Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Com a lucidez de quem esteve na margem correta de grandes tragédias políticas de seu tempo, seja em 1954, seja em 1964, Tancredo Neves deixou palavras de grande utilidade para as gerações que enfrentam o abismo de julho de 2016, quando os brasileiros se encontram diante de um golpe de Estado que pode sacrificar três décadas de conquistas democráticas e dar início a um retrocesso histórico:
- Nosso progresso político deveu-se mais à força reivindicadora dos homens do povo do que à consciência das elites, afirmou Tancredo. A pátria dos pobres está sempre no futuro e, por isso, em seu instinto, eles se colocam à frente da história.
Quando falta um mês e meio para o Senado aprovar ou rejeitar a queda de uma presidente eleita sem demonstrar que ela cometeu um crime de responsabilidade, com base em argumentos de natureza exclusivamente política, típicos de um regime parlamentarista, é bom perguntar pela "pátria dos pobres" e pela "consciência das elites."
Nos dias de hoje, a "consciência das elites" encontra-se em disputa no Senado, onde se assiste a movimentos permanentes de compra, aluguel e permuta por parte dos aliados do vice presidente em exercício da presidência. Não vamos nos iludir. A mesma instituição que impediu a vitória das Diretas-Já em 1984, pode abrir as portas para a restauração de um regime de exceção. Primeiro, a Câmara do suiço Eduardo Cunha aceitou o pedido de impeachment. Agora, um senado desfigurado, longe de uma história recente menos condenável do que muitos brasileiros já puderam perceber, pode dar o golpe de misericórdia naquilo que até há pouco os cronistas já definiam sem medo de errar como o "mais prolongado período de liberdades de nossa história republicana."
Num espetáculo que deve ser visto como o ensaio público - no teatro, este é o último preparativo antes da estreia para o público pagante - do parlamentarismo que se tentará implantar na primeira brecha, o esforço de sedução incluiu a indicação em cargo de confiança para o proprietário do célebre helicóptero derrubado - e jamais investigado - com 470 quilos de cocaína. Também abriu empregos e verbas para foragidos de alta periculosidade. Ainda permite a transformação de um solene compromisso pela austeridade num terreno úmido e movediço para minhocas e besouros das verbas públicas, situação que obrigou Temer a assegurar que irá defender medidas "impopulares" -- após a decisão final sobre Dilma, é claro.
Neste processo em que jogam sua consciência, os senadores arriscam-se a rebaixar a própria história política. Ainda que isso nem pareça possível, em se tratando de vários personagens de primeira linha, a realidade é que a construção de uma maioria a favor do afastamento definitivo de Dilma cobra seu preço em coerência e vergonha. Será um episódio para filhos cobrarem dos pais. Para netos sentirem constrangimento por causa de avôs e avós.
A maioria dos brasileiros não se deu conta mas, de uns anos para cá o Senado firmou-se como uma instituição de razoável bom senso, dando demonstrações de responsabilidade em vários momentos, firmando-se como um ambiente de resistência à contrarrevolução delirante de Eduardo Cunha e o rolo-compre$$or que vinha da Câmara. Foi no Senado que arquivou-se um projeto que permitia um regime de terceirização ampla de trabalhadores, aprovado pela Câmara. Ali se derrubou a proposta de redução da maioria penal de 18 para 16 anos e se garantiu a sobrevivência do projeto que proíbe contribuição eleitoral de empresas privadas. A maior parte da legislação favorável ao reconhecimento das mulheres nasceu no Senado ou foi garantida por ele. Avanços que ilustram o currículo de todo homem público -- mas incompatíveis com Temer & aliados.
Caso venham abrir passagem para esta agenda, dando passagem a um conservadorismo radical, estranho à história do país e fora do pensamento médio na Casa, os senadores irão romper com o melhor de sua história. Estarão entregues ao mundo dos favores, da chantagem, das vantagens.
Com a desculpa de que é preciso ouvir as ruas, irão trocar o interesse público pelo privado, na vã esperança de que o povo não irá dar-se conta do que se fez. As gerações de homens e mulheres que testemunham um golpe estão submetidos a um exercício de lucidez.
Os golpes nunca duram para sempre e cedo ou tarde humilham seus protagonistas, que terão necessidade de biógrafos amigos para reescrever o que se fez e, em especial, o que não deveria ter sido feito.
O melhor benefício de viver no Brasil de julho de 2016 é que basta ir à rua para encontrar a "pátria dos pobres". Ela faz sua aparição nos diversos atos "Fora Temer" que ocorrem todos os dias e a qualquer hora em algum ponto do país, em ações espontâneas que nenhum partido, nenhuma entidade, teria capacidade para dirigir e organizar. O protesto aparece em ambientes residenciais, onde cartazes e plásticos enfeitam a porta da casa de várias famílias. Nas conversas de amigos, a expressão "Antes de mais nada, fora Temer", faz o lugar de cumprimento obrigatório, o que é uma prova de humor e também de engajamento.
Convidado a participar de um debate com três centenas de alunos e professores do curso de jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto, que funciona no campus de Mariana -- cidade que deu mais de 60% de votos para Dilma em 2014 -- na quinta-feira passada pude entrar em contato direto com uma ponta desse movimento. Seu nome é interessante por si. Seria pura banalidade chamar-se "Resistir é Preciso" e ser comandado por estudantes. Mas, liderado por três professores, com participação de alunos da universidade e moradores da região, chama-se "R(existir) é preciso", um achado da agitação e propaganda, que expressa a visão de que a disputa política em curso em 2016 vai muito além das derrotas e vitórias em conflitos convencionais de qualquer tempo e lugar -- pois envolve a própria existência de uma sociedade, uma época, um país.
Com a lucidez de quem esteve na margem correta de grandes tragédias políticas de seu tempo, seja em 1954, seja em 1964, Tancredo Neves deixou palavras de grande utilidade para as gerações que enfrentam o abismo de julho de 2016, quando os brasileiros se encontram diante de um golpe de Estado que pode sacrificar três décadas de conquistas democráticas e dar início a um retrocesso histórico:
- Nosso progresso político deveu-se mais à força reivindicadora dos homens do povo do que à consciência das elites, afirmou Tancredo. A pátria dos pobres está sempre no futuro e, por isso, em seu instinto, eles se colocam à frente da história.
Quando falta um mês e meio para o Senado aprovar ou rejeitar a queda de uma presidente eleita sem demonstrar que ela cometeu um crime de responsabilidade, com base em argumentos de natureza exclusivamente política, típicos de um regime parlamentarista, é bom perguntar pela "pátria dos pobres" e pela "consciência das elites."
Nos dias de hoje, a "consciência das elites" encontra-se em disputa no Senado, onde se assiste a movimentos permanentes de compra, aluguel e permuta por parte dos aliados do vice presidente em exercício da presidência. Não vamos nos iludir. A mesma instituição que impediu a vitória das Diretas-Já em 1984, pode abrir as portas para a restauração de um regime de exceção. Primeiro, a Câmara do suiço Eduardo Cunha aceitou o pedido de impeachment. Agora, um senado desfigurado, longe de uma história recente menos condenável do que muitos brasileiros já puderam perceber, pode dar o golpe de misericórdia naquilo que até há pouco os cronistas já definiam sem medo de errar como o "mais prolongado período de liberdades de nossa história republicana."
Num espetáculo que deve ser visto como o ensaio público - no teatro, este é o último preparativo antes da estreia para o público pagante - do parlamentarismo que se tentará implantar na primeira brecha, o esforço de sedução incluiu a indicação em cargo de confiança para o proprietário do célebre helicóptero derrubado - e jamais investigado - com 470 quilos de cocaína. Também abriu empregos e verbas para foragidos de alta periculosidade. Ainda permite a transformação de um solene compromisso pela austeridade num terreno úmido e movediço para minhocas e besouros das verbas públicas, situação que obrigou Temer a assegurar que irá defender medidas "impopulares" -- após a decisão final sobre Dilma, é claro.
Neste processo em que jogam sua consciência, os senadores arriscam-se a rebaixar a própria história política. Ainda que isso nem pareça possível, em se tratando de vários personagens de primeira linha, a realidade é que a construção de uma maioria a favor do afastamento definitivo de Dilma cobra seu preço em coerência e vergonha. Será um episódio para filhos cobrarem dos pais. Para netos sentirem constrangimento por causa de avôs e avós.
A maioria dos brasileiros não se deu conta mas, de uns anos para cá o Senado firmou-se como uma instituição de razoável bom senso, dando demonstrações de responsabilidade em vários momentos, firmando-se como um ambiente de resistência à contrarrevolução delirante de Eduardo Cunha e o rolo-compre$$or que vinha da Câmara. Foi no Senado que arquivou-se um projeto que permitia um regime de terceirização ampla de trabalhadores, aprovado pela Câmara. Ali se derrubou a proposta de redução da maioria penal de 18 para 16 anos e se garantiu a sobrevivência do projeto que proíbe contribuição eleitoral de empresas privadas. A maior parte da legislação favorável ao reconhecimento das mulheres nasceu no Senado ou foi garantida por ele. Avanços que ilustram o currículo de todo homem público -- mas incompatíveis com Temer & aliados.
Caso venham abrir passagem para esta agenda, dando passagem a um conservadorismo radical, estranho à história do país e fora do pensamento médio na Casa, os senadores irão romper com o melhor de sua história. Estarão entregues ao mundo dos favores, da chantagem, das vantagens.
Com a desculpa de que é preciso ouvir as ruas, irão trocar o interesse público pelo privado, na vã esperança de que o povo não irá dar-se conta do que se fez. As gerações de homens e mulheres que testemunham um golpe estão submetidos a um exercício de lucidez.
Os golpes nunca duram para sempre e cedo ou tarde humilham seus protagonistas, que terão necessidade de biógrafos amigos para reescrever o que se fez e, em especial, o que não deveria ter sido feito.
O melhor benefício de viver no Brasil de julho de 2016 é que basta ir à rua para encontrar a "pátria dos pobres". Ela faz sua aparição nos diversos atos "Fora Temer" que ocorrem todos os dias e a qualquer hora em algum ponto do país, em ações espontâneas que nenhum partido, nenhuma entidade, teria capacidade para dirigir e organizar. O protesto aparece em ambientes residenciais, onde cartazes e plásticos enfeitam a porta da casa de várias famílias. Nas conversas de amigos, a expressão "Antes de mais nada, fora Temer", faz o lugar de cumprimento obrigatório, o que é uma prova de humor e também de engajamento.
Convidado a participar de um debate com três centenas de alunos e professores do curso de jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto, que funciona no campus de Mariana -- cidade que deu mais de 60% de votos para Dilma em 2014 -- na quinta-feira passada pude entrar em contato direto com uma ponta desse movimento. Seu nome é interessante por si. Seria pura banalidade chamar-se "Resistir é Preciso" e ser comandado por estudantes. Mas, liderado por três professores, com participação de alunos da universidade e moradores da região, chama-se "R(existir) é preciso", um achado da agitação e propaganda, que expressa a visão de que a disputa política em curso em 2016 vai muito além das derrotas e vitórias em conflitos convencionais de qualquer tempo e lugar -- pois envolve a própria existência de uma sociedade, uma época, um país.
Num local onde circulam repórteres do Mídia Ninja, do Jornalistas Livres e da rádio Plural, criada ali mesmo, só na quinta-feira passada as atividades do "R(existir) é Preciso incluíram um conjunto de intervenções no Instituto de Ciências Aplicadas na UFOP: três performances artísticas em três locais diferentes, inclusive no bandejão; a exibição do documentário "O Dia que durou 21 anos," sobre o golpe de 64, além de uma série de sessões musicais. Descrevendo uma ebulição muito maior do que se imagina fora dali, os professores Hila Rodrigues, Claudio Coração e Rafael Drummond, explicam que "o grupo pretende trabalhar eventos que nos ajudem a pensar não só as ações políticas que nos afetam, mas também os discursos midiáticos construídos a partir dessas ações. A ideia é que essa discussão ultrapasse os muros da universidade, abrindo espaço para que todos os cidadãos possam se manifestar, debater, trocar impressões e compartilhar experiências. "
Foi a "pátria dos pobres" que levantou a faixa "Fora Temer" nas arquibancadas corintianas, no último domingo e explica explica por que o vice presidente em exercício da presidência ostenta os piores índices de aprovação para quem ocupa o Planalto há tão pouco tempo. Num debate típico de um país que perdeu o medo de chamar cada coisa por seu próprio nome, a "pátria dos pobres" tornou-se a guardiã da memória da nação. Ganhou o crucial debate político em torno de palavras, impedindo toda tentativa de mascarar um golpe de Estado com palavras enganosas. Por isso ela deve ser calada, como se fez com o jornalismo independente da EBC, como se faz com as tentativas de amordaçar economicamente as redes sociais, num esforço atualizado de censura que no passado da ditadura se exercia pela força bruta. Os métodos podem mudar mas o saldo final -- um pensamento controlado e dirigido -- é o mesmo.
A "pátria dos pobres" também impediu a entrega de um título de doutor honoris causa que seria concedido pela Universidade Federal da Paraíba ao ministro Ricardo Lewandowski, presidente do Supremo Tribunal Federal, num protesto que não tem um alvo individual, mas expressa o inconformismo e a indignação de uma parcela respeitável dos meios jurídicos do país.
Ao deixar de assumir devidas responsabilidades jurídicas, na mesma década em que exibiu um comportamento ativista em várias questões de comportamento, gênero e raça, a manifestação mostra que STF perdeu a posição de referência política para o país, numa hora especialmente grave.
Numa repetição frequente da tragédia da ditadura dentro da ditadura que foi o AI-5, várias vozes da "consciência das elites" já mandaram "às favas os escrúpulos de consciência", último passo para dar o empurrão final em instituições colocadas em "frangalhos" por um trabalho permanente de sabotagem contra a soberania popular, contra o voto, contra o exercício da política como palco supremo da civilização.
Este é o debate que pode definir o futuro dos brasileiros e suas famílias.
Foi a "pátria dos pobres" que levantou a faixa "Fora Temer" nas arquibancadas corintianas, no último domingo e explica explica por que o vice presidente em exercício da presidência ostenta os piores índices de aprovação para quem ocupa o Planalto há tão pouco tempo. Num debate típico de um país que perdeu o medo de chamar cada coisa por seu próprio nome, a "pátria dos pobres" tornou-se a guardiã da memória da nação. Ganhou o crucial debate político em torno de palavras, impedindo toda tentativa de mascarar um golpe de Estado com palavras enganosas. Por isso ela deve ser calada, como se fez com o jornalismo independente da EBC, como se faz com as tentativas de amordaçar economicamente as redes sociais, num esforço atualizado de censura que no passado da ditadura se exercia pela força bruta. Os métodos podem mudar mas o saldo final -- um pensamento controlado e dirigido -- é o mesmo.
A "pátria dos pobres" também impediu a entrega de um título de doutor honoris causa que seria concedido pela Universidade Federal da Paraíba ao ministro Ricardo Lewandowski, presidente do Supremo Tribunal Federal, num protesto que não tem um alvo individual, mas expressa o inconformismo e a indignação de uma parcela respeitável dos meios jurídicos do país.
Ao deixar de assumir devidas responsabilidades jurídicas, na mesma década em que exibiu um comportamento ativista em várias questões de comportamento, gênero e raça, a manifestação mostra que STF perdeu a posição de referência política para o país, numa hora especialmente grave.
Numa repetição frequente da tragédia da ditadura dentro da ditadura que foi o AI-5, várias vozes da "consciência das elites" já mandaram "às favas os escrúpulos de consciência", último passo para dar o empurrão final em instituições colocadas em "frangalhos" por um trabalho permanente de sabotagem contra a soberania popular, contra o voto, contra o exercício da política como palco supremo da civilização.
Este é o debate que pode definir o futuro dos brasileiros e suas famílias.
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