Por Tarso Genro, no site Sul-21:
Faço uma pequena resenha do jornal “El País”, na edição deste 24 de outubro - quando chego a Madrid para mais um circuito de diálogos de estudos e debates, sobre os mesmos temas que tive a oportunidade de tratar em Lisboa, como faço há muitos anos, praticamente todos os anos. Motivo: evitar que a minha desatualização em assuntos relacionados com a globalização e a democracia (como de certa forma tenho uma “voz pública”), possam desinformar ou mesmo contagiar pela ignorância.
Nunca deixei de aproveitar estes convites - originários de diversas instâncias acadêmicas e partidárias - e confesso que a minha formação política sofreu forte influência deste intercâmbio. Por esta edição do “El País”, pode-se ter uma boa medida de como os mesmos assuntos que transitam na imprensa brasileira tradicional (ou não transitam) são abordados na Espanha.
O professor e constitucionalista Francesc de Carrera escreve um longo artigo, “Somos mais cultos agora?”, sustentando que a progressiva diminuição de matérias de “humanidades”, na educação primária e secundária, é um “ataque frontal ao conhecimento”, reclamando que os espanhóis com menos de 50 anos, não sabem nem situar a época em que escreveram e viveram, Tolstoi, Thomas Mann, Kafka, Proust, Goethe, Voltaire, Stendhal e “tantos outros que pelo visto são prescindíveis”.
A escritora Monica Zgustova num texto lapidar, “Crônica da outra Europa”, mostra como os países pós-comunistas como a Hungria e a República Tcheca são especialmente insolidários com os imigrantes, construindo novos muros que edificam, também, crises de identidade, já que, ao mesmo tempo em que não são mais “escravos” do comunismo, também não integram a primeira classe do transatlântico europeu, que os trata com certa irrelevância.
Duas matérias internacionais relativamente longas, “Rússia negocia com os EUA iniciar uma transição com El Assad” e “A esquerda portuguesa promete derrubar Passos”, tratam de dois assuntos candentes, para a Europa.
O primeiro, o equilíbrio militar, já que Putin está reestabilizando a Síria depois que o EUA e outros estimularam e financiaram uma Guerra Civil naquele país, para derrubar Assad - sem nenhum interesse que não fosse democracia naquela região, é óbvio - mas desta vez não estão sendo felizes como o foram no Iraque.
O segundo assunto - o equilíbrio político da União Europeia - é a “bola de neve” grega, chegando a Portugal: o Presidente Cavaco e Silva (em Portugal o Presidente arbitra quem vai formar o Governo, pela possibilidade de formação de maioria no Parlamento) - o Presidente Cavaco - arriscou delegar a formação do novo Governo para um bloco minoritário de partidos, apoiando-se no direito de colocar à cabeça o partido individualmente mais votado. Crise à vista: é provável que o Parlamento apoie uma moção de censura e em breve teremos novas eleições em Portugal.
Além de vários artigos e matérias sobre Bruxelas, paraísos fiscais - onde os ricos espanhóis depositam as suas bilionárias poupanças -, Polônia, brilhantes e longas entrevistas como a de um dos maiores arquitetos do mundo David Chiperfield (Prêmio “Mies van der Rohe”) e uma entrevista espetacular com Mario Vargas Llosa, um artigo de luxo: um pequeno ensaio de Luis Fernando Moreno Claros, intitulado “O pensador desiludido”, no qual mais uma vez é examinada a controvertida relação de Heidegger com o nazismo, que perguntado sobre se a Alemanha poderia ser governada por um homem com tão escassa formação como Hitler respondeu: “A formação é indiferente, fixem-se só nas suas formosas mãos”.
Como não se pode atribuir a Heidegger nem falta de inteligência nem falta de habilidade, pois foi Reitor da Universidade de Friburgo e acedeu à expulsão de judeus da Universidade que dirigia, a sua resposta merece uma interpretação.
É óbvio que Heidegger não estava apaixonado fisicamente pelas mãos de Hitler, mas se referia à força hipnótica da estética nazista, que despertava nos recalques alemães induzidos na paz humilhante de Versalhes, os instintos mais sombrios e embrutecidos. Não na Alemanha de Goethe, Schiller, Hegel e Thomas Mann, mas na Alemanha entorpecida pela morte da cultura e da inteligência, que vai se expressar em Rosemberg, Martin Bormann e Eichmann.
Heidegger, que comprara a hipnose nazista como o grande amálgama para fundir na cultura alemã o povo comum, como dizia na época, depois revisou suas opiniões. Mas sequer reconheceu que também transigiu com o antissemitismo que varreu da cultura, da política e do território alemão, milhões de pessoas que foram condenadas a morte só por pertencerem a uma raça amaldiçoada pelo fanatismo nacional, juntamente com os ciganos, comunistas, socialistas, democratas de todas as lavras.
O que eu me pergunto é se não está em andamento no mundo hoje, particularmente nos países em que a circulação da opinião é controlada por uma espécie de Comitê Central informal de algumas famílias muito ricas, uma hipnose fascista pós-moderna. Nela, a gente vê as mãos formosas do consumo impossível e comentários barrocos sobre todas as crises, com reflexos como este, sobre os refugiados: “poderiam morrer no mar, antes de chegarem…”.
* Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
Faço uma pequena resenha do jornal “El País”, na edição deste 24 de outubro - quando chego a Madrid para mais um circuito de diálogos de estudos e debates, sobre os mesmos temas que tive a oportunidade de tratar em Lisboa, como faço há muitos anos, praticamente todos os anos. Motivo: evitar que a minha desatualização em assuntos relacionados com a globalização e a democracia (como de certa forma tenho uma “voz pública”), possam desinformar ou mesmo contagiar pela ignorância.
Nunca deixei de aproveitar estes convites - originários de diversas instâncias acadêmicas e partidárias - e confesso que a minha formação política sofreu forte influência deste intercâmbio. Por esta edição do “El País”, pode-se ter uma boa medida de como os mesmos assuntos que transitam na imprensa brasileira tradicional (ou não transitam) são abordados na Espanha.
O professor e constitucionalista Francesc de Carrera escreve um longo artigo, “Somos mais cultos agora?”, sustentando que a progressiva diminuição de matérias de “humanidades”, na educação primária e secundária, é um “ataque frontal ao conhecimento”, reclamando que os espanhóis com menos de 50 anos, não sabem nem situar a época em que escreveram e viveram, Tolstoi, Thomas Mann, Kafka, Proust, Goethe, Voltaire, Stendhal e “tantos outros que pelo visto são prescindíveis”.
A escritora Monica Zgustova num texto lapidar, “Crônica da outra Europa”, mostra como os países pós-comunistas como a Hungria e a República Tcheca são especialmente insolidários com os imigrantes, construindo novos muros que edificam, também, crises de identidade, já que, ao mesmo tempo em que não são mais “escravos” do comunismo, também não integram a primeira classe do transatlântico europeu, que os trata com certa irrelevância.
Duas matérias internacionais relativamente longas, “Rússia negocia com os EUA iniciar uma transição com El Assad” e “A esquerda portuguesa promete derrubar Passos”, tratam de dois assuntos candentes, para a Europa.
O primeiro, o equilíbrio militar, já que Putin está reestabilizando a Síria depois que o EUA e outros estimularam e financiaram uma Guerra Civil naquele país, para derrubar Assad - sem nenhum interesse que não fosse democracia naquela região, é óbvio - mas desta vez não estão sendo felizes como o foram no Iraque.
O segundo assunto - o equilíbrio político da União Europeia - é a “bola de neve” grega, chegando a Portugal: o Presidente Cavaco e Silva (em Portugal o Presidente arbitra quem vai formar o Governo, pela possibilidade de formação de maioria no Parlamento) - o Presidente Cavaco - arriscou delegar a formação do novo Governo para um bloco minoritário de partidos, apoiando-se no direito de colocar à cabeça o partido individualmente mais votado. Crise à vista: é provável que o Parlamento apoie uma moção de censura e em breve teremos novas eleições em Portugal.
Além de vários artigos e matérias sobre Bruxelas, paraísos fiscais - onde os ricos espanhóis depositam as suas bilionárias poupanças -, Polônia, brilhantes e longas entrevistas como a de um dos maiores arquitetos do mundo David Chiperfield (Prêmio “Mies van der Rohe”) e uma entrevista espetacular com Mario Vargas Llosa, um artigo de luxo: um pequeno ensaio de Luis Fernando Moreno Claros, intitulado “O pensador desiludido”, no qual mais uma vez é examinada a controvertida relação de Heidegger com o nazismo, que perguntado sobre se a Alemanha poderia ser governada por um homem com tão escassa formação como Hitler respondeu: “A formação é indiferente, fixem-se só nas suas formosas mãos”.
Como não se pode atribuir a Heidegger nem falta de inteligência nem falta de habilidade, pois foi Reitor da Universidade de Friburgo e acedeu à expulsão de judeus da Universidade que dirigia, a sua resposta merece uma interpretação.
É óbvio que Heidegger não estava apaixonado fisicamente pelas mãos de Hitler, mas se referia à força hipnótica da estética nazista, que despertava nos recalques alemães induzidos na paz humilhante de Versalhes, os instintos mais sombrios e embrutecidos. Não na Alemanha de Goethe, Schiller, Hegel e Thomas Mann, mas na Alemanha entorpecida pela morte da cultura e da inteligência, que vai se expressar em Rosemberg, Martin Bormann e Eichmann.
Heidegger, que comprara a hipnose nazista como o grande amálgama para fundir na cultura alemã o povo comum, como dizia na época, depois revisou suas opiniões. Mas sequer reconheceu que também transigiu com o antissemitismo que varreu da cultura, da política e do território alemão, milhões de pessoas que foram condenadas a morte só por pertencerem a uma raça amaldiçoada pelo fanatismo nacional, juntamente com os ciganos, comunistas, socialistas, democratas de todas as lavras.
O que eu me pergunto é se não está em andamento no mundo hoje, particularmente nos países em que a circulação da opinião é controlada por uma espécie de Comitê Central informal de algumas famílias muito ricas, uma hipnose fascista pós-moderna. Nela, a gente vê as mãos formosas do consumo impossível e comentários barrocos sobre todas as crises, com reflexos como este, sobre os refugiados: “poderiam morrer no mar, antes de chegarem…”.
* Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
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