Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Dias depois de o juiz Sérgio Moro ter dito no Congresso que provas ilícitas poderiam ser válidas numa investigação caso tivessem sido obtidas "de boa fé", o país tem uma boa oportunidade de passar a limpo a aplicação prática de um conceito tão subjetivo.
Autorizada ontem pelo ministro Teori Zavaski, do STF, a investigação sobre a denuncia de que Lula e Dilma agiram em conjunto para obstruir uma investigação da Lava Jato tem como base uma questão de fé.
Se é boa fé, má fé, ou zero fé, não é difícil responder.
Como os brasileiros devem se recordar, a base dessa investigação reside numa prova ilícita - um diálogo gravado em março entre a presidente da República e o próprio Lula, quando os dois acertavam detalhes burocráticos para a posse do ex-presidente como ministro chefe da Casa Civil. A Polícia Federal não tinha autorização para gravar a presidente da República, o que só poderia ocorrer com autorização do Supremo. Mesmo que o grampo tivesse sido autorizado em algum momento da investigação, aquela a gravação Lula x Dilma não poderia ter sido feita - pois o diálogo ocorreu quando a autorização já havia expirado. Pior. Em nenhum dos casos, o teor dos diálogos poderia ter sido divulgado, obviamente. Comprovada sua ilegalidade, o grampo deveria ter sido destruído, manda o regulamento da Polícia Federal.
Há muitos tipos de fé envolvidos nesta questão, não é mesmo?
Uma pessoa de boa fé dificilmente deixaria de admitir que, ao atrair para seu governo o mais popular presidente da história republicana, responsável inclusive por suas duas eleições, Dilma nada mais pretendia do que reforçar a equipe que, nas semanas seguintes, iria enfrentar a prova decisiva de sua sobrevivência: a caça de votos no processo do impeachment.
Você pode pensar o que quiser de Lula. Mas apenas uma pessoa de má fé não consegue enxergar suas qualidades extraordinárias para desempenhar o papel. Na dúvida, consulte a maioria dos brasileiros. Ou Abílio Diniz, Henrique Meirelles, Barack Obama. Pergunte a sindicalistas que, naqueles dias, foram à porta das fábricas para saber o que ela achava da presença de Lula no governo.
Cabe reconhecer, ainda, um ponto essencial. A leitura do diálogo nunca foi uma demonstração de conluio. Ao contrário do que se sugeriu, em reportagens que copiavam o estilo de radionovelas, ao assinar o termo de posse Lula não se tornaria automaticamente ministro de Estado. O documento só teria valor oficial depois que fosse levado de volta para Dilma e assinado por ela, a presidente da República, o que só ocorreu na cerimônia de posse no Planalto, no dia seguinte, em presença do próprio Lula.
A melhor prova de que Dilma agiu de boa fé, neste caso, foi produzida nas semanas seguintes. Mesmo depois que a posse na Casa Civil foi impedida, num ato (de boa fé?) do ministro Gilmar Mendes, do STF, Lula continuou em atividade permanente para tentar ampliar a base de apoio da presidente. Fez exatamente aquilo que se dizia que não iria fazer, como demonstram as dezenas de reuniões e encontros realizados na época nos aposentos de um hotel em Brasília, descritas em tom de atividade suspeita pelos jornalistas que tentavam montar um cirquinho para o golpe. Mesmo produzidas em clima de má fé e denúncia, as reportagens sobre esses encontros são a prova de que Lula fazia o que sempre disse que iria fazer -- como há de concordar toda pessoa de boa fé.
Sérgio Moro age como um magistrado convencido de que ele só foi convidado para o ministério porque queria salvar a própria pele, ameaçada por uma denúncia - que ainda não fora feita - do senador Delcídio Amaral - que acabara de fazer sua própria delação premiada - que fatalmente o levaria para a prisão, recurso fácil no Brasil da Lava Jato e das preventivas ao gosto (ou da fé) do freguês na maioria das cadeias brasileiras.
Antes mesmo de ter reunido fatos e provas do caso, Moro já agia como se estivesse absolutamente convencido da culpa de um cidadão que nem réu havia se tornado.
Na prática, o que se fez foi impedir que Lula tivesse acesso ao chamado "foro de função," regra jurídica que permite a presidentes, ministros de Estado, senadores e deputados federais que sejam julgados pelo STF. Você pode concordar ou discordar dessa regra. Considerando que se trata de uma previsão constitucional, convém que seja cumprida. A carta maior não pode ser flexibilizada conforme a fé - religiosa? política? boa? má? - de cada momento.
Desde então Lula passou a ser tratado como um criminoso a espera de uma prova, situação que só é aceitável num universo político-jurídico que ignora a presunção da inocência, princípio destinado a impedir uma selvageria bem descrita por Eros Grau, ministro do STF entre 2004 e 2010. Sem a presunção de inocência, argumentou o ministro, "é melhor sairmos com um porrete na mão, a arrebentar a espinha dorsal de quem nos contrariar."
Numa decisão correta, o ministro Teori Zavaski terminou por anular as gravações que poderiam sustentar a denuncia. Mas Teori não determinou que, sem provas, o caso fosse arquivado. Perguntou ao PGR Rodrigo Janot se havia motivo para prosseguir, mesmo assim. Foi uma pergunta na fé categoria discutível, digamos assim.
Isso porque o PGR deixou de ser um personagem isento no caso depois que também foi atingido pelos grampos divulgados por Sérgio Moro, num exemplo clássico de que palavras ditas em privado tem um significado determinado, que pode alterar-se inteiramente quando se tornam públicas. Num diálogo com o advogado Sigmaringa Seixas, Lula se queixa do PGR. Em tom de sarcasmo, lembra que naqueles dias Janot "tinha arquivado a quarta denúncia contra Aécio e aceito a primeira feita por um bandido contra mim."
Na mesma conversa, Lula comenta: "essa é a gratidão dele por ter sido procurador". A afirmação recordava que, em busca de apoio para ser o primeiro na lista de procuradores, e assim ter cacife para ser indicado PGR, Janot havia se mobilizado atrás do voto de colegas próximos do Partido dos Trabalhadores, a tal ponto que José Genoíno, já acusado na AP 470, chegou a participar de um evento de apoio a candidatura Janot. Após a divulgação dos grampos, o PGR disse num primeiro momento que não se opunha a nomeação de Lula para o ministério, mesmo questionando o foro de função que poderia exercer. Mais tarde, quando a repercussão do diálogo se tornara assunto obrigatório nos meios jurídicos, criando uma situação obviamente constrangedora, Janot divulgou um segundo parecer. Condenou a indicação e até apontou para uma certa "sofreguidão" de Lula em assumir o ministério.
Assistimos, assim, um caso em que provas ilícitas seguem sendo a base de uma denúncia. O fato de serem anuladas não passa de uma formalidade, pois é a lembrança permanece na mente de todos.
Se eu tivesse o talento de Nelson Rodrigues, tudo estaria resolvido numa pergunta: um marido traído irá esquecer fotos da mulher em cena de adultério depois que elas foram rasgadas e picotadas? Irá pensar o casamento a partir do zero, só porque lhe disseram que as imagens não poderiam ter sido feitas?
Era, como se pode perceber, uma questão de fé. Boa fé? Má fé? A favor de quem?
Dias depois de o juiz Sérgio Moro ter dito no Congresso que provas ilícitas poderiam ser válidas numa investigação caso tivessem sido obtidas "de boa fé", o país tem uma boa oportunidade de passar a limpo a aplicação prática de um conceito tão subjetivo.
Autorizada ontem pelo ministro Teori Zavaski, do STF, a investigação sobre a denuncia de que Lula e Dilma agiram em conjunto para obstruir uma investigação da Lava Jato tem como base uma questão de fé.
Se é boa fé, má fé, ou zero fé, não é difícil responder.
Como os brasileiros devem se recordar, a base dessa investigação reside numa prova ilícita - um diálogo gravado em março entre a presidente da República e o próprio Lula, quando os dois acertavam detalhes burocráticos para a posse do ex-presidente como ministro chefe da Casa Civil. A Polícia Federal não tinha autorização para gravar a presidente da República, o que só poderia ocorrer com autorização do Supremo. Mesmo que o grampo tivesse sido autorizado em algum momento da investigação, aquela a gravação Lula x Dilma não poderia ter sido feita - pois o diálogo ocorreu quando a autorização já havia expirado. Pior. Em nenhum dos casos, o teor dos diálogos poderia ter sido divulgado, obviamente. Comprovada sua ilegalidade, o grampo deveria ter sido destruído, manda o regulamento da Polícia Federal.
Há muitos tipos de fé envolvidos nesta questão, não é mesmo?
Uma pessoa de boa fé dificilmente deixaria de admitir que, ao atrair para seu governo o mais popular presidente da história republicana, responsável inclusive por suas duas eleições, Dilma nada mais pretendia do que reforçar a equipe que, nas semanas seguintes, iria enfrentar a prova decisiva de sua sobrevivência: a caça de votos no processo do impeachment.
Você pode pensar o que quiser de Lula. Mas apenas uma pessoa de má fé não consegue enxergar suas qualidades extraordinárias para desempenhar o papel. Na dúvida, consulte a maioria dos brasileiros. Ou Abílio Diniz, Henrique Meirelles, Barack Obama. Pergunte a sindicalistas que, naqueles dias, foram à porta das fábricas para saber o que ela achava da presença de Lula no governo.
Cabe reconhecer, ainda, um ponto essencial. A leitura do diálogo nunca foi uma demonstração de conluio. Ao contrário do que se sugeriu, em reportagens que copiavam o estilo de radionovelas, ao assinar o termo de posse Lula não se tornaria automaticamente ministro de Estado. O documento só teria valor oficial depois que fosse levado de volta para Dilma e assinado por ela, a presidente da República, o que só ocorreu na cerimônia de posse no Planalto, no dia seguinte, em presença do próprio Lula.
A melhor prova de que Dilma agiu de boa fé, neste caso, foi produzida nas semanas seguintes. Mesmo depois que a posse na Casa Civil foi impedida, num ato (de boa fé?) do ministro Gilmar Mendes, do STF, Lula continuou em atividade permanente para tentar ampliar a base de apoio da presidente. Fez exatamente aquilo que se dizia que não iria fazer, como demonstram as dezenas de reuniões e encontros realizados na época nos aposentos de um hotel em Brasília, descritas em tom de atividade suspeita pelos jornalistas que tentavam montar um cirquinho para o golpe. Mesmo produzidas em clima de má fé e denúncia, as reportagens sobre esses encontros são a prova de que Lula fazia o que sempre disse que iria fazer -- como há de concordar toda pessoa de boa fé.
Sérgio Moro age como um magistrado convencido de que ele só foi convidado para o ministério porque queria salvar a própria pele, ameaçada por uma denúncia - que ainda não fora feita - do senador Delcídio Amaral - que acabara de fazer sua própria delação premiada - que fatalmente o levaria para a prisão, recurso fácil no Brasil da Lava Jato e das preventivas ao gosto (ou da fé) do freguês na maioria das cadeias brasileiras.
Antes mesmo de ter reunido fatos e provas do caso, Moro já agia como se estivesse absolutamente convencido da culpa de um cidadão que nem réu havia se tornado.
Na prática, o que se fez foi impedir que Lula tivesse acesso ao chamado "foro de função," regra jurídica que permite a presidentes, ministros de Estado, senadores e deputados federais que sejam julgados pelo STF. Você pode concordar ou discordar dessa regra. Considerando que se trata de uma previsão constitucional, convém que seja cumprida. A carta maior não pode ser flexibilizada conforme a fé - religiosa? política? boa? má? - de cada momento.
Desde então Lula passou a ser tratado como um criminoso a espera de uma prova, situação que só é aceitável num universo político-jurídico que ignora a presunção da inocência, princípio destinado a impedir uma selvageria bem descrita por Eros Grau, ministro do STF entre 2004 e 2010. Sem a presunção de inocência, argumentou o ministro, "é melhor sairmos com um porrete na mão, a arrebentar a espinha dorsal de quem nos contrariar."
Numa decisão correta, o ministro Teori Zavaski terminou por anular as gravações que poderiam sustentar a denuncia. Mas Teori não determinou que, sem provas, o caso fosse arquivado. Perguntou ao PGR Rodrigo Janot se havia motivo para prosseguir, mesmo assim. Foi uma pergunta na fé categoria discutível, digamos assim.
Isso porque o PGR deixou de ser um personagem isento no caso depois que também foi atingido pelos grampos divulgados por Sérgio Moro, num exemplo clássico de que palavras ditas em privado tem um significado determinado, que pode alterar-se inteiramente quando se tornam públicas. Num diálogo com o advogado Sigmaringa Seixas, Lula se queixa do PGR. Em tom de sarcasmo, lembra que naqueles dias Janot "tinha arquivado a quarta denúncia contra Aécio e aceito a primeira feita por um bandido contra mim."
Na mesma conversa, Lula comenta: "essa é a gratidão dele por ter sido procurador". A afirmação recordava que, em busca de apoio para ser o primeiro na lista de procuradores, e assim ter cacife para ser indicado PGR, Janot havia se mobilizado atrás do voto de colegas próximos do Partido dos Trabalhadores, a tal ponto que José Genoíno, já acusado na AP 470, chegou a participar de um evento de apoio a candidatura Janot. Após a divulgação dos grampos, o PGR disse num primeiro momento que não se opunha a nomeação de Lula para o ministério, mesmo questionando o foro de função que poderia exercer. Mais tarde, quando a repercussão do diálogo se tornara assunto obrigatório nos meios jurídicos, criando uma situação obviamente constrangedora, Janot divulgou um segundo parecer. Condenou a indicação e até apontou para uma certa "sofreguidão" de Lula em assumir o ministério.
Assistimos, assim, um caso em que provas ilícitas seguem sendo a base de uma denúncia. O fato de serem anuladas não passa de uma formalidade, pois é a lembrança permanece na mente de todos.
Se eu tivesse o talento de Nelson Rodrigues, tudo estaria resolvido numa pergunta: um marido traído irá esquecer fotos da mulher em cena de adultério depois que elas foram rasgadas e picotadas? Irá pensar o casamento a partir do zero, só porque lhe disseram que as imagens não poderiam ter sido feitas?
Era, como se pode perceber, uma questão de fé. Boa fé? Má fé? A favor de quem?
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