Por Celso Vicenzi, em seu blog:
Em nome do pai, do filho – só faltou o Espírito Santo –, amém!
Não, não estamos em uma igreja, mas no Congresso Nacional, no dia histórico de 17 de abril de 2016. Mais precisamente numa votação em que se deveria decidir se houve ou não crime de responsabilidade fiscal e se seria motivo para o impeachment de uma presidenta eleita com 54 milhões de votos.
Numa votação com transmissão ao vivo para todo o Brasil, brasileiros e brasileiras puderam ver, sem disfarces, que a maioria de seus representantes tem razões muito mais pessoais e particulares do que as causas do bem comum, ou seja, estão ali mais para garantir o próprio futuro e o de seus familiares do que dar solução às complexas questões políticas, econômicas e sociais do país. Apenas dois parlamentares manifestaram-se pelo relatório que deveria ter pautado todo o debate: se houve pedaladas fiscais e se elas caracterizam ou não crime de responsabilidade.
A maioria dos parlamentares preferiu, nesse momento histórico, agradar esposas, mães, pais, sobrinhos, irmãos, noras, amigos, filhos e netos – até aqueles que ainda estavam por nascer. Parte significativa, também, usou da tribuna para enaltecer seus eleitores e as cidades onde angariam votos para vir ao Congresso mostrar que não mereciam estar ali, pela falta de consciência política, despreparo ao votar o tema e boas doses de insuficiência cognitiva e ética para entender a gravidade do momento político que o país atravessa.
Não faltaram os cínicos e hipócritas, que concordavam com o impeachment em nome do combate à corrupção, crime do qual a presidenta não é acusada, ao contrário do presidente da Câmara, Eduardo Cunha e parcela significativa dos que a julgavam.
O que não é cinismo e hipocrisia é autoengano, como o descreveu Eduardo Giannetti no livro que tem por título, justamente, “Autoengano” (Cia. das Letras). Giannetti descreve como somos capazes de “mentir para nós mesmos, o tempo todo, para só levarmos em conta os argumentos que sustentam nossas crenças”. Somente essa certeza pode explicar o festival de ignorância proferido em nome de uma suposta causa legítima.
Certo que só o autoengano ou a descrença na justiça divina explicaria invocar, por tantas vezes (43 parlamentares o fizeram), o nome de Deus em vão, como alerta o segundo dos Dez Mandamentos. O sétimo (“não roubar”) e o oitavo (“não levantar falso testemunho”) certamente caberiam a uma boa parte dos que ali estavam para votar pela aceitação do impeachment.
Michel Temer, que a tudo assistiu com um sorriso nos lábios, no Palácio Jaburu, não escaparia do décimo mandamento: “Não cobiçar as coisas alheias”. Para um político que nas pesquisas não consegue angariar mais do que 2% dos votos, eleger-se presidente, só mesmo à custa de muita traição, que também encontra na Bíblia o seu personagem, Judas. Que, aliás, se arrependeu amargamente. Temer, com o perdão do trocadilho, também tem muito a temer, embora pareça alheio ao destino que a história lhe reserva.
Há deputados que não conseguem sequer ter um pensamento lógico, tamanho o preconceito com que enxergam os brasileiros e brasileiras. Um deles justificou o sim “pelos que exercem a cidadania na Avenida Paulista”, sem levar em consideração que um grupo tão grande ou maior também exercia, naquele momento, a cidadania no Vale do Anhangabaú, na mesma São Paulo. Outro homenageou os brasileiros “de bem” que foram as ruas pedir mudanças, ou seja, quem foi às ruas por razões contrárias de quem pedia a derrubada da presidenta, só pode ser enquadrado na categoria dos brasileiros “malignos”, cidadãos de segunda categoria.
Entre as pérolas, ainda, houve quem visse no atual governo pessoas perversas que desejam “atacar a família brasileira”, incentivar “a troca de sexo” – como diria aquele ministro do STF: Meu Deus! – e “a educação sexual nas escolas. Em síntese, perverter as crianças brasileiras. Mas teve de tudo, voto a favor do café, pelos transportadores, por vítimas de BRs, pelos maçons, pela Igreja Quadrangular, pelos evangélicos, por Jerusalém, pelos colegas médicos, pelos corretores de seguro e, a síntese da incompreensão da função que exercem, “voto como a minha família me orientou a votar”.
E como costuma fazer, com um deboche que não deveria ser tolerado pelos brasileiros e brasileiras – e no entanto continua com enorme popularidade –, o voto abjeto do deputado Jair Bolsonaro, em homenagem à ditadura de 64 e citando nominalmente o coronel Carlos Alberto Ustra, que torturou a presidenta Dilma Roussef. Algo inadmissível num Parlamento e muito mais grave que a cusparada de Jean Wyllys no deputado homofóbico, racista, misógino, defensor da ditadura e da tortura. Mais do que quebra de decoro parlamentar, é crime, menos no Brasil, que nunca puniu os torturadores.
Entre o grotesco e o engraçado, uma realidade que assusta. Nossa representação parlamentar na Câmara – e não é muito diferente no Senado – não oferece nenhuma perspectiva de solução política para o país. E quando a ela se junta uma mídia que manipula, omite e conspira; um Judiciário e um Ministério Público fortemente elitistas e partidarizados; um estado policial que nunca foi democratizado e exibe diariamente a sua truculência contra o povo brasileiro; e empresários dispostos a financiar um golpe de estado para se apropriar ilegitimamente de um governo eleito democraticamente, resta pouca esperança.
Bastaria, aliás, olhar para a história para não aconselhar muito otimismo. Desde 1926, segundo levantamento da revista Superinteressante, entre 25 presidentes, apenas cinco eleitos pelo voto popular concluíram o mandato: Eurico Gaspar Dutra, Juscelino Kubitschek (que enfrentou a Revolta de Aragarças),FHC, Lula (quase derrubado no Mensalão) e Dilma, que corre o risco de entrar também para outro time, o dos presidentes depostos por impeachment ou golpes: Washington Luís, Júlio Prestes, Getúlio Vargas, Carlos Luz, João Goulart e Fernando Collor.
Pero Vaz de Caminha, em sua carta ao rei dom Manuel, disse que nas terras recém-descobertas pelos portugueses havia “muitos bons ares”, “águas infindas” e que, querendo aproveitar, “dar-se-á nela tudo”. A democracia, no entanto, ainda não encontrou aqui bons ares e solo fértil para vicejar.
Em nome do pai, do filho – só faltou o Espírito Santo –, amém!
Não, não estamos em uma igreja, mas no Congresso Nacional, no dia histórico de 17 de abril de 2016. Mais precisamente numa votação em que se deveria decidir se houve ou não crime de responsabilidade fiscal e se seria motivo para o impeachment de uma presidenta eleita com 54 milhões de votos.
Numa votação com transmissão ao vivo para todo o Brasil, brasileiros e brasileiras puderam ver, sem disfarces, que a maioria de seus representantes tem razões muito mais pessoais e particulares do que as causas do bem comum, ou seja, estão ali mais para garantir o próprio futuro e o de seus familiares do que dar solução às complexas questões políticas, econômicas e sociais do país. Apenas dois parlamentares manifestaram-se pelo relatório que deveria ter pautado todo o debate: se houve pedaladas fiscais e se elas caracterizam ou não crime de responsabilidade.
A maioria dos parlamentares preferiu, nesse momento histórico, agradar esposas, mães, pais, sobrinhos, irmãos, noras, amigos, filhos e netos – até aqueles que ainda estavam por nascer. Parte significativa, também, usou da tribuna para enaltecer seus eleitores e as cidades onde angariam votos para vir ao Congresso mostrar que não mereciam estar ali, pela falta de consciência política, despreparo ao votar o tema e boas doses de insuficiência cognitiva e ética para entender a gravidade do momento político que o país atravessa.
Não faltaram os cínicos e hipócritas, que concordavam com o impeachment em nome do combate à corrupção, crime do qual a presidenta não é acusada, ao contrário do presidente da Câmara, Eduardo Cunha e parcela significativa dos que a julgavam.
O que não é cinismo e hipocrisia é autoengano, como o descreveu Eduardo Giannetti no livro que tem por título, justamente, “Autoengano” (Cia. das Letras). Giannetti descreve como somos capazes de “mentir para nós mesmos, o tempo todo, para só levarmos em conta os argumentos que sustentam nossas crenças”. Somente essa certeza pode explicar o festival de ignorância proferido em nome de uma suposta causa legítima.
Certo que só o autoengano ou a descrença na justiça divina explicaria invocar, por tantas vezes (43 parlamentares o fizeram), o nome de Deus em vão, como alerta o segundo dos Dez Mandamentos. O sétimo (“não roubar”) e o oitavo (“não levantar falso testemunho”) certamente caberiam a uma boa parte dos que ali estavam para votar pela aceitação do impeachment.
Michel Temer, que a tudo assistiu com um sorriso nos lábios, no Palácio Jaburu, não escaparia do décimo mandamento: “Não cobiçar as coisas alheias”. Para um político que nas pesquisas não consegue angariar mais do que 2% dos votos, eleger-se presidente, só mesmo à custa de muita traição, que também encontra na Bíblia o seu personagem, Judas. Que, aliás, se arrependeu amargamente. Temer, com o perdão do trocadilho, também tem muito a temer, embora pareça alheio ao destino que a história lhe reserva.
Há deputados que não conseguem sequer ter um pensamento lógico, tamanho o preconceito com que enxergam os brasileiros e brasileiras. Um deles justificou o sim “pelos que exercem a cidadania na Avenida Paulista”, sem levar em consideração que um grupo tão grande ou maior também exercia, naquele momento, a cidadania no Vale do Anhangabaú, na mesma São Paulo. Outro homenageou os brasileiros “de bem” que foram as ruas pedir mudanças, ou seja, quem foi às ruas por razões contrárias de quem pedia a derrubada da presidenta, só pode ser enquadrado na categoria dos brasileiros “malignos”, cidadãos de segunda categoria.
Entre as pérolas, ainda, houve quem visse no atual governo pessoas perversas que desejam “atacar a família brasileira”, incentivar “a troca de sexo” – como diria aquele ministro do STF: Meu Deus! – e “a educação sexual nas escolas. Em síntese, perverter as crianças brasileiras. Mas teve de tudo, voto a favor do café, pelos transportadores, por vítimas de BRs, pelos maçons, pela Igreja Quadrangular, pelos evangélicos, por Jerusalém, pelos colegas médicos, pelos corretores de seguro e, a síntese da incompreensão da função que exercem, “voto como a minha família me orientou a votar”.
E como costuma fazer, com um deboche que não deveria ser tolerado pelos brasileiros e brasileiras – e no entanto continua com enorme popularidade –, o voto abjeto do deputado Jair Bolsonaro, em homenagem à ditadura de 64 e citando nominalmente o coronel Carlos Alberto Ustra, que torturou a presidenta Dilma Roussef. Algo inadmissível num Parlamento e muito mais grave que a cusparada de Jean Wyllys no deputado homofóbico, racista, misógino, defensor da ditadura e da tortura. Mais do que quebra de decoro parlamentar, é crime, menos no Brasil, que nunca puniu os torturadores.
Entre o grotesco e o engraçado, uma realidade que assusta. Nossa representação parlamentar na Câmara – e não é muito diferente no Senado – não oferece nenhuma perspectiva de solução política para o país. E quando a ela se junta uma mídia que manipula, omite e conspira; um Judiciário e um Ministério Público fortemente elitistas e partidarizados; um estado policial que nunca foi democratizado e exibe diariamente a sua truculência contra o povo brasileiro; e empresários dispostos a financiar um golpe de estado para se apropriar ilegitimamente de um governo eleito democraticamente, resta pouca esperança.
Bastaria, aliás, olhar para a história para não aconselhar muito otimismo. Desde 1926, segundo levantamento da revista Superinteressante, entre 25 presidentes, apenas cinco eleitos pelo voto popular concluíram o mandato: Eurico Gaspar Dutra, Juscelino Kubitschek (que enfrentou a Revolta de Aragarças),FHC, Lula (quase derrubado no Mensalão) e Dilma, que corre o risco de entrar também para outro time, o dos presidentes depostos por impeachment ou golpes: Washington Luís, Júlio Prestes, Getúlio Vargas, Carlos Luz, João Goulart e Fernando Collor.
Pero Vaz de Caminha, em sua carta ao rei dom Manuel, disse que nas terras recém-descobertas pelos portugueses havia “muitos bons ares”, “águas infindas” e que, querendo aproveitar, “dar-se-á nela tudo”. A democracia, no entanto, ainda não encontrou aqui bons ares e solo fértil para vicejar.
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