Foto: Jornalistas Livres |
Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
A decisão de Valter Araújo, membro do Conselho Nacional do Ministério Público, que suspendeu o depoimento de Luiz Inácio Lula da Silva marcado para as 11hs de hoje, no Fórum da Barra Funda, em São Paulo, merece um aplauso demorado. Quem já compreendeu que a Operação Lava Jato constitui uma investigação necessária contra a corrupção, mas que não pode servir de abuso contra os direitos fundamentais nem garantias democráticas, só pode comemorar a medida. Pelo caráter arbitrário e exibicionista, típico da Justiça do Espetáculo, a audiência de Lula seria um espetáculo indecente.
Embora não seja definitiva - o caso será examinado pelo plenário do Conselho Nacional do Ministério Público - a decisão representa um revés importante nas investigações contra Lula, que têm acumulado um impressionante conjunto de contradições, que permitem questionar o caráter politizado da iniciativa de envolver o ex-presidente em acusações sem a devida apresentação de provas mas apenas insinuações e suposições.
Num país onde a covardia institucional para enfrentar a força da opinião construída com auxílio da mídia grande ajuda a entender o número ínfimo de decisões da Lava Jato que tem sido revertidas até aqui em instâncias superiores, mesmo quando há argumentos poderosos para autorizar isso, a decisão de Valter Araújo responde a duas questões importantes. Quem teve o mérito de colocá-las foi o deputado Paulo Teixeira (PT-SP), autor da ação contra o promotor Cassio Conserino, responsável pelo depoimento.
A primeira delas, acusa Teixeira, envolve a usurpação da noção de "promotor natural". Para quem desconhece, trata-se de uma garantia democrática nascida junto com a Revolução Francesa - já constava na Constituição brasileira de 1824, proclamada pelo Imperador Pedro I, veja só - para impedir ações arbitrárias por parte do próprio Judiciário. Sua importância é fácil de entender.
Para assegurar que toda pessoa tenha direito a um julgamento isento, sem interferência de interesses externos de qualquer tipo, nem econômicos, nem políticos, toda denúncia deve ser julgada pelo chamado "juiz natural."
Por esse critério, a escolha de quem apresenta uma denúncia - que cabe ao Ministério Público - e de quem a julga, tarefa que cabe ao juiz, não pode ser uma decisão aleatória, de acordo com a disposição e humores de cada um. A autoridade não deve se apresentar para um caso. Deve ser escolhida, a partir de critérios objetivos, dos quais o primeiro é o local em que um determinado crime ocorreu. Por esse critério, procura-se impedir que, em vez de pretender servir ao conjunto da sociedade, interessado em decisões judiciais tomadas com o maior equilíbrio possível, as decisões do Judiciário possam ser usadas para o ajuste de contas de procuradores e juízes que, eventualmente, possam cultivar interesses particulares - de qualquer natureza - em determinado caso.
Em sua ação, Teixeira lembra, pura e simplesmente, que Cássio Conserino está lotado na 2ª Promotoria, enquanto o caso em que pretende envolver Lula, o triplex midiático do Guarujá, cabe à 1ª Promotoria. Por esse critério, se fosse o caso de abrir uma ação, ela deveria ter sido iniciada pela promotoria correta ("natural"), e não pela errada.
Outro ponto apontado por Teixeira é ainda mais fácil de compreender. Lembrando que a denúncia contra Lula foi antecipada em reportagem da revista Veja, o deputado, que é advogado por formação, acusa Cássio Conserino de fazer “um prejulgamento ao antecipar seu juízo antes mesmo de ouvir o ex-presidente Lula. Com isso ele comprova que agiu sem o equilíbrio requerido pela função de quem investiga. Além disso, o promotor tenta influenciar a sociedade ao vazar documentos, como ele fez, numa atitude política, ilegal, que fere a lei orgânica do Ministério Público”.
Cabe lembrar um outro aspecto na decisão de Valter Araújo. Nem de longe ela representa uma novidade na carreira de Cássio Conserino. Numa judiciário onde as decisões que contrariam procuradores são caso raríssimo, a suspensão da audiência de Lula representa uma segunda decisão com o mesmo teor contra o procurador onde estão envolvidos direitos e garantias fundamentais.
Em 2014, ele foi condenado numa ação civil a pagar uma indenização de R$ 20 000 em função de erros e falhas muito semelhantes àqueles cometidos na investigação contra Lula. Conforme sentença do juiz Joel Birelli Mandelli, em companhia de outro promotor, Cassio Consarino "conspurcou e desrespeitou" uma "investigação ainda em curso". Também não respeitou os "direitos civis dos investigados, expondo suas pessoas, dignidades e reputações, fazendo-o desnecessaria e prematuramente." Como lembra o juiz Mandelli, este comportamento gerou, "como é obvio e sabido, irreparáveis e gravíssimas consequências."
A decisão de ontem contribui para elevar novas dúvidas sobre a investigação que procura envolver Luiz Inácio Lula da Silva numa denúncia de corrupção sem qualquer prova material. O promotor Cassio Consarino tentou acusar Lula de "ocultar patrimônio" antes de ter sido capaz de simplesmente demonstrar que o ex-presidente teria algum patrimônio a ocultar, já que não consegue demonstrar, com um fiapo de prova, que ele seria proprietário verdadeiro de um triplex no edifício Solaris, no Guarujá.
No fim das contas, a mais cabeluda das acusações de Conserino não envolvia o presidente Lula, mas a empresa Murray Holding, proprietária nominal de diversos apartamentos no mesmo edifício, no qual Lula não possui um centímetro quadrado. Poderia ser, até, uma pista promissora, pois se descobriu que a Murray pertence a Mossack e Fonseca, uma indústria de empresas de cartório que tem vínculos com a Agropecuária Veine, que figura como proprietária da mansão da família Marinho em área de proteção ambiental em Paraty.
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