregulada – em especial a TV – faz uma campanha diária de exaltação de valores conservadores, como consumismo, violência como forma de resolver conflitos etc. Isso exacerbou a reação à direita. A ascensão social de largos contingentes da população se fez estritamente dentro das regras do mercado (aumento de renda e de crédito). Isso é positivo, em parte. Não houve, conjuntamente, ampliação de direitos universais. O sentimento exaltado foi o do individualismo e do sucesso pessoal”, acredita Maringoni.
Para Pablo Ortellado, ativista e professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, as raízes do fortalecimento dos setores mais atrasados não podem ser explicadas apenas com elementos conjunturais. “O crescimento do conservadorismo é um fenômeno mais profundo de mudança da natureza do discurso político. Ele radicaliza o discurso, porque a moralidade que o orienta é uma moralidade punitiva e disciplinar. Ela olha para o que considera desvio (o comportamento sexual, o crime, a indolência etc.) e propõe sempre algum tipo de punição dura. É uma forma de olhar para o mundo, uma visão de mundo, cruel. Ele olha também para as políticas sociais deste ponto de vista. Assim, vê um programa como o Bolsa Família como uma condescendência com a falta de trabalho, com a falta de poupança e a falta de empreendedorismo dos pobres, que, nessa visão de mundo, são culpados pela sua própria pobreza e merecem sofrer as consequências, mesmo se forem a fome e a doença”.
De acordo com o professor de história na Universidade Estadual do Oeste do Paraná Lucas Patschiki, que pesquisa o portal de extrema-direita Mídia Sem Máscara e o Instituto Millenium, houve uma ascensão internacional de projetos, pautas e movimentos de cunho chauvinista, xenófobo e mesmo fascista, a partir da crise do capital de 2008. Ele afirma que esses setores são financiados abertamente pelo grande capital, como é o Tea Party dos Estados Unidos, e servem tanto para se colocarem como possibilidade em caso de crises políticas quanto para constituírem uma base social de sustentação à violência estatal, diante do esvaziamento da democracia burguesa.
“No caso brasileiro, a ascensão destes atores foi motivada pela justificativa do ‘anticomunismo preventivo’, mote para a atuação raivosa da mídia hegemônica nos últimos 12 anos. Foi um elemento de pressão para que o PT em suas gestões federais cumprisse os acordos acertados com a classe dominante e o imperialismo. O anticomunismo serviu como base ideológica comum para o espectro fascista da sociedade, um movimento organizador visando o acirramento da luta de classes. E neste sentido, há uma questão que tem que ser colocada, que o PT não cumpriu nenhum combate a esse tipo de discurso”, conclui Patschiki.
Segundo ele, articulistas, colunistas e blogueiros de direita e extrema-direita ganharam projeção nos grandes meios de comunicação e na internet, conseguindo disseminar suas pautas por todo o campo político, buscando a conformação cultural e ética de todo um modo de ser, visando prioritariamente a pequena e nova pequena burguesia, a partir de uma matriz anticomunista.
“Existe uma série de marcos ideológicos que ‘pegaram’, tornaram-se referência para estes diferentes atores: a suposta existência de um movimento revolucionário de cunho gramsciano, corporificado no PT; que existiria a possibilidade da transformação automática de uma gestão presidencial sob a democracia burguesa em um regime de esquerda, o que remetem ao bolivarianismo; que as universidades e o conhecimento teria um filtro ideológico inevitável e que no caso brasileiro seria o de esquerda; que os diferentes movimentos de contestação ou de reconhecimento (caso das lutas pelo casamento LGBTs, por exemplo) possuem o mesmo sentido político comunista”, conclui.
Jornadas de junho
Os protestos de massas que aconteceram em junho de 2013 mostraram que a temperatura tinha esquentado e destamparam a panela de pressão. Assim, tinha chegado ao seu termo o projeto de conciliação de classes, que tomou corpo com a eleição do presidente Lula em 2002. Dessa forma, houve uma intensificação da polarização política, sem um processo anterior de politização em torno de projetos de futuro para o Brasil.
As manifestações que, começaram com a bandeira da redução da tarifa do transporte público, massificaram depois das ações violentas da Polícia Militar em São Paulo. Assim, liberaram as contradições latentes na sociedade. A luta contra o aumento das passagens se misturou com as campanhas contra a corrupção e a PEC 37, pela redução da maioridade penal. A defesa dos serviços públicos e de mais investimentos em educação e saúde dividiu espaço nas ruas com setores que pediam a diminuição da carga tributária.
“Dois elementos se agregaram nas manifestações de junho de 2013. Um elemento tinha uma matriz progressista, por causa do nível inferior da dinâmica de prosperidade dos últimos anos. No entanto, havia uma outra situação de fundo, que é ‘quero menos’, de setores da direita, especialmente da classe média, que ofereceu resistência às políticas distributivas, ao aumento do papel do Estado e à política internacional”, acredita Altman.
Segundo ele, os avanços do governo Lula com as políticas de geração de emprego e renda perderam velocidade no governo Dilma Rousseff. Com isso, cresceu o descontentamento nas grandes cidades, especialmente com os serviços públicos. Por outro lado, setores da direita aproveitaram a situação para colocar as suas pautas, testaram sua musculatura e mostraram força política, especialmente em São Paulo.
Para Maringoni, há uma radicalização da direita porque o movimento social se fortaleceu e mais gente passou a lutar pelos seus direitos, inclusive setores que nunca haviam se mobilizado. “As chamadas jornadas de junho não podem ser examinadas com uma lente única. Como toda explosão social espontânea, ali havia de tudo. Existiam reivindicações progressistas – preço das passagens, serviços públicos etc. – e demandas reacionárias, como essas da antipolítica. Acho um exagero dizer que aquelas mobilizações levaram ao conservadorismo. Elas expressaram um mal-estar social”.
Para Queiroz, as manifestações de junho tinham um programa progressista, mas não levaram em conta as movimentações em torno de temas importantes no Congresso, fortalecendo o discurso do contra “tudo que está aí”, que foi instrumentalizado por setores conservadores e moralistas. “As ruas foram acéfalas e não ouviram os setores que historicamente debatem políticas públicas para a sociedade. Com isso, o resultado foi um Congresso com essa representação. O ambiente de desqualificação dos agentes públicos, do governo e da política leva à alienação, com as pessoas desinformadas confundindo discursos moralistas, populistas e messiânicos com solução para os seus problemas”, critica o diretor do Diap.
Ortellado acredita que o fortalecimento do discurso conservador não tem relação com junho de 2013. Segundo ele, uma expressiva “bancada da bala” foi eleita para a Câmara Municipal de São Paulo em 2012 e a designação do Feliciano para a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados precedeu junho. “É um fenômeno que vem crescendo nos últimos anos e que se nota em vários outros países, seguindo o padrão americano. Ao que tudo indica, ele veio para ficar. E muda completamente os termos do debate político, porque torna ideias antes consideradas excêntricas e extremas como o preconceito, a homofobia e o punitivismo, parte do establishment”.
Eleições 2014
As eleições deste ano se deram em um quadro de crise da política institucional, desgaste das forças progressistas que compõem a frente que sustenta o governo, desaceleração da economia, diminuição do ritmo das conquistas e, especialmente, de uma profunda polarização política marcada pelas jornadas de junho.
“A desvalorização e criminalização da política, a revolta com a má qualidade dos serviços públicos e a preocupação com a violência e com a suposta degradação moral criou um ambiente propício para discursos conservadores, como os das forças eleitas. Além de ambiente favorável, contaram com grandes estruturas e recursos, indispensáveis nas eleições no Brasil”, aponta Queiroz.
“O país vive uma tensão política desde junho do ano passado. As manifestações mobilizaram muita gente e tensionaram com aqueles que se colocam de forma crítica. A disputa eleitoral também provoca essa polarização. Com o avanço das manifestações e a consolidação do PT e seus aliados como alternativa eleitoral, ganhou força o extremo da polarização do outro lado. Assim, o conservadorismo é um subproduto de situações conjunturais de polarizações com o reforço nas franjas radicalizadas de cada lado”, analisa Altman.
Os candidatos conservadores, que enfrentaram os avanços progressistas nos últimos anos, conseguiram se colocar como representantes de um segmento do eleitorado. Já muitos dos articuladores dessas conquistas, com atuação no Congresso ou no governo, que fizeram um trabalho muitas vezes silencioso, não foram reconhecidos.
Com isso, militantes históricos do movimento dos direitos humanos, como a ex-ministra da Secretaria de Mulher, Iriny Lopes (PT/ES), o ex-ministro da Igualdade Racial, Edson Santos (PT/RJ), o ex-secretário de Direitos Humanos do Governo Lula, Nilmário Miranda (PT/MG) e o deputado Domingos Dutra (SD/MA), que enfrentou o pastor Feliciano na Comissão de Direitos Humanos da Câmara, não conseguiram se eleger.
As exceções foram os candidatos do PSOL no Rio de Janeiro e em São Paulo, que fizeram o enfrentamento com os setores conservadores sem pagar o ônus de ser governo, como Jean Wyllys, Chico Alencar e Ivan Valente, que receberam votações expressivas.
O conservadorismo influenciou, inclusive, na disputa presidencial. Pastor Everaldo (PSC) e Levy Fidelix (PRTB) fizeram campanha em defesa da família e atacaram a comunidade LGBT. Esse discurso teve eco em mais de 1,2 milhão de eleitores, que votaram nos dois candidatos.
O auge do preconceito foi no debate na TV Record, quando Fidelix disse que “dois iguais não fazem filho. E digo mais, desculpe, mas aparelho excretor não reproduz. (…) Como é que pode um pai de família, um avô, ficar aqui escorado porque tem medo de perder voto? Prefiro não ter esses votos, mas ser um pai, um avô, que tem vergonha na cara, que instrua seu filho, que instrua seu neto. E vou acabar com essa historinha”.
As principais bandeiras do candidato Aécio Neves, com destaque na propaganda de TV, foram a redução da maioridade penal, a aplicação de penas duras em jovens que cometem crimes e a privatização dos presídios. Marina Silva (PSB) recuou em seu programa no ponto relacionado à agenda LGBT depois dos ataques do pastor Silas Malafaia.
“O ambiente é de profunda hostilidade aos pleitos e reivindicações das mulheres, dos homossexuais, dos adolescentes. O grau de hostilidade chegou a um ponto tal que as pessoas que defendem essas causas e manifestam sua preferência pela pauta da esquerda tem sido agredidas, inclusive fisicamente. Há, realmente, uma radicalização de posições, com as forças de extrema-direita assumindo suas posições de forma aberta”, afirma Queiroz.
Por outro lado, Luciana Genro (PSOL) e Eduardo Jorge (PV) enfrentaram o debate sobre questões morais, com uma linha progressista. Dilma teve uma postura diferente da eleição de 2010 e defendeu os direitos LGBT e rejeitou a redução da maioridade penal.
“O conjunto das forças progressistas defenderam essas bandeiras nestas eleições. O PT não fez isso em 2010. Desta vez, fez. Ao fazer isso, provoca uma reação dos opositores, que de forma mais radicalizada respondem. Assim, esse setor vai desaguar sua votação nos parlamentares conservadores, que expressam a rejeição a essas bandeiras”, destaca Altman.
“O tema da homofobia foi um dos mais debatidos e conseguimos posicionamentos muito bem claros da maioria dos candidatos, inclusive da presidenta Dilma, que agora passa a defender de forma clara a criminalização da homofobia e o casamento civil igualitário”, acredita Toni Reis.
Perspectivas
A composição do Congresso que legislará entre 2015 e 2018 será ainda mais refratária às bandeiras progressistas, políticas de participação popular e às reformas estruturais, em comparação com a atual legislatura. As bancadas do PT e do PCdoB encolheram, perdendo 23 deputados, enquanto a do PSOL cresceu e elegeu cinco deputados.
“As perspectivas de avanços sociais e políticos são pequenas. A grande luta, com esse Congresso conservador, será evitar retrocessos. Os movimentos sociais e sindical terão mais trabalho com a legislatura que toma posse em fevereiro de 2015”, projeta Queiroz.
“O Congresso será extremamente conservador. Como dizia o Barão de Itararé, de onde menos se espera é de onde não sai nada mesmo. Essa composição é expressão do financiamento privado de campanha e da lassidão das leis eleitorais diante do poder econômico. Ao mesmo tempo, temos uma sociedade com diversos problemas a serem resolvidos por um viés progressista. Não tenho bola de cristal, mas as mobilizações sociais tendem a aumentar”, observa Maringoni.
Para o movimento LGBT, as maiores preocupações estão ligadas às ameaças à cidadania com a aprovação do Estatuto da Família, que não reconhece as diversas composições de família, e o projeto da “Cura Gay”. Além disso, a bancada conservadora deve ser opor ao projeto de Identidade de Gênero, do deputado Jean Wyllys (PSOL) e da deputada Erika Kokay (PT), ao Projeto de Lei 7582/2014 da deputada Maria do Rosário (PT), que propõe a criminalização de atos de intolerância contra LGBT e ao projeto da revisão do Código Penal, que trata da criminalização da homofobia (PLS 236/2012), que está parada há oito anos.
“A luta pela criminalização da homofobia é uma bandeira da ABGLT. Vamos nos articular com todos os partidos que têm parlamentares abertos a essa discussão para equipararmos a homofobia ao racismo na revisão do Código Penal e também com projetos de lei. Há possibilidade de aprovação, sim, agora com o apoio da presidenta Dilma. Precisamos também convencer a sociedade de que é civilizatória a aprovação de leis que combatam a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero”, aposta Toni Reis.
O movimento negro tem realizado uma campanha pela aprovação da PEC 51, do senador Lindberg Farias (PT), que prevê a desmilitarização da Polícia Militar, e do Projeto de Lei 4.471/12, do deputado federal Paulo Teixeira (PT), que acaba com os autos de resistência, que autoriza a atuação contra pessoas que resistam à prisão em flagrante ou determinada por ordem judicial. Por outro lado, terá que resistir à ofensiva dos setores conservadores pela redução da maioridade penal.
“Teremos uma batalha difícil, já que o Congresso ganhou reforço de agitadores pró-genocídio da juventude negra e a favor da política de repressão e encarceramento. Há um endosso cada vez maior por parte da sociedade – contaminada e retroalimentada pelos meios de comunicação – à aprovação de “leis mais severas”, que serão ainda mais severas para a parte pobre e negra da população. Na conjuntura que se desenha, deveremos lutar primeiro para não perder o que temos e depois para avançar o que pudermos”, prevê Belchior.
Crise institucional
Nesse quadro, a presidenta Dilma Rousseff enfrentará graves dificuldades para construir uma base parlamentar, dentro dos marcos implementados pelo PT nos últimos 12 anos. O primeiro sinal foi dado 48 horas depois da reeleição de Dilma, quando o plenário da Câmara dos Deputados derrubou o decreto presidencial que criou o Sistema Nacional de Participação Social. O decreto regulamentava instâncias que já existem, como os diversos conselhos e conferências, e criava novas fórum de participação social. Apenas as bancadas do PT, do PCdoB e do PSOL, além de setores do PROS, resistiram à derrubada.
Para Frei Betto, será mais difícil construir uma base com a ampliação do número de partidos com representantes no Congresso. “Dilma terá mais dificuldade para assegurar a governabilidade. O Congresso é, hoje, retalhado em tantos partidecos. Com a redução das bancadas do PT e do PMDB, um monte de retalhos deverá ser costurado para formar uma colcha mais ou menos coesa. E, agora, fazer acordos na base do ‘toma lá, dá cá’ ficou muito mais difícil, devido à delação premiada. Daí a importância da pressão sobre o Congresso, das manifestações populares, pois governo é como feijão, só funciona na panela de pressão.”, destaca.
“As dificuldades de alianças serão muito maiores, particularmente porque o PMDB está dividido ao meio. Haverá uma situação de maior dificuldades de governabilidade. Assim, o PT terá que repensar a estratégia”, avalia Altman. Segundo ele, o núcleo do governo terá que mensurar o preço de fazer um governo de coalizão, discutir a possibilidade fazer um governo de minoria e, inclusive, analisar a construção de um programa de mudanças para implementar com apoio dos movimentos sociais.
A perspectiva de enfrentar o conservadorismo e realizar mais mudanças, que venceu a eleição presidencial, encontrará um obstáculo que é a composição do Congresso Nacional. Os limites impostos pelo atual sistema político, que se sustenta no financiamento empresarial de campanha e no marketing, impedem a construção de uma maioria parlamentar com condições de resistir ao conservadorismo. Assim, se coloca a necessidade de uma reforma política. No entanto, os parlamentares não demonstram interesse em mudar os pilares do modelo vigente.
“A margem para a aprovação de uma reforma política ampla, com o quadro de pulverização partidário, é muito pequena. Isso, entretanto, não deve inibir nem a sociedade nem o chefe do Poder Executivo para pressionar por uma reforma ampla em nosso sistema de representação”, aponta Queiroz.
A contradição criada pelo “beco sem saída” institucional, as expectativas criadas na campanha, as manifestações da presidenta Dilma e o fortalecimento da campanha pela reforma política coloca a realização de uma Assembleia Constituinte Exclusiva e Soberana do Sistema Político na agenda do dia. O plebiscito popular realizado por mais de 400 entidades da sociedade civil, movimentos sociais e centrais sindicais em todo o país na primeira semana de setembro teve 8 milhões de votos, a maioria absoluta pela convocação da Constituinte.
“Sem trabalho de base junto aos setores populares, fortalecimento dos movimentos sociais e de suas mídias, não vejo como reduzir o conservadorismo. É preciso resgatar a utopia de conquistar ‘outros mundos possíveis’. Incutir na juventude o ideal de transformações estruturais e justiça social. E promover a reforma política com uma Constituinte soberana e exclusiva”, defende Frei Betto.
“Vai ser um jogo de forças. Se o governo aceitar a pauta da direita na economia, adotando uma matriz ortodoxa, entrará nessa disputa com vários gols contra. Se, ao contrário, for coerente com os últimos dias da campanha do segundo turno, quando as mobilizações de várias partes do país imprimiram um rumo à esquerda, o governo poderá contar com um setor expressivo da opinião pública para legitimar uma luta por reformas progressistas”, acredita Maringoni.
Segundo Altman, o quadro que se avizinha é de uma profunda crise institucional, com o recrudescimento dos conflitos entre o governo federal e Congresso Nacional, com a divulgação das investigações da Operação Lava Jato, da Polícia Federal, que pode atingir até 100 parlamentares. Com isso, as forças progressistas precisam fazer pressão social sobre o Congresso e aproveitar essa situação para viabilizar a Constituinte.
“Teremos um cenário de crise, que pode ser a porta para as reformas estruturais. Para reformar o sistema político, é necessária uma crise. E a crise está vindo. A Constituinte será o desfecho da mudança de correlação de força. O governo deve aproveitar a vitória dramática na eleição, que conseguiu reunificar o bloco popular e as forças progressistas, para desatar um processo de reforma do sistema político e das instituições do Estado como uma questão primária para viabilizar o segundo mandato da Dilma”, projeta Altman.
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