Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
O primeiro dia de audiências do julgamento de Dilma Rousseff no Senado Federal encerrou-se com uma péssima notícia para a bancada de aliados de Michel Temer.
Era pouco mais da meia noite quando José Eduardo Cardozo, advogado de Dilma, colocou uma questão crucial por trás da atuação do Tribunal de Contas da União na articulação para afastar a presidente.
Na visão convencional que animou o circo que produziu o impeachment, conta-se uma historinha conhecida. O governo Dilma gastava mais do que podia, fazia empréstimos não autorizados que não conseguia honrar na hora certa e acabou colocando o Brasil numa crise econômica grave, que produziu a recessão de hoje e provocou até a perda do grau de investimento junto a agências internacionais.
A intervenção de Cardozo lembrou que, ao contrário do que se aprende nos cursos de matemática, às vezes uma mudança na ordem dos fatores pode alterar o produto. Depois de recordar que as denúncias de "pedaladas fiscais" envolviam uma prática comum a todos os governos brasileiros desde a invenção da Lei de Responsabilidade Fiscal, assinalou que a grande diferença, aqui, residiu na atitude do TCU diante do ciclismo contábil. Antes, a tolerância era absoluta. Diante do governo Dilma, a reação foi de denúncia permanente, gerando uma instabilidade óbvia e previsível nos delicados equilíbrios financeiros. Para Cardozo, não foram os empréstimos -- banais, frequentes -- que levaram a economia uma situação de crise aberta. Foi o próprio TCU, com uma atuação seletiva e barulhenta, que acendeu diversas labaredas da crise, gerando um ambiente de desconfiança e perda de credibilidade das autoridades econômicas. Não foi a economia que gerou a crise política. Mas o contrário.
É um ponto de vista conveniente para Dilma, vamos admitir. Mas faz mais sentido do que parece.
Cardozo declarou-se "estarrecido" com a revelação, feita na audiência, de que o consultor do TCU, Antonio Carlos D Ávila, atuou em parceria com o procurador Julio Marcelo Oliveira na produção da acusação contra a presidente. Lembrou que o caso poderia ser comparado a um juiz que, antes de publicar uma sentença, decidisse submeter o texto a uma das partes. Respondendo a Cardozo, o consultor do TCU negou qualquer irregularidade.
Mais cedo, Cardozo investiu sobre Julio Marcelo. Acusou: “Não se pode mudar os fatos, mas se pode adequar uma tese para condenar”, disse. “Tenho a convicção de que vossa senhoria mudou seu entendimento porque tem um desejo profundo de condenação da presidenta da República, e não podia mudar os fatos”, completou Cardozo, dirigindo-se a uma autoridade que, convidada para depor como testemunha, foi ouvida como informante, pois Ricardo Lewandovski acolheu denuncia de parcialidade.
Não custa lembrar que a denúncia contra Dilma nasceu no TCU, um tribunal que não é formado por magistrados de carreira, mas por políticos aposentados. Seus membros até usam togas negras -- mas assinam sentenças sem valor jurídico, pois representam a pura opinião de um órgão de assessoria do Congresso.
Num ambiente onde o debate político sempre falou mais alto do que as discussões envolvendo números da contabilidade do Estado brasileiro, a simples leitura dos jornais mostra que denúncias de corrupção ocorrem com frequência surpreendente para uma instituição que usa o nome de Tribunal.
Em outubro do ano passado, depois que seu voto foi aprovado no plenário do TCU, fornecendo a munição básica contra Dilma, o relator Augusto Nardes retomou velhas acusações dos adversários de governos do PT. "É necessário dar um basta na política de gastar sem saber o que vai acontecer no futuro," disse. Também deixou claro que a decisão do tribunal não deveria limitar-se a um caso localizado. "Temos que fazer isso em todo o Brasil."
Antes do julgamento, Nardes, um político que nunca escondeu seu orgulho por ter sido filiado à Arena, o partido da ditadura militar, já antecipava a própria sentença. Fez um pronunciamento que confirmava a vontade -- apontada na noite de ontem por José Eduardo Cardozo -- de reservar a Dilma um tratamento que nunca fora dirigido a seus antecessores. Sua parcialidade provocou um movimento que pedia seu afastamento da relatoria, o que acabou não ocorrendo. Na entrevista, Nardes disse:
-- As contas presidenciais sempre foram aprovadas com ressalvas pelo TCU nos últimos 80 anos e ninguém tinha coragem de mudar esse quadro. Nós aqui não somos a Grécia, que tem a Europa para salvá-la. Nós mesmos temos que resolver os problemas do Brasil.
Como tantos personagens que surgiram em etapas importantes mas diferenciadas do impeachment, o autor do primeiro relatório oficial contra Dilma tinha suas próprias contas a prestar a Justiça. Acusado de participar de um esquema de propinas na Receita Federal, pelo qual estaria implicado num suborno de R$ 2,5 milhões pago pelo grupo de comunicação RBS, ele fora apanhado na Operação Zelotes quando assinou o relatório. Pouco depois da sentença contra Dilma no TCU, seu caso deixou a Vara de Primeira Instância, em Brasília e foi encaminhado ao Supremo Tribunal Federal, onde um ministro tem prerrogativa de foro. Escrevi aqui neste espaço, na época: "Enquanto o STF não levar o caso adiante, e não for possível avaliar o grau de veracidade das denúncias, o segredo ajudará a preservar a credibilidade de um personagem essencial da fase atual da guerra política pelo mandato da presidente."
Dez meses depois, após reformulações e atualizações sofridas antes de ser aceita por Eduardo Cunha e encaminhado a votação na Câmara e no Senado, a contribuição de Augusto Nardes está saindo do forno para ser votada, num processo destinado a cassar uma presidente eleita por 54,5 milhões de votos.
Por motivos compreensíveis, seu papel no laboratório que levou ao impeachment tem sido minimizado. Não é difícil entender por que.
O primeiro dia de audiências do julgamento de Dilma Rousseff no Senado Federal encerrou-se com uma péssima notícia para a bancada de aliados de Michel Temer.
Era pouco mais da meia noite quando José Eduardo Cardozo, advogado de Dilma, colocou uma questão crucial por trás da atuação do Tribunal de Contas da União na articulação para afastar a presidente.
Na visão convencional que animou o circo que produziu o impeachment, conta-se uma historinha conhecida. O governo Dilma gastava mais do que podia, fazia empréstimos não autorizados que não conseguia honrar na hora certa e acabou colocando o Brasil numa crise econômica grave, que produziu a recessão de hoje e provocou até a perda do grau de investimento junto a agências internacionais.
A intervenção de Cardozo lembrou que, ao contrário do que se aprende nos cursos de matemática, às vezes uma mudança na ordem dos fatores pode alterar o produto. Depois de recordar que as denúncias de "pedaladas fiscais" envolviam uma prática comum a todos os governos brasileiros desde a invenção da Lei de Responsabilidade Fiscal, assinalou que a grande diferença, aqui, residiu na atitude do TCU diante do ciclismo contábil. Antes, a tolerância era absoluta. Diante do governo Dilma, a reação foi de denúncia permanente, gerando uma instabilidade óbvia e previsível nos delicados equilíbrios financeiros. Para Cardozo, não foram os empréstimos -- banais, frequentes -- que levaram a economia uma situação de crise aberta. Foi o próprio TCU, com uma atuação seletiva e barulhenta, que acendeu diversas labaredas da crise, gerando um ambiente de desconfiança e perda de credibilidade das autoridades econômicas. Não foi a economia que gerou a crise política. Mas o contrário.
É um ponto de vista conveniente para Dilma, vamos admitir. Mas faz mais sentido do que parece.
Cardozo declarou-se "estarrecido" com a revelação, feita na audiência, de que o consultor do TCU, Antonio Carlos D Ávila, atuou em parceria com o procurador Julio Marcelo Oliveira na produção da acusação contra a presidente. Lembrou que o caso poderia ser comparado a um juiz que, antes de publicar uma sentença, decidisse submeter o texto a uma das partes. Respondendo a Cardozo, o consultor do TCU negou qualquer irregularidade.
Mais cedo, Cardozo investiu sobre Julio Marcelo. Acusou: “Não se pode mudar os fatos, mas se pode adequar uma tese para condenar”, disse. “Tenho a convicção de que vossa senhoria mudou seu entendimento porque tem um desejo profundo de condenação da presidenta da República, e não podia mudar os fatos”, completou Cardozo, dirigindo-se a uma autoridade que, convidada para depor como testemunha, foi ouvida como informante, pois Ricardo Lewandovski acolheu denuncia de parcialidade.
Não custa lembrar que a denúncia contra Dilma nasceu no TCU, um tribunal que não é formado por magistrados de carreira, mas por políticos aposentados. Seus membros até usam togas negras -- mas assinam sentenças sem valor jurídico, pois representam a pura opinião de um órgão de assessoria do Congresso.
Num ambiente onde o debate político sempre falou mais alto do que as discussões envolvendo números da contabilidade do Estado brasileiro, a simples leitura dos jornais mostra que denúncias de corrupção ocorrem com frequência surpreendente para uma instituição que usa o nome de Tribunal.
Em outubro do ano passado, depois que seu voto foi aprovado no plenário do TCU, fornecendo a munição básica contra Dilma, o relator Augusto Nardes retomou velhas acusações dos adversários de governos do PT. "É necessário dar um basta na política de gastar sem saber o que vai acontecer no futuro," disse. Também deixou claro que a decisão do tribunal não deveria limitar-se a um caso localizado. "Temos que fazer isso em todo o Brasil."
Antes do julgamento, Nardes, um político que nunca escondeu seu orgulho por ter sido filiado à Arena, o partido da ditadura militar, já antecipava a própria sentença. Fez um pronunciamento que confirmava a vontade -- apontada na noite de ontem por José Eduardo Cardozo -- de reservar a Dilma um tratamento que nunca fora dirigido a seus antecessores. Sua parcialidade provocou um movimento que pedia seu afastamento da relatoria, o que acabou não ocorrendo. Na entrevista, Nardes disse:
-- As contas presidenciais sempre foram aprovadas com ressalvas pelo TCU nos últimos 80 anos e ninguém tinha coragem de mudar esse quadro. Nós aqui não somos a Grécia, que tem a Europa para salvá-la. Nós mesmos temos que resolver os problemas do Brasil.
Como tantos personagens que surgiram em etapas importantes mas diferenciadas do impeachment, o autor do primeiro relatório oficial contra Dilma tinha suas próprias contas a prestar a Justiça. Acusado de participar de um esquema de propinas na Receita Federal, pelo qual estaria implicado num suborno de R$ 2,5 milhões pago pelo grupo de comunicação RBS, ele fora apanhado na Operação Zelotes quando assinou o relatório. Pouco depois da sentença contra Dilma no TCU, seu caso deixou a Vara de Primeira Instância, em Brasília e foi encaminhado ao Supremo Tribunal Federal, onde um ministro tem prerrogativa de foro. Escrevi aqui neste espaço, na época: "Enquanto o STF não levar o caso adiante, e não for possível avaliar o grau de veracidade das denúncias, o segredo ajudará a preservar a credibilidade de um personagem essencial da fase atual da guerra política pelo mandato da presidente."
Dez meses depois, após reformulações e atualizações sofridas antes de ser aceita por Eduardo Cunha e encaminhado a votação na Câmara e no Senado, a contribuição de Augusto Nardes está saindo do forno para ser votada, num processo destinado a cassar uma presidente eleita por 54,5 milhões de votos.
Por motivos compreensíveis, seu papel no laboratório que levou ao impeachment tem sido minimizado. Não é difícil entender por que.
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